Paixão hiper-real

How real is real? (Paul Watzlawick, 1976). Até que ponto o real é real? E o hiper-real, até que ponto é mais real do que o real? Existem portais para outros mundos? E para o nosso mundo? Até que ponto um avatar é um outro eu? Je est un autre ( Arthur Rimbaud, 1871). Até que ponto sou eu? Até que ponto sou outro? Até que ponto interajo comigo próprio? O que parece certo é que a paixão é muito real. Move multidões e fortunas. O trailer oficial do videojogo FIFA 22, da Electronic Arts, possui a arte de levantar, como um torvelinho, este conjunto de questões.
Um contra um, todos por todos

O videojogo afirma-se como vanguarda das indústrias do lúdico e do audiovisual. Potente, competitivo, flexível, acelerado, certeiro e ubíquo. Como o arco de Dario (sobre o arco de Dario, rei da Pérsia, recomendo o artigo: O Espetáculo do Poder).
Não é de admirar que os anúncios a videojogos constem entre os mais impactantes das últimas décadas. HUMANKIND (Amplitude Studios) frisa a perfeição apelativa, narrativa, técnica e estética. Nada é descurado: a luz, a cor, a fotografia, o desenho, os cortes, os contrastes, o enquadramento, a profundidade, os planos, os ritmos, as sequências, o som, as referências… Qualidade, critério e criatividade. HUMANKIND recupera uma opção cada vez mais frequente: a substituição da figura humana por objetos e símbolos. Ganha em projeção e sublimação. Os objetos e os símbolos tornam-se, porventura, mais humanos do que o humano.
Retenhamos a lição: agonístico e diabólico, o universo, assevera-se exíguo para dois protagonistas; o anúncio termina, porém, com uma avalanche de multidão. Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto: o anúncio não enjeita ressonâncias bíblicas e míticas: o crepúsculo, egoísta e homicida, de Caim, e a alvorada, coletiva e mobilizadora, de Moisés. Onde não cabem dois, cabem milhões.
Fernando Gonçalves e Albertino Gonçalves
Modernidade e tradição. Música japonesa.

A indústria dos videojogos constitui uma actividade em crescimento acelerado.
Le revenu mondial du jeu vidéo est estimé à 81,5 milliards de dollars américains en 2014. Soit plus du double de celui du chiffre d’affaires de l’industrie cinématographique mondiale en 2013. En 2015, il est estimé à 91,5 milliards de dollars. / Les plus grandes nations selon les revenus estimés du jeu vidéo en 2016 sont la Chine (24,4 milliards de dollars), les États-Unis (23,5 milliards de dollars) et le Japon (12,4 milliards de dollars) (fonte : https://fr.wikipedia.org/wiki/Industrie_vid%C3%A9oludique).
O jogo “Red Dead Redemption 2”, lançado em 2018, facturou mais de 600 milhões de euros em três dias. No mesmo ano, o filme recordista de bilheteira Avengers: Infinity War não ultrapassou os 570 milhões de euros. Lançado em 2013, o Grand Theft Auto V (GTA V) facturou €900 milhões. Trata-se de um fenómeno que abrange todas as idades: no conjunto dos jogadores do mundo, apenas um em cada cinco tem menos de 20 anos.
“Os videojogos agora são transversais. Nos anos 80, eram uma coisa de nicho, mas, com o passar do tempo, as crianças tornaram-se adultos e, agora, o jogo é para o pai e para o filho”, refere Tiago Sousa, da Associação das Empresas Produtoras e Distribuidoras de Videojogos (AEPDV). “É hoje um meio influenciador na cultura popular como poucos alguma vez foram.” (https://visao.sapo.pt/atualidade/economia/2018-12-09-o-negocio-dos-videojogos-e-um-faroeste/).
Um meio influente na cultura popular”, mas não só. Nas outras culturas, também. Os videojogos são uma esponja: absorvem, sem cerimónia, traços e valores culturais de todo o mundo. Mas também irradiam traços e valores culturais por todo o mundo. De uma forma polifónica. Envolvem texto, informática, psicologia, música, dança, desenho, audiovisual, mitologia… Particularmente admirável é a forma como convocam modernidade e tradição.
O grupo japonês 傷林果 (shōrinka) caracteriza-se pelo recurso a instrumentos musicais tradicionais. Em Bad Apple interpretam uma música associada ao videojogo Lotus Land Story (quarto jogo da franquia: Touhou Project), lançado em 1998.
Fernando e Albertino
Vício
Segue o fruto do vício: o último artigo do Tendências do Imaginário do ano 2019.
Foi lançado, recentemente, um novo videojogo do Dragon Ball Z: Kakarot. No trailer, um jovem adulto recorda a sua relação com o Dragon Ball. Aproxima-se de um otaku, um fã obstinado. O trailer realça esse perfil. O protagonista imita os heróis e os seus gestos. Expõe-se, absorve e “reproduz”. O fenómeno é bom ou mau consoante as perspetivas. Para quem concebeu o trailer, parece desejável. Pessoalmente, não sei. Quando era pequeno, adorava os filmes, os livros e as brincadeiras de cowboys. Comprava livros usados, com ou sem quadradinhos, numa tabacaria do Largo dos Penedos, em Braga. Trocávamos livros de cowboys como quem troca cromos. A imersão não era menor do que face a um ecrã. Percorria quilómetros para ver uma série na televisão espanhola ou portuguesa: Bonanza, Jim West, Daniel Boone… Um western esgotava a geral do cinema Pelicano. Brincávamos aos cowboys, uma espécie de escondidas em que dois grupos se caçavam mutuamente e o toque era substituído pela visão: “mãos ao ar, vi-te primeiro”. No quintal, acertava com flechas feitas com varetas de guarda-chuva nas laranjas metamorfoseadas em índios. Cheguei a lutar com o travesseiro. Boa parte dos meus desenhos retratava cowboys. Tive pistolas de plástico e uma máscara de índio. Até falava com o sotaque dos atores norte-americanos. O cavalo era o meu animal de sonho. Um dia, o meu padrinho diz-me: – Vamos comprar um cavalo. Partimos para a Póvoa de Varzim. Deu as suas voltas e, a um dado momento, entrámos num edifício amplo que tinha cavalos. Falou com as pessoas do local. Regressou: – Só vendem os cavalos com as carroças. Respondi-lhe: – Assim não quero! É assim que se jardinam os sonhos das crianças. Em suma, tal como agora existe o otaku dos anime e dos mangá, eu era um otaku da coboiada. Teve efeitos? Naturalmente. A focagem é, por mais fantástica que seja, um estreitamento e um enviesamento do mundo. Se Armand Mattelard analisasse os livros, as séries e os filmes de cowboys, descobriria, como nas revistas da Walt Disney, falácias e perversidades. Existem eras, os anos cinquenta e sessenta foram a era dos cowboys; seguiu-se a era dos espiões e, um pouco mais tarde, a era dos anime e dos mangá. Há eras e eras, a dos cowboys coincidiu com a guerra fria. Ficaram-me marcas negativas? Tenho o corpo todo torto de andar a cavalo e quando aponto o dedo saem balas. Por acréscimo, fumo como os cowboys da Marlboro.
Vou festejar. Bom Ano!
Delírio

De regresso a Braga, reencontro o Delírio. Tem bom aspecto! Fomos amigos. O delírio mais requintado é o delírio da intelligentsia. Com ou sem laços. Com uma varinha mágica na mão, o “intelectual” delira o mundo. No essencial, nada tenho a opor ao delírio. Não gosto, porém, quando o delírio alheio salpica a minha realidade.
Delirantes e vertiginosos, os videojogos ligam mundos: o nosso e o dos outros, dentro e fora do ecrã. A publicidade não hesita em reforçar esta propensão.
Magic. Jogar aos monstros

“Il est bien peu de monstres qui méritent la peur que nous en avons.” (André Gide, Les Nouvelles Nourritures, 1935).
Vampiros, lobisomens, serpes, ogres, dragões, harpias, minotauros, demónios, bruxas, papões, cabeçudos, zombies, são figuras recorrentes do imaginário fantástico da humanidade. Afirmam-se como entidades monstruosas e grotescas. A relação com os monstros desafia o nosso entendimento. Wolfgang Kayser (O Grotesco, 1957) define o grotesco, inspirando-se em Sigmund Freud, como estranhamento. O mundo que nos é familiar torna-se estranho, eventualmente ameaçador. “Foge debaixo dos pés”. Com o grotesco ocorre uma desfamiliarização do familiar. Há algo de estranho neste estranhamento. Como conceber as situações em que o estranho se torna familiar? Quem passou anos a fio a ler mangas ou a imergir em videojogos pode avançar-se que as respetivas imagens lhe permanecem estranhas? O Shrek e o Smeagol são estranhos? São uma ternura de brinquedos. Esboça-se uma certa cumplicidade na experiência do estranhamento, na própria configuração do estranho. Um dos principais contributos de Wolfgang Kayser consistiu na concepção do grotesco e do estranhamento como uma relação dinâmica e não como um confronto de essências desencontradas.

O Shrek assevera-se mais familiar, menos grotesco, do que o mais mediático dos presidentes da república. Nesta espécie de interacção dialógica acontece um efeito de Coco. Como sublinha Omar Calabrese, a propósito do filme A Coisa (2011), de John Carpenter, há monstros que são vazios e, mais do que disformes, mostram-se informes. Carecem do envolvimento, do “sacrifício”, das vítimas para assumir a missão e ser o que são. Coco, à semelhança do Papão, é um monstro originário de Portugal e da Galiza. “Não é o aspecto do coco mas o que ele faz que assusta a maioria das crianças. O coco é um comedor de criança (um papa-meninos) e um sequestrador. Ele imediatamente devora a criança e não deixa rastro dela ou leva a criança para um lugar sem volta. Mas ele só faz isso às crianças desobedientes (…) O coco toma a forma de qualquer sombra escura e fica (…) de guarda” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Coca_(folclore). Apetece relembrar que “os monstros somos nós”. O fantástico conhece, nos nossos dias, uma exuberância inédita. O jogo Magic, antes com cartas materiais, agora também online, é um caso de sucesso global. Emerge, submerge e reemerge mais forte. Ao ritmo da adesão lúdica e emocional dos jogadores.
Albertino Gonçalves & Fernando Gonçalves.
Trelas Electrónicas
Tomar uma torre de controlo de um aeroporto por um videojogo pode ser perigoso. O trabalhador e o posto de trabalho devem estar em harmonia. Esta é a preocupação da agência de emprego Keljob: a cada um o emprego para que está vocacionado.
Não há registo na história da humanidade de sociedades com tantos meios de vigilância e controlo como a actual. Os poderes (governo, justiça, finanças, empresas, redes) transbordam de recursos de vigilância e controlo. O mundo alberga paradoxos: A vigilância e o controlo nunca foram tão intrusivos e nós nunca nos sentimos tão livres! Há trelas e trelas! Algumas devem ser confortáveis.
A canção Space Oddity, de David Bowie, vem a preceito. Não é animadora, mas a vida não é um eterno magusto.
Carregar na imagem para aceder ao vídeo.
Marca: Keljob. Título: Tour de Contrôle. Produção: Byzance. Direcção: Gérôme Rivière. França, 2002.
David Bowie. Space Oddity. Ao vivo em 1969, ano de estreia da música.
Apagar o inferno
Os trailers dos videojogos situam-se na vanguarda da estética e do imaginário contemporâneos. Chamam a si os maiores recursos e os melhores profissionais e criativos. No trailer We All Lift Together, do videojogo Warframe, criaturas, mistos de máquinas e seres humanos, surgem como guerreiros do trabalho, num estaleiro amplo, composto por partes metálicas e partes líquidas.
We All Lift Together. Warframe. Videojogo. Julho 2018.
Ouve-se um coro, um hino. Lembra as canções de resistência. Escolho quatro, uma por país eurolatino do sul: França, Le Chant des Partisans (Yves Montand); Itália, Bella Ciao (Yves Montand); Portugal, Grândola Vila Morena (José Afonso); e Espanha, Si Me Quieres Escrebir (Marina Rosell, a capella).
Chant des Partisans. Intérprete: Yves Montand. França. Resistência, II Guerra Mundial.
Bella Ciao. Intérprete: Yves Montand. Itália. Resistência, II Guerra Mundial.
Grândola Vila Morena. Intérprete: José Afonso. Portugal. Resistência ao fascismo.
Si me quieres escribir. Intérprete: Marina Rosell. Espanha. Resistência, Guerra Civil.
Pac-Man, o Papa Pontos
Tenho pesadelos. Deve ser de pensar de mais. Escorregam as margens para o subconsciente. Sonho, por exemplo, que a minha proeminência abdominal é tão grande que preciso de estacas para a segurar. Outras vezes, sonho que faço parte de um processo: o processo de Kafka. “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Logo, nada vale a pena. Nem a obra, nem a “governança”, nem a tripulação, nem o farol. Trata-se de um jogo de croquete à maneira da Rainha de Copas. A sabedoria exibe-se coxa, como o Perna de Pau: hipertrofia da investigação; hipotrofia do ensino. Investe-se na ciência como quem aposta no totoloto. Resultados? Encontros, papers, citações, corredores, rácios, concursos e pontos. Muitos pontos! Parece um quadro de Georges Seurat. Melhor, um Tetris, para encaixe, associado a um Pac-Man, para comer pontos. O pesadelo torna-se insuportável. Faço força para acordar. Estremunhado, oiço: “faltam pontos, faltam pontos, faltam pontos, para mudar de nível”. Esqueci-me de desligar a consola. É um alívio acordar para a realidade deste “admirável mundo novo”: Ciência Portugal 2018 – Star Trek.
Para conciliar realidades (hoje, costuma dizer-se plataformas) nada como a música. Clássica, tocada por dois virtuosos de outra época: Narciso Yepes e Andrés Segovia.
Fantasía para un Gentilhombre de J.Rodrigo. Homenaje de Narciso Yepes a Andrés Segovia. Madrid, 1987.
Andrés Segovia at El Prado , Albéniz’s “Asturias-Leyenda”. 1967.