Escravos das Trevas, escravos da Luz

Rejection of the gift

A sabedoria das alturas de pouco serve se não descer à vida quotidiana. Os diálogos de um videojogo conseguem, por vezes, evocar figuras como, por exemplo, um Sócrates digital a relembrar que “o poder se torna mais forte quando ninguém pensa”.

Estreado ontem, o vídeo da versão Shadows of Argus do jogo World of Warcraft assume que servir a Luz não é menor escravidão do que servir as Trevas. Illidan Stormrage é uma personagem cujos passado e corpo estão marcados pela sua busca de poder das Trevas. Nesta passagem, é-lhe oferecida a hipótese de se redimir, as suas cicatrizes serão saradas, a sua antiga vida será esquecida e tornar-se-á um campeão da Luz. Ele rejeita a oferta. As cicatrizes são o que o definem, o seu destino é dele próprio.

Este pensamento não é novo, mas teima em ser raro. Pese a pós-modernidade, somos seguidores da Luz. Adverte-nos o vídeo que o mais avisado é não ser nem servo das trevas, nem servo da luz. Cada um deve desenvolver o seu carácter e assumir a responsabilidade pelo seu caminho. O nosso tamanho não se mede pelo tamanho dos deuses e dos mestres. Há quem acredite que somos grandes porque o nosso deus ou o nosso mestre são grandes. A nossa medida, a “medida do homem”, é o nosso tamanho e o nosso desafio reside em ser mestres de nós próprios. Há quem acredite que por seguir a luz vai no caminho certo. Quando muito, vai mais iluminado. Não resisto a partilhar uma anedota que costumava contar nas aulas de métodos.

De noite, um bêbado regressa a casa. Chegado à porta, dá-se conta de que perdeu a chave. Não tem outro remédio senão procurar. Passado algum tempo, aproxima-se um amigo que lhe pergunta:
– Que estás a fazer?
– Estou à procura da chave.
– E perdeste-a aí, debaixo do candeeiro?
– Não sei! Mas aqui vê-se melhor.

Tentava, com esta anedota, alertar os alunos para um vício corrente: a falta de originalidade associada à tendência para estudar os temas em voga, de modo que todos descobrem mais ou menos o mesmo e fazem muitas reuniões e publicações para partilhar o que quase todos descobriram. A investigação, normalmente financiada (as entidades financiadoras costumam ser alérgicas a originalidades), reduz-se, assim, a uma clareira super iluminada numa Amazónia de ignorância.

Este artigo foi escrito a dois. Beneficiei da inspiração e da ajuda do meu rapaz mais novo, o Fernando.

Shadows of Argus. World of Warcraft. Agosto 2017.

Tags: , , , , , ,

One response to “Escravos das Trevas, escravos da Luz”

  1. Beatriz Martins says :

    Garantida a continuidade do Tendimag, bafejado. Tocaram na tecla certa. Dizia eu a minhas orientadoras – Não gosto muito de dizer o já dito, ou previsto. Estou é doida, ou quase! Não restem dúvidas ” clareira super iluminada numa Amazónia de ignorância”. Assim me sinto.

Leave a Reply

%d bloggers like this: