Vai uma aula? Versão alargada do vídeo Antepassados do Surrealismo: o Maneirismo
À barca, à barca, senhores!
Oh! que maré tão de prata!
Um ventozinho que mata
E valentes remadores! …
À barca, à barca segura,
Barca bem guarnecida,
À barca, à barca da vida!
(Gil Vicente)
Antepassados do Surrealismo: o Maneirismo é o meu vídeo mais extenso e, porventura, predileto. Também é aquele a que mais me entreguei. Cristaliza anos de estudo e investigação. Não está perfeito, mas dou por encerrado o capítulo. Cada novo retoque implica horas de renderização. Esta versão aumentada inclui, no início, a curta-metragem Destino, idealizada por Salvador Dalí e Walt Disney, e, no fim, a apresentação Maniera: A Arte do Artista, entretanto produzida. Trata-se da minha rosa mais recente. Com pétalas, folhas e espinhos. Não é uma mercadoria mas possui o seu valor, e está ao alcance de todos e de ninguém em particular.
Incorporei este vídeo com a qualidade que o WordPress permitiu. Parece-me mais conseguida a visualização disponível no seguinte link da Clipchamp: https://clipchamp.com/watch/DmbfFtHuPz8. A versão reduzida, apenas com a conversa e respetivas apresentações, está acessível em HD no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=1LM9SLzHzIA&t=18s.
Espantalhos
Quase não vejo televisão. Ligo-a sempre num “canal de notícias”. Não tarda alguém a misturar notícia e opinião com ares de não saber o que diz. Às vezes, até duvido da boa fé. Por exemplo, ainda ontem um telejornal apresentou de uma forma deveras insólita, parcial e perversa os resultados do concurso para médicos de medicina geral e familiar. Talvez a informação e a urgência excedam as disponibilidades de jornalistas. Alérgico a influenciadores intrusivos, desligo o televisor, razão por que, não mudando, religo fatalmente um canal de notícias. Prefiro ler alguém que não pretende pensar por mim mas fazer-me pensar. Por exemplo, o Eduardo Lourenço:
“Um pensador não é um homem que pensa, mas sim um homem que faz pensar. Um criador não é um homem que sonha, mas um homem que faz sonhar. Ser grande pensador ou grande criador é fazer pensar e sonhar uma inumerável sucessão de homens e de tempos. Esta condição original dos pensadores e dos poetas explica o mistério aparente do triunfo histórico das obras obscuras, das sinfonias incompletas, das estátuas partidas. Toda a grande obra é obscura e incompleta e essa obscuridade e imperfeição são a sombra necessária à visão do sol contínuo que lhes constitui o cerne.” (“A arte ou as estátuas partidas”, Agosto de 1954, Da Pintura. Lisboa: Gradiva, 2017, pp. 120-121).
Segue a canção “Paranoimia” dos Art of Noise. “Paranoimia” resulta da junção de “paranoia” e “insónia”: estar com medo e incapaz de dormir. Há quem ande a semear “paranoimia”, insegurança e desassossego, talvez para colher avatares do Big Brother e admiráveis mundos novos.
Convencer ou obrigar
A tecnocracia aspira a racionalizar, senão otimizar, através da ciência e da técnica, a relação entre, por um lado, os recursos e os meios disponíveis e, por outro, os fins assumidos. Pode obter algum sucesso quando estes são materiais. Tende, porém, a encalhar quando são iminentemente pessoais e sociais, quando não é apenas questão de mobilizar recursos e valores “objetivos” mas convicções e vontades. Confrontados com esta dificuldade, os tecnocratas democratas tendem a transformar-se em tecnocratas autocratas. Convencidos, não convencem, obrigam.
Lembrar faz bem à memória
Na adolescência, quando estava a ler um livro e encontrava coisas que já sabia, ficava contente. Era sinal que já sabia. Hoje, quando leio um livro e encontro coisas que já sei, fico descontente. É sinal que não estou a aprender (Albertino Gonçalves).
A vaga terrorista actual parece sem precedentes. Mas tem precedentes. O artigo O ataque terrorista mais mortífero em Paris desde 1944, da RTP, de 07 de Janeiro de 2015, tem o condão de refrescar a memória no que respeita à França: Desde a Segunda Guerra Mundial, Paris nunca deixou de ser alvo de atentados mortíferos por parte de grupos terroristas nacionais e internacionais. Residi em Paris nos anos setenta. Uma cidade sob ameaça terrorista. Os alertas e as evacuações eram constantes.
Nos anos setenta, vários países debateram-se com a actividade de grupos terroristas internos: o grupo Baader-Meinhof na Alemanha, país palco do massacre de Munique de 1972; a ETA na Espanha (mais de mil pessoas mortas); as Brigate Rosse na Itália (recorde-se o assassinato de Aldo Moro) e o IRA no Reino Unido (acima de 3 500 mortes). Em Portugal, houve vítimas, não sei se houve autores. É verdade que, hoje, temos estados terroristas, mas nos anos setenta existiam estados que apoiavam declaradamente o terrorismo, por exemplo, a Líbia. Recorrendo a um pleonasmo, o terrorismo é aterrador e alcançou uma dimensão inédita. Mas não nasceu ontem. Com a História, nunca estamos sós. Nestes tempos orgulhosamente únicos, um pouco de História é um consolo.
Alguns autores marxistas, tais como Lukacs, Goldmann, Gabel ou Kosik, criticam a atrofia da consciência histórica. A falta de horizontes históricos conduz, segundo eles, a uma espacialização do pensamento, a uma reificação. Em termos mais simples, a um empobrecimento do espírito e da realidade.
Modern Monsters, da Amnesty International, é um excelente anúncio português, premiado no estrangeiro. Normalmente, o texto vem a propósito do vídeo. Neste artigo, o vídeo e as imagens colam-se, tenebrosas, ao texto. Nada condiz com nada. É uma extravagância.
Anunciante: Amnesty International. Título: Modern Monsters. Agência: W Portugal. Portugal, 2007.
Transi 6: Os mortos vivos
Com este artigo termina a série Transi: Corpos em decomposição. Os artigos anteriores foram: Transi 1. As artes da morte; Transi 2: O corpo em decomposição; Transi 3: Viver com os mortos; Transi 4: A didáctica da morte e Transi 5: A vida a prazo.
“A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas. De entre as muitas criaturas na Terra que morrem, só para os homens morrer é um problema. Compartem com os restantes animais o nascimento, a juventude, a maturidade, a enfermidade, a velhice e a morte. Mas apenas eles de entre todos os seres vivos sabem que vão morrer” (Elias, Norbert, La soledad de los moribundos, México, Fondo de Cultura Económica, [1982] 1989, p. 10).
Mudemos de olhar para terminar em rabo de víbora.
Este texto é manifestamente parcial. A obsessão macabra resume uma faceta da Idade Média. O homem medieval também foi um apaixonado pela vida. Entregou-se aos prazeres do corpo, à dança, à ebriedade, à sexualidade, ao riso, à extravagância, à transgressão, à vitalidade, à festa, ao convívio, à confusão, ao sonho. Em diversas dimensões: na linguagem, na arte, na praça pública, no Carnaval, na missa do burro, no teatro. Não é o momento de desenvolver esta vertente. O livro de Mikhail Bakhtin A cultura cómica popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (São Paulo, Hucitec, 2008) pode colmatar esta falha.
Os vampiros, os Frankenstein, as múmias, os passageiros crepusculares e, sobretudo, os zombies lembram os transi. O sucesso destas criaturas é inegável. Aparecem no cinema, nos videojogos, nos vídeos musicais, nas séries de televisão, na publicidade, nas fotografias, nos posters, nas t-shirts, nas tatuagens e, até, nos brinquedos. Ficção ou não, são imagens de outrora e de agora. São os nossos fantasmas.
