Mãos de eternidade. Poética do macabro

O envelhecimento agrava a dependência física, mas, demência à parte, propicia a autonomia de espírito. Dedicar-se, por exemplo, a assuntos que não interessam aos outros. O interesse alheio esmorece como critério de relevância e oportunidade. O próprio interesse pessoal pode adquirir feições estranhas. Interesses fortuitos. Durante a quarentena, o Álvaro Domingues tem-se dedicado a desenhar pássaros (ver Galeria 1). Um por dia!
Figura 2. Pintassilgo. Álvaro Domingues. Figura 3. Rouxinol. Álvaro Domingues. Figura 4. Pardalito. Álvaro Domingues. Figura 5. Carriça. Álvaro Domingues.
No que me respeita, salto de imagem em imagem, “percorro” centenas de cemitérios no ecrã. Qual o interesse? Do Álvaro, não imagino, o meu, admito que seja nenhum. Parece emergir a idade da reflexão desinteressada Não se trata, porém, do “interesse no desinteresse”, de que fala Pierre Bourdieu. O interesse no desinteresse é duplamente interessado: pressupõe o interesse mais o seu disfarce. Distinto é o lustro da idade da reflexão desinteressada. Recordo a infância, fase da vida pautada por alguma “distância à necessidade”. As palavras cruzadas, a descoberta das diferenças e o enigma policial eram desafios quase compulsivos. Para quê? Talvez para exercício mental, como a semiótica das sepulturas. Esta autonomia requer desprendimento e indiferença face às conveniências e à ética da responsabilidade. Releva do capricho lunar.

O cemitério é um labirinto de símbolos minuciosamente codificados. Desconcerta um mentecapto. As sepulturas compõem “uma cultura material [que] cria, comunica e preserva sentido. Os artefactos e as sepulturas oferecem-se como evidências tangíveis de relações sociais que sancionam atitudes e comportamentos” (Rainville, Lynn, 1999, Hanover Deathscapes: Mortuary Variability in New Hampshire, 1770-1920, Ethnohistory Vol. 46, No. 3, pp. 541-597. p. 543). As esculturas tumulares são caracterizadas pela diversidade. Algumas revestem, inclusivamente, um cariz pessoal. Regra geral, adivinha-se o que visam e o que significam. Alguns símbolos são antigos, milenares. Assim sucede com as mãos entrelaçadas, motivo frequente nos cemitérios (ver figuras 7 a 10). Mas não único. Abundam outros motivos funerários com mãos: em oração, que apontam para cima ou para baixo, que abençoam, que tocam em argolas ou seguram ramos de plantas, artísticas ou pessoalizadas.
Figura 7. Shaking Hands Easton Cemetery Figura 8: Farewell Cuffs St. John’s Lutheran Quakertown. Figura 9. Necropolis Cemetery. Toronto, Ontario Figura 10. Drayton Beauchamp Churchyard, Buckinghamshire.
As mãos entrelaçadas inscrevem-se num limiar, oscilam entre mundos. Nem este, nem aquele. Entre a vida e a morte, o céu e a terra. O aperto de mãos não é apertado, é frouxo, dando a sensação que as mãos tanto podem permanecer unidas como afastar-se. Não se vislumbra sinal de esforço para contrariar o destino. Trata-se de uma figura trágica.
O enlace das mãos, vulgar nos cemitérios, não é exclusivo de nenhuma religião, cultura ou região. É transversal. Não obstante, esboçam-se algumas afinidades históricas e sociais.
As caveiras, os relógios e as urnas remetiam, outrora, para uma semiótica do medo e da culpa, Durante o romantismo e a era vitoriana, as esculturas tumulares concentram-se no foro pessoal, no amor e na família. As mãos entrelaçadas inscrevem-se nesta nova tendência apostada no reencontro e na salvação. Existem vários grupos religiosos e sociais particularmente propensos ao recurso às mãos entrelaçadas.

Os menonitas, anabaptistas dissidentes do protestantismo, perseguidos brutalmente durante séculos, povoam os cemitérios com esculturas de mãos entrelaçadas.
“Os menonitas não tinham, geralmente, direito a inumar os seus defuntos nos cemitérios católicos. Faziam-no nas suas propriedades. Em Haraucourt-sur-Seille, a comunidade deve ter sido suficientemente pujante para fundar o seu próprio cemitério” (Patrimoine: du cimitière mennonite d’Haraucourt-sur-Seille: http://blogerslorrainsengages.unblog.fr/2015/02/02/patrimoine-du-cimetiere-mennonite-dharaucourt-sur-seille/.
A figura 11 proporciona uma noção da “densidade” das mãos entrelaçadas nos cemitérios menonitas: a menos de dez passos de distância, duas sepulturas com mãos entrelaçadas.
Por último, “as mãos entrelaçadas podem, eventualmente, representar a irmandade de uma loja. São motivo frequente nas lápides maçónicas e I.O.O.F. [International Order of Odd Fellows]”(Cemetery Symbolism: https://www.thoughtco.com/cemetery-symbolism-clasped-hands-pointing-fingers-1420808). Um anúncio numa publicação maçónica, revista maçônica de cultura e informação, reproduz como fundo o motivo de duas mãos entrelaçadas ( ver figuras 1 e 12).

