Aflição fascinante
Nem sempre se recorre à doçura para cativar o guloso. Por vezes, o isco consiste no inverso: na acidez. É o caso dos anúncios It’s Free. But it Could Cost You/Wooing Jeff e Scary Fast. O primeiro denuncia o cúmulo, o extremo, da inconveniência associado à absorção alienante provocada pela exposição, quase hipnótica, ao canal de televisão TVZN. O segundo, uma paródia de um thriller de terror, introduz o potente e heroico todo-terreno Ford Raptor R que escapa ileso a uma série de ameaças e perigos diabólicos. Ambos aos anúncios resultam imediata e assumidamente desagradáveis. Esta opção não é novidade. Com receitas e doses apropriadas, a adversidade e a perversidade podem compensar.
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Agonia

A estreia de um anúncio realizado por Bruno Aveillan representa sempre uma expetativa auspiciosa. Se a publicidade aspira a ser uma arte, ele é o artista, o novo Michelangelo. Possui um jeito singular de embalar o argumento, habitualmente cristalino, em ritmos encantatórios e beleza extrema e serena. O tema do anúncio Apelo, da Fundação 30 Milhões de Amigos, está no vento: o sofrimento infligido aos animais, mais generosos e mais perfeitos do que qualquer obra humana. Somos a mais cruel das criaturas divinas. Somos sôfregos, e essa sofreguidão nos reduzirá a nada, somos sádicos, e esse sadismo nos afligirá, somos organizados, e essa organização instaurará o caos, somos ignorantes, e essa ignorância nos dará a última lição. Soam as trompetas no hiperbolismo mediático! Sabemos de saber antigo, muito antes do Clube de Roma, as consequências dos nossos atos, o que estamos a fazer à natureza e à própria humanidade. Na ficção científica, na fantasia, nos anime, na arte, nas performances, nos discursos adolescentes, os sinos não param de tocar. Anunciam um novo apocalipse, desta vez, terrestre. Os cavalos já não são celestiais, mas máquinas virtuais com outros nomes: a peste, a guerra, a fome e a morte chamam-se agora ambição, cupidez, incontinência e incúria. Perante as imagens pungentes da ameaça iminente, o ser humano, em vez de se retrair, parece comprazer-se, sem medir as palavras, em orgasmos intelectuais, estéticos e morais, reação de que este artigo é um exemplo. Será esse o destino do Apelo de Bruno Aveillan? Provavelmente. Contudo, como diria Galileu, a Terra gira! Em torno da destruição. E a humanidade avança! Para o suicídio. O grito profundo e interminável da agonia animal, mais arrepiante do que as sirenes das ambulâncias rumo aos cuidados intensivos, também é o nosso espelho da morte.
Sheep. Pink Floyd. Excerto.
Hopelessly passing your time in the grassland away
Only dimly aware of a certain unease in the air
You better watch out
There may be dogs about
I’ve looked over Jordan, and I have seen
Things are not what they seem
What do you get for pretending the danger’s not real
Meek and obedient you follow the leader
Down well trodden corridors into the valley of steel
What a surprise
The look of terminal shock in your eyes
Now things are really what they seem
No, this is no bad dream.
Viva a família!

Os anúncios So Good e Let Life Happen, ambos promovidos por companhias de seguros, podem não parecer mas são, certamente, por eventual cambalhota de sentido, dois incentivos à vida familiar e à natalidade. São, não são?
Telemóveis

