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Pesadelo

Cornelis Saftleven. Tentação de Santo Antão. 1629

“Instituição com números, sem pensamento, com o quotidiano académico a pulsar ao ritmo da máquina, numa desenfreada mobilização tecnológica para o mercado, para a estatística e para o ranking, a Universidade faz, além disso, a entronização dos procedimentos corretivos e ortopédicos, certificando no ensino e na investigação meras rotinas e conformidades, eficiências e utilidades” (Moisés de Lemos Martins, ” Da Universidade de Sokal, Crato e Passos Coelho, à Universidade da ciência como aventura do pensamento”, Correio do Minho (março 2018): https://correiodominho.pt/cronicas/da-universidade-de-sokal-crato-e-passos-coelho-universidade-da-cincia-como-aventura-do-pensamento/9506; consultado em 16/11/2022).

Acordei, sobressaltado e trémulo, de um pesadelo apocalíptico. Tomada por uma vertigem autofágica, a Universidade estava em vias de perder três dos pilares que a caracterizaram durante séculos: a sabedoria, o humanismo e o ensino. A sabedoria para o conhecimento a metro; o humanismo para as novas regras do mercado dos bens científicos; o ensino para a concorrência de outras fontes de aprendizagem tais como as empresas e as plataformas do tipo YouTube. Ainda bem que não sou faraó do Egipto. Tratou-se apenas de um mero sonho ruim, que, no entanto, teve a má sina de me deixar perturbado.

An American Prayer / The End. Jim Morrison. An American Prayer. Music By The Doors. 1978

Notável e notório. A formiga e a cigarra, o galo e a galinha

Moledo, domingo. Proporciona-se um mergulho no adubo humano.

Notável é aquilo que é “digno de nota”, “merecedor de consideração e apreço”; notório, o que é notado, “conhecido por um grande número de pessoas”. Pode-se ser notável sem ser notório; e notório, mas não notável. Numa sociedade da imagem, da rede e do artifício, prevalece o notório. Chegados a esta encruzilhada, apetece reequacionar a fábula de La Fontaine: hoje, quem morre de fome não é a cigarra, notória, mas a, a formiga, notável. A cigarra polariza o reconhecimento. Sendo esta a verdade mundana, importa refundar as pragmáticas, as éticas e as teodiceias.

A propósito da cigarra e da formiga, acode-me a relação entre o galo e a galinha, cantada, com inspiração e humor, por Sérgio Godinho.

Sérgio Godinho. O Galo é o Dono dos Ovos. Pano-Cru. 1978. Ao vivo no Centro Cultural de Belém.

Publiquei, em 2011, uma fábula no ComUm, boletim da Universidade do Minho, com o título “Fábula comUM” (contemplada no Tendências do Imaginário com o título “Fábula das formigas sabichonas”). A Universidade tinha a virtude da homeopatia: sabia digerir o “mal”, a adversidade, expondo-se à crítica mordaz e sarcástica. É certo que as farpas se afogavam na gordura académica. Destilada e delirante, a escrita enferma de um vício que não me larga: discorrer sem explicitar o assunto. O leitor que adivinhe e o resto reverbere. O “segredo” remetia para a implementação da política dos rácios alunos/docentes consoante os cursos, depressa extrapolada, abusivamente, para os departamentos. Um veneno que as universidades, em particular a do Minho, devoraram. Este desvio de uma fórmula de financiamento para uma forma de governo desvirtuou o mundo académico, resultando numa legitimação e num reforço dos interesses e privilégios instalados ou em vias de instalação. Uma deformação que, a par do controverso processo de Bolonha, contribuiu estruturalmente para o atual desequilíbrio institucional das universidades portuguesas.

Para aceder à “Fábula das formigas sabichonas”, carregar na imagem seguinte ou no endereço https://tendimag.com/2011/11/13/fabula-das-formigas-sabichonas/

Desequilíbrio fórmico

Dono do tempo?

“Agora não é mais dono do seu tempo?” Pergunta uma amiga. Na realidade, ando ocupado. Talvez para fugir do vazio, vou-me deixando ocupar. Os meus colegas e amigos também andam ocupados, mas com coisas importantes: meetings, calls, papers, media, projects, reports, classrooms, contracts, bureaucracies, protocols, platforms, virtualities, travels, budgets, referees, metrics, contests, prices, rankings, positions & propositions. As minhas ocupações resumem-se a minudências invisíveis: revejo e traduzo textos alheios, presto-me a ser organizador sombra ou suplente de última hora, preparo aulas e encontros na aldeia, entrego-me a investigações vadias, intermitentes e gratuitas, edito e reescrevo livros que nunca têm fim, cuido da saúde que bem precisa e convivo cada vez mais com os amigos. Vale-me isso e a música, minha musa e companhia. E insisto em pingar pensamentos e sentimentos neste blogue. É certo que, reformado, a maioria destas atividades, decididas ou aceites, são livres. Mas uma vez iniciadas deixam de o ser. Devoram recursos e tempo. Regressando à pergunta inicial: neste momento, sou menos dono do meu tempo, mas provisoriamente. Trata-se de uma perda a que não me resigno, que não sei se prefiro à riqueza de ter todo o tempo do mundo.