Retomemos a questão da discriminação e da segregação dos mortos. No Cemitério de Het Oude Kerkhof, em Roermond, na Holanda, dois túmulos, separados por um muro, unem-se graças às mãos entrelaçadas (ver figuras 13 a 15). O muro separa os protestantes dos católicos. O coronel protestante J.W.C. van Gorcum casou, em 1842, com a nobre católica J. C.P.H. van Wefferden . Falecido em 1880, foi sepultado na parte protestante do cemitério. A esposa, falecida em 1888, recusou o túmulo familiar. Pediu para ser sepultada junto ao muro, o mais perto possível do marido. Separados pela geometria humana, o coronel protestante e a esposa católica entrelaçam as mãos por cima do muro (ver Unusual Places. Graves of a Catholic woman and her Protestant husband: https://unusualplaces.org/graves-of-a-catholic-woman-and-her-protestant-husband-2/)
Figura 13. Cemitério de Ruremonde (Roermond). Holanda. Lado protestante. Figura 14. Cemitério de Ruremonde (Roermond). Holanda. Lado católico. Figura 15. Cemitério de Ruremonde (Roermond). Holanda. Mãos que unem, por cima do muro, ambos os lados.
Separados em terra, reencontrados no céu. Promove-se a (re)união na eternidade mediante as mãos entrelaçadas. Os textos que acompanham as mãos sugerem este voto de não separação: “Toujours unis” (Figura 16), “Farewell Dear Husband” (Figura 17) ou outras frases como, por exemplo, “até nos reencontrar”.
Figura 16. “Toujours unis”, na manga. Cimitière Père-Lachaise. Paris. Figura 17. “Farewell dear Husband”. Abbeville cemetery. Louisiana.
O motivo do túmulo do cemitério de Abbeville (Figura 17) surpreende. E intriga. Configura um caso especial: uma mãos entrelaçada aponta, com o indicador, para baixo. O que, atendendo à simbologia da mão que aponta para baixo (ver Figura 18), pode significar que, ao pedido de união entre os esposos, acresce o pedido a Deus para vir buscar a alma. Uma escultura polifónica.

“Se as mangas das duas mãos são masculina e feminina, o aperto de mão, as mãos entrelaçadas, pode simbolizar o matrimónio sagrado, ou a união eterna de um marido ou esposa. Às vezes, a mão sobreposta ou o braço posicionado um pouco mais alto indica a pessoa que faleceu primeiro e que está agora guiando seu ente querido na travessia para a próxima vida” (Cemetery Symbolism: https://www.thoughtco.com/cemetery-symbolism-clasped-hands-pointing-fingers-1420808).

As esculturas com mãos entrelaçadas respeitam determinados padrões.
“As mãos – quase sempre as mãos direitas – são incrivelmente detalhadas, com unhas e punhos de roupa esculpidos em mármore macio. Um dos punhos tendia a apresentar folhos ou plissados, sugerindo a mão de uma mulher; o outro estava decorado com abotoaduras, sugerindo a mão de um homem. Juntos, representam um marido e uma esposa que compartilham um último aperto de mão. Uma mão manifesta-se, em geral, plana e frouxa, com os dedos estendidos [ver Figura 19]. Pode ser interpretado como o falecido a interpelar os vivos a segui-lo ou a deixá-lo partir (The Cemetery Symbol of Eternal Love: https://daily.jstor.org/the-cemetery-symbol-of-eternal-love/).

As mãos entrelaçadas nas sepulturas remontam, pelo menos, ao império romano. Nas escavações arqueológicas de Fréjus, no Departamento de Var, em França, encontram-se cinco estelas tumulares com mãos entrelaçadas (ver exemplos, nas Figuras 20 e 21). Parece que as mãos romanas têm um significado diferente das mãos contemporâneas. Menos, porém, do que seria de esperar. Para terminar este primeiro percurso pelas mãos nas lápides tumulares, cedemos a palavra, erudita, aos arqueólogos de Fréjus, localidade onde foram descobertas as referidas estelas datadas do primeiro século da era cristã.