No filme Countdown, uma aplicação de telemóvel alerta as pessoas para o tempo que lhes resta de vida (ver trailer). O telemóvel é, deste modo, associado à ameaça e à morte. Não é o único vídeo em que o telemóvel possui uma aura fúnebre. Nos anúncios The Afterlife Bar, da Transport Accident Commission Victoria (2019: https://tendimag.com/2019/08/13/um-bar-do-outro-mundo/) e nos dois anúncios da AT&T, The Face of Distracted Driving (2018: https://tendimag.com/2018/05/28/o-discurso-do-morto/) e The Unseen (2016: https://tendimag.com/2016/09/12/distracao-fatal/), os falecidos contam como encontraram a morte devido ao abuso do telemóvel.
À perdição opõe-se à salvação. Nada de espantar! Como repete Moisés Martins, citando o poeta Holdërlin, “Lá onde está o perigo também cresce o que salva”. Do drama, saltamos para a apologia. O telemóvel Good Vibes app, do anúncio Caring for the Impossible, permite aos cegos, surdos e mudos comunicar. A espanhola Claro consegue, no anúncio Qué le dirías (https://tendimag.com/2014/12/22/telemovel-magico-novo-conto-de-natal/), conectar, graças ao telemóvel, familiares e amigos que não se encontravam há décadas. E, assim, de prodígio em prodígio.
Para além do drama e da apologia, existem outros estilos de anúncios com telemóveis. Por exemplo, a ironia, o humor e a fábula. A série de anúncios Les Dumas, da Bouygues Telecom, aposta no humor e na ironia. Nem drama, nem apologia, mas dentro e fora, com focagem variável e palavras que lembram Prévert. Os anúncios Les Dumas estrearam em 2012. O mesmo humor e a mesma ironia percorrem o anúncio Phone History, da Three (2018: https://tendimag.com/2018/10/21/parada-de-mitos/).
Existem anúncios de telemóveis que são fabulosos. Polissémicos e com várias camadas de leitura. A estetização é cuidada. Imagens de sonho. Acresce a polissemia. Perfila-se uma ambiguidade nos cenários e nos comportamentos, que propicia uma espécie de currículo oculto. Os episódios do anúncio Real people, Real vacations, da Motorola, convoca pessoas absortas ao telemóvel nos locais mais maravilhosos e interessantes do planeta. Pressupõe-se que passam as férias mais atentos aos telemóveis do que aos locais que visitam. Que efeito produz este anúncio no público. As imagens, verdadeiras protagonistas, são esteticamente fantásticas. O alheamento das pessoas constitui uma nota de humor. Beleza e humor geram boa disposição, face a quem? Face à Motorola. Navegamos nas águas da fábula e da ilusão.
Telemóvel: O mundo na mão

Os meus artigos mais lidos não são nem os mais bem escritos nem aqueles que têm conteúdo mais interessante; os meus artigos mais lidos são aqueles que têm um título mais apelativo e são publicados à hora, no dia e no canal certos.
Todas as sociedades cultivam as suas ameaças. Receios reais ou imaginários. Os judeus, no reinado de Don Manuel e no triunfo totalitário de Hitler. Os revisionistas, na era Estaline, e os comunistas, durante o Macarthismo. Hoje, as ameaças tendem a associar-se mais a objectos, eventualmente, técnicos. No pós-guerra, a bomba atómica era o quinto cavaleiro de Apocalipse. Nos anos sessenta, os cabos de mar perseguiam os biquínis nas praias. A televisão era a mãe de todas as alienações; o maço do tabaco, um caixão funesto em vala comum; a Internet, uma aranha pérfida à escala global; e, agora, os telemóveis, um malefício portátil generalizado.

Face aos riscos dos telemóveis, existe a convicção de que urge fazer tudo e a sensação de que nada há a fazer. Situação propícia à inutilidade histérica do Estado. Por generalização abusiva, todo cidadão é um caso particular do geral. Esboce-se um “exemplo teórico”: Fulano faleceu ao engolir um telemóvel (notícia de primeira página); conclusão: todos somos passíveis de engolir um telemóvel (prognóstico); contra-ordenação preventiva: falar com o telemóvel a menos de um metro da boca é passível de multa; campanha: o telemóvel é um comestível fatal, mantenha-o longe do tubo digestivo.
Na época balnear, pior do que o telemóvel, só o peixe-aranha. Se for ao mar, vá e volte, mas sem telemóvel: pode electrocutar os caranguejos. Estou a brincar, mas a coisa manifesta-se séria; é, literalmente, a primeira vez que “temos o mundo na mão”!
“Canta, canta, amigo canta
Vem cantar a nossa canção
Tu sozinho não és nada
Juntos temos o mundo na mão!!!”
(António Macedo. Canta, amigo canta. 1974)
Em suma, se quer sobreviver à décima primeira praga, a praga dos teleles, conduza um Nissan Rogue, com música de Conan Osíris (Telemóveis, 2019). Afigura-se-me, contudo, que a praga dos telemóveis se pauta por um medo irónico. Menos drama, menos tragédia, menos profecia; mais humor, ambivalência, reflexividade e abertura dialógica.