A shrekização do mundo
Norbert Elias estudou o processo civilizacional que marcou a história do Ocidente desde o séc. XII. A civilização dos costumes promoveu a autocontenção dos instintos, da agressividade e da promiscuidade. Abrangeu os espaços públicos e privados. Para além das ideias, incidiu sobre os corpos. Os corpos que importava demarcar, com “muralhas de honra” (Emile Durkheim), e distanciar, com “esferas de intimidade” (Georg Simmel). Corpos rectos e polidos, avessos a protuberâncias, reentrâncias, rugosidades e disformidades. Corpos vedados, com orifícios tapados ou disfarçados. Bocas, de preferência, fechadas. Risos reduzidos a sorrisos. Odores desodorizados. Saliva travada. Neste processo, acabámos alérgicos a um rol de estímulos: ao sangue, ao grito, à histeria, à respiração, à transpiração, aos ruídos corporais e, até, à dor, tanto a nossa como a dos demais. A Barbie e o Ken surgem, em 1959 e em 1961, como um protótipo do duplo movimento deste corpo civilizado: estilização e esterilização.
A teoria do Norbert Elias consta entre as mais interessantes e mais consistentes da história das ciências sociais. Continua a ser, abundantemente, corroborada por inúmeras tendências actuais. Mas, a seu lado, sempre subsistiu o corpo grotesco, excessivo, híbrido, grosseiro, prolixo, bestial. A civilização dos costumes coexiste com a shrekização do mundo, sobretudo no que respeita aos corpos. Corpos com carne, sexo e desejo. Arriscando uma inconveniência intelectual, corpos com órgãos, prenhes de funções. Na shrekização do mundo, a estupidez faz caretas à razão e o manguito ao poder.
A publicidade está apostada em nos shrekizar. Daí retira proveito. No primeiro anúncio, as goelas dos espectadores parecem querer engolir o ecrã e a nós próprios, por tabela. O segundo anúncio tem o dom de evidenciar que, na realidade, a civilização e a shrekização podem misturar-se. O casal é tão Barbie e tão Ken! Tão afectados! Tão lavadinhos! Mas aquelas exalações. a pedir um circulador de ar, lembram o “estádio do respiro”, proposto pelo sociólogo psicanalista Jean Louis Tristani (Paris, Minuit, 1978). São exalações libidinosas, antecipações de um orgasmo telecomandado. Assim vai o mundo, assim continua a vida… Shreks e barbies a beber o presente e a arrotar o futuro.
Cliente: ESPN. Título: The Gift. Agência: Wieden+Kennedy Amsterdam. Holanda, Setembro 2011.
Marca: Pear Drop. Título: Date. Agência: Jwt London Rattling Stick. Direcção: Austen Humphries. Reino Unido, Agosto 2011. Viral.