“A imagem da dextrarum junctio entre os cônjuges, particularmente bem representada nas estelas de Fréjus, é um motivo recorrente na iconografia funerária. A hipótese de vislumbrar uma esperança no reencontro final dos cônjuges na vida após a morte, após sua morte, não parece fundamentada, sendo hoje abandonada (…) Seu verdadeiro significado original foi analisado por P. Boyancé (…) Começa por sublinhar o valor eminente da mão direita, dedicada à deusa Fides, primeira divindade protectora de tratados e juramentos. A imagem das mãos entrelaçadas não significa, portanto, a salvação moderna (…) significa a harmonia e a boa fé que reinaram entre os cônjuges (…) o casal que celebra a concordia a que permaneceu apegado. A sua vida participa de alguma forma da imortalidade que concede o acordo sob o signo de Fides. Também temos evidências disso em várias representações mitológicas sobre sarcófagos, onde a dextrarum junctio significa que o amor é mais forte que a morte” (Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, Sculptures de la Gaule romaine : Fréjus – https://www.aibl.fr/seances-et-manifestations/expositions-virtuelles/article/sculptures-de-la-gaule-romaine?lang=fr).
Acerca da dextrarum junctio, de Fides e da Concordia, retenha-se o seguinte: o casal que celebra a concordia acede à imortalidade sob o signo da deusa Fides. Em vários casos, a dextrarum junctio admite que o amor supera a morte. Como nas mãos entrelaçadas contemporâneas.
Com palavras se fazem coisas (J. L. Austin. How to do things with words, 1962) e com coisas se dizem palavras, de amor e eternidade.
Agradecimento

Em tempo de “distanciamento social”, faleceram, em três dias, duas irmãs: a minha tia e a minha mãe. Na verdade, duas mães. Isolada e abreviada, a morte não está fácil. Não perde, contudo, o pesar e o carinho. Agradeço a quem me acompanhou nesta despedida. A amizade é o maior conforto. Há circunstâncias em que a música é silenciada, mas ela une o que o mundo separa: Jesus a Alegria dos Homens, de Bach, é um coral de amor e esperança. E a imagem do anjo sofrido? Os anjos constituem uma figura celestial especial: não só sofrem pelos homens como sofrem com eles.
O segredo das esculturas veladas
Reservei este artigo para o livro A Morte na Arte. Nas actuais circunstâncias, temo que só o vejam os demónios. Antecipo, portanto, a publicação. Lembro o arcebispo de Caterbury, Henry Chichele, que concluiu o seu próprio túmulo, e o colocou na catedral, por volta de 1426. Faleceu em 1443, passados 18 anos. Existe um segundo motivo. Tenho aniversariante em casa. Quero dedicar-lhe este artigo, a minha rosa.

“Já não cremos que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o véu…” (Friedrich Nietzsche, Gaia Ciência, Prefácio, 1886).
As esculturas veladas são um ápice na história da arte. Pelo esoterismo, pela graça e pelo virtuosismo. O pioneiro foi o escultor veneziano Antonio Corradini (1688 – 1752) , um dos expoentes do estilo rococó. Precise-se que nem todas as esculturas com véus são consideradas “esculturas veladas”. A figura de Hera (Figura 2, Grécia, ca. século V a.C.) ou a Pietà de Michelangelo (Basílica de São Pedro, 1499) portam véu, mas não são veladas. Nesta acepção restrita, as esculturas veladas encobrem, parcial ou totalmente, o rosto.

As esculturas veladas possuem uma longa história. Existem evidências de esculturas veladas na Antiguidade. O Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, expõe uma cabeça de mármore parcialmente velada (século IV a.C.) e uma estatueta de uma dançarina velada (séc. III a II a.C.) No Museum of Ancient Sculpture, em Cirena, na Líbia, encontram-se duas esculturas representando Perséfone com o rosto velado. Consta que Perséfone, deusa da morte, quando estava prestes a partir para o submundo, tapava, progressivamente, o rosto com o véu. Na mitologia grega, nem todas as deusas podem usar véu. É apanágio, por exemplo, de Hera e Perséfone (ver Galeria 1).
03. Escultura funerária romana representando Perséfone. Museum of Ancient Sculpture. Cirena. Líbia.04. Estátuas das Deusas Demeter e Persófone. Cirena. Líbia. Escultura funerária romana representando Perséfone. Museum of Ancient Sculpture. Cirena. Líbia.04. Estátuas das Deusas Demeter e Persófone. Cirena. Líbia. Mulher velada. Século IV a.C. Grécia. Metropolitan Museum of Art. Nova Iorque Estatueta de um dançarina velada. séc. III e II a.C. Grécia. Bronze. Metropolitan Museum of Art
“Desde a Vitória de Samotrácia (de 200 a.C., hoje em posição de destaque no Louvre), uma das coisas que mais me fascinaram na vida foram os panos da Virgem Maria na Pietà, obra-prima de Michelangelo, escultura que está na Basílica de São Pedro, e da Santa Teresa, também uma obra-prima, de Bernini, no altar da Santa Maria della Vitoria, ambas as esculturas em Roma. O contraponto da leveza do tecido com o peso e a dureza do mármore e as dificuldades técnicas que implicam o panejamento, que é a escultura de “panos na pedra”, sempre impressionam. Mas Antonio Corradini (1688 – 1752), escultor barroco vêneto do século 18, deu um passo além com suas mulheres veladas, esculturas delicadíssimas em mármore que não só retratam tecidos finíssimos, colados à pele, mas dão a impressão de que estão sofrendo a ação do vento ou da água” (Shoichi Iwashita, Véus de Mármore: https://www.simonde.com.br/veus-de-marmore/).

