Caras de pau

As mulheres da minha aldeia estendiam criteriosamente a roupa lavada sobre a erva. “Corava ao sol”. Vestidos com roupa corada, corávamos também. Bastava uma palavra, uma anedota, uma imagem, um namoro, um olhar, um mau pensamento… Agora, as máquinas lavam, secam e engomam. A roupa não cora. E as pessoas, deslavam-se? Quer-me parecer que somos cada vez mais caras de pau. Reviramos a pele como quem muda de roupa. Ainda existe quem core, mas aproxima-se de uma espécie em vias de extinção. Surpreender alguém a corar releva de uma epifania , uma graça abençoada. Quase não coramos! E torna-se complicado distinguir a emoção rosada de um cosmético revigorante. Há vasos sanguíneos que caíram em desuso. Como, a seu modo, os pelos, os dentes tortos, as rugas, a transpiração ou a saliva.

Nestas coisas do pensamento, sou como um cão. Quando encontro um osso, não o largo. O que me ofusca. Na dúvida, recorri a um “grupo de foco”. Nos mundos dos participantes, as pessoas coram, coram, por exemplo, os professores e os alunos nas escolas. Até as personagens dos anime coram. Cora-se, porventura, menos no meu mundo. Rostos serenos e pálidos, a lembrar São Sebastião. A ninguém interessa corar. Um colega com vergonha é como um coxo a andar para trás. E na publicidade? Nos anúncios, não se cora. Mas quem lucra com a comunicação da vergonha?
Caras de pau ou não, eis a questão? Órfão de uma nova intuição, deixo-me embalar pela melancolia. Há melancólicos que descansam a cabeça e fitam o infinito. Não se sabe se esperam ou desesperam. Eu oiço música e escrevo. Procuro nas palavras alento para continuar.
A multidão solitária
“Na solidão, o solitário corrói o seu coração; na multitude, é a multidão que lho corrói”
(Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano, 1878-1879).
“Sofrer de solidão, mal sinal; até agora, só sofri de multitude”
(Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra, 1893).
O livro A Multidão Solitária (The Lonely Crowd), de David Riesman, publicado em 1950, foi um dos primeiros best-sellers da Sociologia. Com recurso a noções tais como inner directed e other directed, Riesman sugere que as pessoas “perdem liberdade e autonomia individual ao tentar ser como as outras”. Esta é mais uma obra clássica posta em pousio pela sociologia avançada.
La solitude (1971) é uma canção francesa da autoria de Léo Ferré. Que me perdoe, mas opto pela versão italiana. Por um motivo: o vídeo, com fotografias de Misha Gordin (Letônia, 1946), é extraordinário. Interpela-nos desvelando várias faces da Multidão Solitária.
Léo Ferré. La Solitudine. Gravado em Maio e Junho de 1972. Fotografias de Misha Gordin.
Todo o mundo à porta; ninguém à janela.
Passa tanta gente à minha porta. E a solidão cá dentro.

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A canção francesa, em tempos universal, está em vias de relocalização. Regressa às caves do Boulevard Saint Germain. Entretanto, uma língua e três ou quatro culturas particulares universalizam-se. O resto relocaliza-se, inventaria-se, resiste ou desiste. Hoje, (re)produz-se à moda dos coelhos: vai ser tão bom, não foi? Com tamanha velocidade não há lugar para a solidão. Não? E, contudo… Nos resíduos dos quatro cantos, toca o sino de Wall Street. Sempre há quem se pendure nas calças dos gigantes; e os abutres indígenas, omnívoros, atiram-se a qualquer porcaria com molho de cifrão. A solidão acompanha a dança; faça-se de conta que não é connosco.
O tema da solidão é caro à canção francesa. Escute-se, por exemplo, Georges Moustaki e Léo Ferré.
Georges Moustaki. Ma Solitude. 1969
Léo Ferré. La Solitude. 1971.