Apelo ao prazer
Este mosaico grego foi encontrado em 2012 na província de Hatay, no sul da Turquia, correspondente à antiga Antioquia. Datado do século III a.C., representa um esqueleto, sob fundo negro, com um copo na mão esquerda. Ao seu alcance pão e uma garrafa de vinho. As letras dizem: “sejam alegres e aproveitem a vida”. Uma exortação próxima do carpe diem de Horácio. Soa estranho vindo de um esqueleto. Adquirimos o hábito de associar os ossos humanos à vanitas (vaidade, vacuidade). No entanto, a morte risonha, divertida ou boa companheira é uma figura frequente, mormente, na Idade Média e no Renascimento. Sem receio de cometer um anacronismo, este mosaico é um dos “posters” mais interessantes da história da humanidade.
Sileno, o vinho e o burro
Não é apenas nas festas medievais ou durante a Bugiada de Sobrado que o burro é montado às avessas. Sileno, semideus, o mais velho dos sátiros, faz-se acompanhar por um burro. Constantemente ébrio, Sileno foi tutor de Dionísio, a quem passou a paixão pelo vinho. A sabedoria de Sileno reside na sua ebriedade. É sábio por não estar sóbrio. Cumpre ao burro aguentar esta carga obesa e periclitante. A posição mais típica de Sileno em cima do burro é às arrecuas. Montar um burro às avessas condiz com a figura de um semideus que se entrega ao vinho e ao sexo, semeando a confusão e a desordem.
Sileno gostava de visitar o mundo dos homens, mas nunca falava com eles. Exceto uma vez. Tão bêbado estava, que se perdeu do grupo que o acompanhava. O rei Midas encontrou-o e desafiou-o a dizer o que era melhor para os homens. Sileno calou-se, como era seu costume. Não falava com os homens. Mas rei Midas tanto insistiu, que Sileno quebrou, por uma única vez, o silêncio:
“– Ignóbil raça, essa a dos homens, efêmeros rebentos do acaso e dos maus dias. Tão afastados estais da natureza que nem mesmo sabeis o que é melhor para vós próprios. Seres patéticos; e tu, filho de Górgias e Cibele, a quem chamam de Midas, Rei da Frígia, nada mais és senão fiel representante desta raça. Não há dúvida, estás a altura dela. Não vês? Por quais tolas razões queres saber algo que para ti é inalcançável? O que é o melhor para os homens, tu me perguntas. Creia-me, para ti, melhor mesmo seria não sabê-lo. Porém, como estás obstinado, revelar-te-ei o que não precisas para te manteres são. O melhor para ti seria não teres vindo à luz, não teres nascido. Não ser, ser nada, isto seria o melhor para ti e para os demais da tua estirpe. Contudo, como hoje te encontras a distância do infinito de tal logro, resta-te ainda uma opção: agora, o melhor para ti é cedo morrer. Assim, retornarás a tua verdadeira condição pretérita, menor que o mínimo. “ (https://scribatus.wordpress.com/2013/08/24/sileno/).
O rei Midas deu abrigo a Sileno. Poucos dias depois, Dionísio vem buscar Sileno. Agradecido, diz a Midas para formular um desejo. O pedido foi que tudo o que tocasse se transformasse em ouro. Um presente envenenado. Mas essa já é outra história.
In Vino Veritas
No inverno, entre São Martinho e São Nicolau, castanhas e vinho! Num fresco de Pompeia, do século I, Baco aparece todo vestido com uvas (figuras 1 e 2). O vinho, apreciado pelos antigos egípcios, gregos e romanos (figuras 3 e 4), conhece na Idade Média um franco recrudescimento. Graças, sobretudo, aos monges e aos mosteiros (figura 5). Existem muitas iluminuras e tapeçarias medievais alusivas ao vinho. Selecionei uma pequena mão cheia.
Nas Très Riches Heures du Duc de Berry (1400), uma vindima ilustra o mês de Setembro (figura 6). Nas Grandes Heures de Rohan (1415), uma iluminura contempla o ciclo do vinho: vindima; transporte; pisar das uvas; introdução do vinho nas pipas (figura 7). A tapeçaria exposta no museu de Cluny, do início do séc. XVI, acrescenta a imagem de uma prensa mecânica, a lembrar uma lagareta (figura 8). Dá o cacho de uvas tantas voltas para um dia transbordar das taças, bebido em companhia (figura 9), e, por vezes, em demasia (figura 10).
- 01 Baco e o Vesúvio. Museu Arqueológico Nacional de Nápoles. Fresco. Séc. I.
- 02 Baco e o Vesúvio. Museu Arqueológico Nacional de Nápoles. Fresco. Pormenor. Séc. I.
- 03 Vindima e prensa das uvas. Mosaico. Igreja de Santa Constanza. Roma. Séc. IV.
- 04 Mosaico alusivo à vinha e a vinificação. Igreja dos Santos Mártires Lot & Procopius. Khirbet Mukhayyat, Jordânia. Séc. VI.
- 05 Iluminura. Monge a provar o vinho. Aldobrandino of Siena. Li livres dou santé. British Library. Séc. XIII.
- 06 Très Riches Heures du Duc de Berry. Mês Setembro. C. 1400.
- 07 IGrandes heures de Rohan. Mês de Outubro. Maître de Rohan, Anjou. 1415.
- 08 Vinificação. Início do séx. XVI. Museu de Cluny.
- 09 Tapeçaria de Bayeux. Séc. XI
- 10. L’ébriété. Ibn Butlan, Tacuinum sanitatis, ca. 1395, Paris.