Os “panejamentos”, os “tecidos de mármore”, na Pietà, de Michelangelo, e no Êxtase de Sta Teresa (1647-1952), de Gian Lorenzo Bernini, são admiráveis, conquistaram um lugar cativo na história da arte, mas são distintos dos tecidos cinzelados por Antonio Corradini. É verdade que cobrem quase todo o corpo. No Êxtase de Santa Teresa, bem como na escultura funerária da Beata Ludovica Albertoni (1672-1674), Bernini descobre apenas o rosto e as extremidades do corpo. Ao contrário de outras esculturas, tais como O Rapto de Proserpina (1622) ou Apolo e Dafne (1625), não é intenção de Bernini exibir o corpo, mas sugerir a sensualidade. Os mantos, cheios de dobras, são opacos, nada cingidos ao corpo. São alegóricos, mas de uma alegoria diversa das esculturas veladas.
08. Afrodite apoiada num pilar. Cópia romana dos séculos I a II 09. Estátua de vestal junto à Casa das Vestais Virgens. Roma 10. Baixo relevo com o jovem senador guarda do corpo das vestais, a Deusa Roma e, no lado direito, uma vestal com o típico . Século I
A Vitória de Samotrácia (museu do Louvre, 190 a.C.) configura um caso distinto. O tecido tem pregas, mas é fino e percorre as formas do corpo. Não oculta, insinua. Através dos contornos do tecido, transparecem os seios, o ventre e as pernas. Não há nu que rivalize com os mamilos e o umbigo a espreitar pelo véu. A Vitória de Samotrácia não é caso único. Acrescem, por exemplo, as estátuas de Afrodite e das vestais virgens de Roma (Galeria 2).

Não obstante estas precedências, Antonio Corradini, de estilo rococó, foi o pioneiro das esculturas veladas. É costume associá-lo a Raimondo di Sangro, príncipe de Sansevero VII, responsável pelo restauro da Capela de Sansevero, em Nápoles. É começar a casa pelo telhado e o percurso pela etapa final. Entre 1716 e 1725, Corradini encarrega-se das esculturas para o jardim de verão do czar da Rússia, Pedro, o Grande, em São Petersburgo (1716-1717) e para os jardins do Palácio Höllandisches, do rei da Polónia e eleitor da Saxônia, Augusto, o Forte. Datam, deste período dois bustos femininos velados: a Puritas (1717-1725) e a Vestal Virgem (1724). Em 1729, Corradini muda-se para Viena. É nomeado, em 1733, escultor da corte do Império Austro-Húngaro dos Habsburgos. Após a morte do Imperador Carlos VI, em 1740, regressa a Itália, onde retoma a escultura de mulheres veladas (ver galeria de esculturas de Antonio Corradini). Em 1744, aos 56 anos, desloca-se para Nápoles onde permanece até à morte, em 1752. A convite de Raimondo di Sangro, dedica-se à decoração e esculturas da Capella Sansevero. Por esta altura, Corradini já tinha produzido, pelo menos, cinco esculturas veladas: Puritas (1717-1725); Vestal Virgem (1724); Vestal Virgem Tuccia (1743); Mulher Velada (1743); e Fé (1743-1744).
12. Antonio Corradini. Busto de Mulher Velada (Puritas). 1717-1725 13. Antonio Corradini Vestalin (1724) 14. Antonio Corradini. A Vestal Tuccia. 1743. Palácio Barberini 15. Antonio Corradini. Mulher Velada. 1743. Plácio Barberini.1743 16. Antonio Corradini. Mulher Velada (A Fé). 1743-1744. Museu do Louvre 17. Antonio Corradini. Mulher Velada (A Fé). Pormenor. 1743-1744. Museu do Louvre 18. António Corradini. Pudicia ou Modéstia ou Verdade Revelada. 1750. Capela de Sansevero 19. António Corradini. Pudicia ou Modéstia ou Verdade Revelada. Pormenor. 1750 20. António Corradini. Pudicia ou Modéstia ou Verdade Revelada. Pormenor. 1750 21. António Corradini. Espboço para o Cristo Velado.Concluído por Giuseppe Sanmartino, em 1753
Raimondo di Sangro (1710-1771), amigo de reis e de papas, homem de armas e de letras, mecenas e inventor, alquimista e grande mestre da Maçonaria Napolitana, foi um expoente culto e esotérico do primeiro iluminismo. Tinha ideias arrojadas mas firmes. Encomendou a Antonio Corradini um monumento para a capela funerária dedicado à mãe, Cecilia Gaetani dell’Aquila d’Aragona, falecida no primeiro ano de vida de Raimondo. O resultado é uma escultura espantosa, concluída em 1750. O corpo sensual de uma mulher jovem, serena e absorta, é coberto por um fino tecido translúcido de mármore. A estátua tem vários nomes: “Verdade sob Véu”, “Véu da Modéstia”, “Pudor sob Véu” ou “Castidade” (ver Galeria 2, Figuras 18 a 20).
22. Giuseppe Sanmartino. Cristo Velado. 1753. Capela de Sansevero. Nápoles 23. Giuseppe Sanmartino. Cristo Velado. 1753 24. Giuseppe Sanmartino. Cristo Velado. 1753 25. Giuseppe Sanmartino. Cristo Velado. Pormenor. 1753 26. Giuseppe Sanmartino. Cristo Velado. Pormenor. 1753
A morte surpreendeu Antonio Corradini antes de terminar uma das esculturas mais sublimes e pungentes da humanidade. Concebido o esboço (Galeria 3, Figura 21), cumpre a Giuseppe Sanmartino (1720-1793) o desafio e a glória de concluir a obra “O Cristo Velado” (1753) (Galeria 4).