O homem medieval e o homem moderno distinguem-se quanto à identificação ou à projecção nas imagens da morte? A diferença é mais de grau do que de natureza. Quando no séc. XV, uma mulher grávida observa uma mulher grávida figurada numa dança da morte, pode admitir: aquela é como eu; eu sou como aquela; ou eu sou aquela. Historiadores consideram que a terceira alternativa é credível. Sucederá o mesmo com um espectador actual perante uma investida de zombies num filme? Ontem como hoje, somos propensos a identificar-nos com as vítimas. Mas também com os carrascos, banais ou monstruosos. Como vítimas, pense-se na síndroma de Estocolmo, mas também como espectadores (Faivre, Bernard, Martyrs, bourreaux et spectateurs, Paris, Armand Colin, 2010), sendo a passagem de espectador a actor frequente. Atente-se na violência no desporto (Murphy, Patrick; Williams, John; Dunning, Eric. O futebol no banco dos réus. Oeiras, Celta, 1994). No que respeita à identificação com a vítima e com o carrasco a diferença parece não ser intransponível.
Algumas personalidades medievais tornaram-se célebres ao mandar esculpir transi a partir do seu corpo em decomposição, real ou imaginado. Na actualidade, desenha-se uma tendência para tatuar transi na própria pele. O caso mais célebre é o de Rick Genest. Nem sequer faltam os necrófilos (Fig 52)! Os transi passeiam-se, hoje, de um modo inédito.
Transumanista ou não, matar a morte está na agenda. Já matamos a morte nos videojogos e vários mega projectos apostam nesse sentido. Não é uma aspiração nova. A ideia da fonte da juventude apontava para uma forma de inverter a velhice num ciclo vital interminável. Era uma solução bioquímica. Mas neste século a técnica é mais milagrosa. De pouco serve a lição de George Grosz: feliz, a morte não pára de renascer (Fig 54). As pessoas morrem, mas as coisas também. Nunca os objectos técnicos morreram tanto e tão depressa. O nosso século não é da eternidade, mas da obsolescência. Vamos continuar a transitar, com os olhos postos na imortalidade.
A morte saiu à rua
Os gatos têm sete vidas, mas os homens têm mais mortes. A publicidade aposta no tópico da morte. Regressa o espantalho esquelético que a todos abraça sem pudor. Uma morte louca, sinistra, próxima, digital, embalsamada no tempo.
A morte é o nosso fantasma de estimação. Somos uma sociedade mortífera, não porque se mate ou morra mais, mas porque andamos com a sombra da morte na ponta do nariz. É certo que a Idade Moderna esconjurou a morte do quotidiano, mas ela nem por isso deixa de nos dar a mão e de nos guiar como nos frisos das igrejas medievais. Na vida como no ecrã, a morte, essa assombrosa sedutora, dança, dança nos videojogos, nos anime, nos filmes, nas séries televisivas, nos telejornais, nos nossos muitos medos.
O anúncio The man who died the most on movies surpreende com uma avalanche de sequências de mortes. Espera-se que, graças ao cómico, a catarse aconteça: rir da morte. Mas quem costuma rir não é o homem, mas a morte, a “morte risonha”. O nosso riso desbota até ficar amarelo. A morte sai à rua, como nos quadros de James Ensor, Otto Dix ou George Grosz. A morte adora um pé de dança. Dêmos-lhe música: “A morte saiu à rua”, de José Afonso (1972) e “The Untouchables: Death Theme”, do álbum Yo-Yo Ma plays Ennio Morricone (2004).
Anunciante: French Health Department AD. Título: The man who died the most on movies. Agência: DDB, Paris. Direcção: Alexandre Hervé. França, Junho 2015.
José Afonso. A morte saiu à rua. 1972.
“The Untouchables: Death Theme”, do álbum Yo-Yo Ma plays Ennio Morricone (2004).