Para além de Sanmartino, outros escultores italianos seguiram as pegadas de Antonio Corradini, nomeadamente Giovanni Strazza (1818-1875) e Raffaele Monti (1818-1881).
28. Raffaele Monti, A Vestal Velada, 1846 29. Raffaele Monti. A Circassian Slave in the Market Place at Constantinople. 1850 30. Raffaele Monti. Mulher Velada 1854 31. Raffaelo Monti. Mulher Velada,1854 32. Raffaele Monti. Mulher velada. 1860 33. Rafaele Monti.The Sleep of Sorrow and the Dream of Joy. 1861 34. Raffaele Monti. Vestal Virgem Velada. 1875 35, Raffaele Monti. Noite. 1862
As imagens colectadas constituem um quase inventário das esculturas veladas. Considerando o conjunto, importa colocar a questão: qual é a função do véu?
O véu é um recurso estilístico. A sinuosidade do véu delineia e releva particularidades, dinâmicas e sensações corporais, algumas extremas, como o sofrimento do Cristo Velado, especialmente reconhecível ao nível da cabeça, ou a sensualidade de Modéstia, designadamente ao nível dos seios. O véu potencia a semiótica do corpo.
O véu vela e desvela, releva e revela, tal como a sedução, à luz dos provérbios. O que vela o véu? Atendo-nos aos nomes das esculturas de Antonio Corradini, o véu envolve a Fé, a Modéstia, o Pudor, a Pureza, a Verdade, a Virgindade, a Castidade… O véu resguarda e celebra virtudes.

A beleza é uma constante nas esculturas veladas. Um valor? Uma virtude? Importa regressar às vestais de Roma. Eram escolhidas, entre os seis e dez anos, pela sua saúde e beleza. Serviam como sacerdotisas, durante trinta anos, na Casa das Vestais, zelando, entre outros afazeres, pela manutenção do fogo sagrado no Templo de Vesta.
Ressalvando o Cristo Velado, de Giuseppe Sanmartino, contamos dezenas de esculturas femininas. Envoltas em véus, votadas à virtude, alcançam uma beleza ímpar. Insinua-se a tentação de aludir a uma erótica da virtude. Compreendem-se as críticas a Raimondo di Sangro pela profanação da capela mortuária com imagens de nus eróticos. Mas a beleza pode rondar o sagrado.
“Ou não consideras, disse ela [Diotima], que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando? (Platão, O banquete).
“E o feio é inadequado a tudo o que é divino, enquanto o belo é adequado” (Diotima, Platão, O banquete).
Concentremo-nos no véu, o elemento nuclear das esculturas veladas.
“Hijab, véu, quer dizer em árabe aquilo que separa duas coisas. Significa, portanto, consoante o colocamos ou o retiramos, o conhecimento oculto ou revelado” (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, 1982, Dictionnaire des symboles, Paris, Robert Laffont/Jupiter, p. 1027).
O véu recorta um limite. Não se oferece como lugar barroco em que os extremos se tocam, interagem, mas como o lugar trágico em que os extremos se separam. Protege a virtude e afasta a profanação. A postura e os gestos das mulheres veladas concorrem nesse sentido.

Nenhuma das mulheres veladas nos fita, nenhuma olha para o público. Como Nossa Senhor nas esculturas e nas pinturas da Crucifixão. Nos antípodas, por exemplo, do Busto da Constanza Bonarelli (ca 1635), de Bernini (Figura 38). Se o olhar é a principal ponte de comunicação, então as mulheres veladas, tal como a virgindade das vestais, manifestam-se inacessíveis. Sem troca de olhares não existe contacto visual (Georg Simmel, Sociology, Vol I, Leiden / Boston, 2009, p.575). Estão absortas, alheias, pisam outro mundo. A proxémica é de distância, de modo algum de aproximação. Pisam outro mundo serenas, com uma “calma tranquila”. Ao contrário do que sugere a expressão “erótica da virtude”, não se vislumbra qualquer chama de desejo. Eventualmente, no nosso olhar. À semelhança das vestais, sacerdotisas do fogo e modelos de virgindade, as mulheres veladas lembram Héstia, homóloga grega de Vesta, a deusa do fogo que não arde de desejo.

O véu desenha um limite, limite que pode ser sagrado. Na Bíblia, no Alcorão e nas religiões orientais, o véu interpõe-se entre o humano e o divino. A interpretação conduz-nos, neste enfiamento, da erótica para a consagração. A lenda da vestal Tuccia, uma das esculturas de Antonio Corradini (Galeria 3), é elucidativa. Acusada de não ter quebrado o voto de virgindade, Tuccia insiste na inocência. Concedem-lhe uma prova: transportar água numa peneira desde o rio Tibre até ao templo de Vesta, sem molhar o chão. Tuccia implora a ajuda da deusa Vesta e consegue o impossível: transportar água numa peneira. Na lenda de Tuccia está em causa a transgressão de um limite. O limite, neste caso, adquire um toque divino, uma aura sagrada.
“É no limiar e ao redor da morte que mais bem se manifestam o singular, o incrível, o fantástico, o maravilhoso, mas também o religioso e o mero pensamento: é o lugar onde o homem encontra a sua verdade” (Robert Sabatier, Dictionnaire de la mort. Préface. Paris, Ed. Albin Michel, 1967).
“É no limiar e ao redor da morte … [que] o homem encontra a sua verdade”.

A morte é o limite dos limites e morrer, a grande passagem. O cemitério, uma heterotopia, é o lugar onde os mortos esperam pelos vivos. O cemitério, ponte (passagem) e porta (limite), acolhe esculturas funerárias comoventes, quando não enternecedoras.
40. Mão na mão., Cemitério do Père Lachaise, Paris 41. Italian Cemetery. Colma. Califórnia. 1899 42. Bellefontaine Cemetery, St. Louis, Missouri 43. Túmulo de Jules Verne. Cemitério de «La Madeleine». Amiens, França 44. Túmulo de Georges Rodenbach (1855-1898). Cemitério do Père-Lachaise. Paris 45. Cemitério Monumental de Milão 46.Cemitério de Cannes. 1866 47. Peter Schipperheyn. Asleep. Mt Macedon Cemetery in Victoria, Australia. 1987
Algumas esculturas denegam a separação, a perda. Convocam, embebidas em magia, sinais de uma presença aquém da morte. Por exemplo, mãos e partes do corpo a sair da sepultura (Galeria 6). Noutros casos, as figuras dos vivos grudam-se ao túmulo. A dor inscreve-se, por vezes, numa terceira entidade: um anjo inconsolável, uma mulher velada ou uma carpideira. O véu assegura a intimidade e o recolhimento na agonia (Galeria 7).
48. The Black Angel (1843). Oakland Cemetery. Yowa. 49. Cemitério de Cannes. 1866 50. Cimitero acattolico di Testaccio. Roma. 1895 51. Cementerio monumental de Staglieno en Genova 52. Mulher velada. Cemitério do Père Lachaise. Paris. Esculttor Antoine Etex. 1854 53. Esculturas veladas. Cemitério de Viena. 1874 54. Mulher Velada. Cemitério de Viena 55. Mulher velada. Cemitério de Cannes. 1866. 56. Mulher velada enfaixada. Staglieno Cimitero Monumental. Génova 57. Mulher velada. Cemitério de Roma 58. Mulher velada com coroa. Cemitério de Monmartre. Paris 59. Alessandroni Grave, Verano Monumental Cemetery. Roma 3 60. Verano Monumental Cemetery. Roma 61. Cemitério Montparnasse. Paris
Nos cemitérios, não são vulgares as esculturas em que a morte ostenta um véu a cobrir-lhe a cabeça e a face. As interpretações atropelam-se. Será para proteger, como Medusa, os mortais do seu olhar? Será o véu uma forma de respeito? Ou, à semelhança de Perséfone, a rainha do submundo que corta o fio de cabelo que nos liga à vida, o véu é atributo da morte?
No túmulo da Família Nicolau-Joncosa, no cemitério de Monjüic, em Barcelona, a morte encosta-se, confortável, ao lado de um homem pensativo. Coloca-lhe, tranquilamente, a “mão” no ombro. Nenhum, nem o homem, nem a morte, mostra pressa. Acode a sensação de um momento de suspensão num ambiente de cumplicidade. Neste cenário, o véu sugere respeito, deferência.
62. Escultura da familia Nicolau Juncosa. Por Antoni Pujol, Cemitério de Montjuic em Barcelona 63. Escultura da familia Nicolau Juncosa. Pormenor. Por Antoni Pujol, Cemitério de Montjuic em Barcelona 64. Escultura da familia Nicolau Juncosa. Pormenor. Por Antoni Pujol, Cemitério de Montjuic em Barcelona
A escultura no cemitério de Monjuic lembra a curta-metragem de animação The Life Of Death, de Marsha Onderstijn (Holanda, 2012, 5 minutos). A Morte deambula sem destino. Tudo o que toca perde a vida. Encontra um veado distraído numa clareira. A Morte afeiçoa-se, de imediato, ao animal. Nasce uma amizade. Andam sempre juntos. Passa o Outono, chega o Inverno… Um dia, não resistem, abraçam-se! O veado morre e a morte recomeça a deambulação (ver https://tendimag.com/2016/10/13/o-amor-da-morte-pela-vida/).
65. Morte Velada., Cimitero Monumentale di Milano 66. Cemitério Monumental de Staglieno, em Génova. 1851
Nas esculturas do Cemitério Monumental de Staglieno, em Génova, e do Cemitério Monumental de Milão, a morte, velada, é violenta. É uma devoradora de vidas. Ceifeira e caçadora, as vítimas resistem-lhe, mas o desfecho é certo. Nas esculturas tumulares, o véu não respeita, nem cega. Define um limite.

As esculturas veladas remetem para cinco tópicos: o sagrado, a virtude, a beleza, o erotismo e a morte. Dispõem-se como os cinco vértices de um pentágono. Dez segmentos (pares), cinco triângulos e um pentágono, que comunicam e interactuam. Com ligações conjuntivas ou disjuntivas, estão mais perto uns dos outros do que nos predispomos a aceitar.
“Não admiro o excesso de uma virtude, como do valor, se não vejo ao mesmo tempo o excesso da virtude oposta, como em Epaminondas, que tinha o extremo valor e a extrema benignidade; porque de outro modo não é subir, é cair. Não mostramos nossa grandeza ficando numa extremidade, mas tocando as duas ao mesmo tempo e enchendo todo o intervalo” (Blaise Pascal, 1670, Pensamentos, Artigo XXV: IX).
Abraçar os extremos e saturar o intervalo, eis uma missão sisífica. Seria necessário imitar Jesus e os apóstolos: “Foi o que fizeram Jesus Cristo e os apóstolos. Tiraram o selo, rasgaram o véu e descobriram o espírito” (Blaise Pascal, 1670, Pensamentos, Artigo VII: IX). Até os deuses mudam de estado quando rasgam o véu: descobrem o espírito. Tudo indica que rasgar o véu é prerrogativa do divino. Para os mortais, o véu não é ponte, nem é porta, nem é ruína. Os véus persistem, em vida e na morte. Quase lhes tocamos. Ao arrepio da sabedoria de Al Hallãj (c. 858 –922), não é Deus que nos coloca o véu, somos nós que o costuramos.

“O véu? É um cortinado, interposto entre o investigador e o seu objecto, entre o noviço e o seu desejo, o atirador e o seu alvo. É de esperar que os véus sejam apenas para as criaturas, não para o Criador. Não é Deus que porta um véu. São as criaturas que Ele velou” (Al Hallãj, citado por Charles A. Bernard, Théologie Symbolique, Paris, Téqui, 1978, p. 247).
Segundo Al Hallãj, somos criaturas portadoras de véus, descontinuadas, diria Georges Bataille (O erotismo, Porto Alegre / São Paulo, L&PM Editores S/A, 1987, pp. 11 e seguintes). Não há religião que nos religue nem erotismo que nos transcenda. Somos esculturas orgânicas veladas.
Mas existe uma janela! O véu, estorvo ou ilusão, também se despe. Entre as dezenas de esculturas veladas, singulariza-se a Veritas (1853), de Raffaele Monti, patente na Casa Museu Medeiros e Almeida, em Lisboa. Dois séculos após Antonio Corradini, a Veritas retira, em plena modernidade, o véu, desvela-se. É, no entanto, um gesto que não convence Friedrich Nietzsche: “Já não cremos que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o véu…” (Gaia Ciência, Prefácio, 1886). O véu separa, mas não veda. Enxerga-se e pressente-se para além do véu. Com e através do véu, não deixamos de nos aproximar, sem o imperativo dos rasgões epistemológicos, da verdade. Com ou através do véu, namora-se ou afasta-se o outro. Até à paixão!
O segredo das esculturas veladas resume-se à seguinte equação: entre nós e a virtude, existe um véu que nos separa; a todo o tempo, espera-nos o véu da morte. Num caso, não passamos, no outro, trespassamos. O véu vela, desvela e, sobretudo, revela. Revela a fragilidade da condição humana. O véu tem fios trágicos.
Cemitério da Consolação
Os olhos,
não pintes os olhos;
A pele,
A pele excita o vento;
As mãos,
Guarda as mãos para mim.

O meu próximo livro intitula-se “A Morte na Arte”. Falta-me escrever o último capítulo dedicado às esculturas veladas. Há mais de um ano, e não há meio de começar. Aproveito para descobrir uma arte rara. Nos museus, nas igrejas e nos cemitérios. No Cemitério da Consolação, em São Paulo, no Brasil, desencantei esta “Solitudo”: uma escultura velada em granito natural, material, por sinal, raro.

02. Solitudo. Francisco Leopoldo da Silva. Escultura em granito. Cemitério da Consolação em São Paulo. 1922.
“Obra em granito natural e que representou a expressão do modernismo que chegava a São Paulo na década de 20. Essa escultura foi o primeiro nu feminino, colocado em 1922 no Cemitério da Consolação, onde se encontra a provocante “Solitudo”: uma mulher envolta num véu translúcido que mais realça suas formas exuberantes, seminudez mais forte porque é sugerida e não mostrada”. Fonte: Monumentos de São Paulo: http://www.monumentos.art.br/monumento/solitudo).
O Dia dos Mortos e o combate aos mosquitos
« Puisque je doute, je pense, puisque je pense, j’existe » (René Descartes, Discours de la méthode, 1637).
O pensamento por associação em cadeia é contundente. A conjunção logo é um golpe de misericórdia da razão. O que liga o México à marca de repelentes Off?
México, logo Dia de los Muertos, logo gente festiva “que reaviva os mortos”, logo cemitério, logo flores, logo floreiras, logo água estagnada, logo reprodução de mosquitos, logo enfermidades, logo o interesse de plantas que afastam os mosquitos, logo os produtos da Off, marca de repelentes da S.C. Johnson.
Anúncio interessante e criativo, com um colorido humano fantástico em tempo de festa com fundo fúnebre.
Marca: Off. Título: Ramo repelente. Agência: BBDO Argentina. México, Novembro 2018.
A viúva de mármore
Em 1981, o escultor Peter Schipperheyn foi contactado por Laurie Matheson para fazer uma escultura em tamanho natural de sua mulher, Christine. Em 1986, Laurie morre. A viúva, Christine, contacta Peter Schipperheyn para encomendar uma nova escultura, desta vez tumular, chamada Asleep: um nu que demonstra o seu apego ao marido. Asleep encontra-se no cemitério do Mte Macedon, em Victoria, na Austrália.

02. Peter Schipperheyn. Asleep. Mt Macedon Cemetery in Victoria, Australia. 1987

03. Peter Schipperheyn. Asleep. Mt Macedon Cemetery in Victoria, Australia. 1987

04. Peter Schipperheyn. Asleep. Mt Macedon Cemetery in Victoria, Australia. 1987

05. Peter Schipperheyn. Asleep. Mt Macedon Cemetery in Victoria, Australia. 1987
Sensualidade tumular
Halloween, Dia de Todos os Santos e Dia dos Fiéis Defuntos formam um interlúdio em que as fronteiras do além se esbatem. Os vivos visitam os mortos e os mortos visitam os vivos. Uma comunidade de vivos e de mortos. Convido-o a um passeio pelos cemitérios da Europa ao encontro de quatro belas esculturas mortuárias que revelam alguma sensualidade e algum erotismo.
- 01. Cementerio monumental de Staglieno, Génova.
- 02. Old Cemetery in Darmstadt, Germany.
- 03. St. Anne’s Cemetery, Trieste, Italy
- 04. Emil Franz Hänsel, Otto Wutzler, August Rantz – Tomb of Heinrich Schaub at Südfriedhof in Leipzig.
Os anjos também sofrem
Os anjos estão entre as raras figuras do nosso imaginário que tanto vivem nas trevas como na luz. Aprendi com o filme As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, que os anjos amam e sofrem. Os cemitérios, entrepostos da vida e da morte, abrigam muitos anjos inconsoláveis.
Acrescento o vídeo musical My Immortal, dos Evanescence. Porque sim!
Evanescence. My Immortal. Origin. 2000.
Na mão de Deus
Não resisto a acrescentar uma escultura de Gustave Vigeland (https://tendimag.com/2018/09/22/ate-que-a-morte-nos-separe-2/). Lembra Auguste Rodin, de quem era admirador, principalmente a escultura A Mão de Deus. Lembra, também, o soneto A Mão de Deus, de Antero de Quental (segue o original e a tradução em inglês). Para quem acredita em mãos, a mão de Deus promete um alívio infinito.
NA MÃO DE DEUS
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despôjo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.
Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto…
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
Antero de Quental. Os sonetos completos de Anthero de Quental. 1886.
IN GOD’S HAND
In the right hand of God, in his right hand
My heart has found a resting-place at last.
Adown the narrow stairway I have passed
That leads us from Illusion’s magic land.
Like to the mortal flowers with which a band
Of children vainly deck them, I have cast
Away the transitory figment, and the vast
Deceit that Passion and the Ideal demand.
As a small child, upon a gloomy day.
Whose mother lifts him, smiling distantly,
And bears him, at her breast, upon her way.
Past woods and seas, o’er desert sand and sod.
Sleep thy deep sleep, O heart of mine now free.
Sleep thou forever in the hand of God!
Antero de Quental. Sonnets and poems of Anthero de Quental. University of California Press. Berkeley, California, 1922.
O último beijo
O contacto da morte com as vítimas oscila entre, por um lado, o assédio e a violência (Figuras 1 e 4) e, por outro, a sedução e a volúpia (Figuras 2, 3, 5 e 6). A morte ceifa, trespassa com flechas e lanças, persegue e agarra os ainda vivos. Mas também acontece beijá-los com atrevimento e sensualidade (Figura 3). Para não variar, a copresença de Tanatos e Eros. A morte namora a vida que se despede.

03. Niklaus Manuel Deutsch. A donzela e a morte. 1517.

04. Hans Baldung Grien. 1518-20 Death and the Maiden.

05. Hans Baldung Grien. 1518-20 Death and the Maiden.

06. Edvard Munch. Death and the Maiden (1883-4)