Franz Schubert. Serenade. 1826. Camille Thomas and Beatrice Berrut. Live at Palais des Beaux-Arts in Brussels on June 5, 2011
Vanessa-Mae. A Poet’s Quest (For a Distant Paradise). Vanessa-Mae Storm. 1997

Saudades das aulas

Geese Book. Nuremberga. Alemanha. Entre 1503 e 1510. Volume I – fol. 186r. Morgan Library.

Saudades das aulas? Comparativamente, as restantes experiências universitárias, a carreira, os cargos, a burocracia, os rituais e as rotinas, revelam-se irrisórias ou simplesmente substituíveis. De fraca ressonância, devoto-as ao alívio do recalcamento. Continuo a investigar, a intervir, a comunicar e a acarinhar amizades. Nos momentos aziagos, menos lúcidos, tenta-me reduzir os cerca de quarenta anos de profissão académica a uma extensa insignificância. Acontece nas quebras de polaridade mais negativa. Consola-me a memória de algumas iniciativas, fora de regras e além muros, das quais, não sendo puritano, em assumido pecado, me orgulho. Recordo, para minha própria sanidade, as mais gratas e marcantes, todas na qualidade de promotor, coordenador ou (co)organizador. Muitas nem sequer os meus colegas conhecem. Confesso que estou convencido que se não for eu a dizer o que fiz mais ninguém o fará. Agora que o presente e o futuro andam numa cadeira de rodas, tenho tempo e ensejo para ruminar o passado. Segue, carregado a amarelo, uma espécie de postit ou lembrete terapêutico que enumera vários retalhos da vida de um professor em idade avançada. Se saltar esta lista ou a ignorar, pouco ou nada perde, sem sombra de prejuízo para o tema deste artigo: as aulas.

  • – Seminário Portugal e os Portugueses – Raízes e Horizontes, em Braga, duas semanas de atividades com filhos de emigrantes provenientes de todo o mundo, para a Secretaria de Estado da Emigração, em junho de 1983 (a atividade mais coletiva);
  • XIII Congresso Europeu de Sociologia Rural, em Braga, em abril de 1986 (iniciativa que excedeu os meus limites);
  • – Mediação/organização local, nos anos oitenta, das filmagens de um documentário da BBC sobre a pastorícia e a vezeira na freguesia de Lamas de Mouro, para uma série de ensino de português no Reino Unido (a atividade mais exótica);
  • – Estudo das relações entre residentes e emigrantes, em Braga e Melgaço, 1989-1994 (a investigação mais consistente);
  • – Programa semanário da RTM (Radio e Televisão do Minho) Quarto por Quarto, aos sábados, das 10 às 12 horas, de outubro de 1995 a fevereiro de 1996 (a atividade mais mediática);
  • – Coordenação de estudos nos bairros sociais das Andorinhas, em Braga, e das Lameiras e de Lousado, em Vila Nova de Famalicão, para o IGAPHE (Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado) e o Ministério do Trabalho e da Segurança Social, de 1996 a 1999;
  • Inquérito aos Licenciados da Universidade do Minho (anos 1991 a 1997), para a AAEUM, Braga, 1998 (a atividade de utilidade mais imediata);
  • Conferências de Sociologia, Universidade do Minho, em1997 e 1998:
    • I – Histórias de Vida, Família e Mobilidade Social (11/12/97);
    • II – Jovens e Migrações / Ciência e Sociedade (05/01/98); I
    • II – Pós-Modernidade (09/01/98);
    • IV –  Fontes e Métodos da Demografia (21/05/98);
    • V – Contextos e efeitos sociais do futebol (14/12/98);
  • – Estudo da Romaria da Srª da Agonia, para o Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, de 1998 a 2000 (a atividade que mais se aproximou do lazer);
  • – Mediação/organização local, no início dos anos 2 000, das filmagens de um documentário de uma produtora belga sobre os jogos infantis tradicionais em Portugal;
  • –  Seminário Internacional Transição para o ensino superior, na Universidade do Minho, em 18 e 19 de maio de 2000.
  • – Criação do curso de Mestrado em Sociologia da Cultura e dos Estilos de Vida, na Universidade do Minho, em 2000.
  • Grupo de Missão para a Qualidade do Ensino/Aprendizagem, da Universidade do Minho, de 2000 a 2002;
  • – Criação da revista Sociedade e Cultura, seis publicações, de 2000 a 2004;
  • – Seminário Da Universidade para o Mundo do Trabalho: Desafios para um Diálogo, na Universidade do Minho, em 24 e 25 de maio de 2001;
  • – Criação da série de publicações Apontamentos UM, iniciada em 2001;
  • – Criação do Núcleo de Estudos em Sociologia, em 2002;
  • – Implementação da Rede Social do concelho de Melgaço. e elaboração dos respetivos Diagnóstico Social e Plano de Desenvolvimento Social. de 2003 a 2005 (a atividade de maior intervenção social);
  • Inquérito aos idosos do concelho de Melgaço, para o CLAS e o Município de Melgaço, em 2003 e 2004 (o inquérito com maior impacto social);
  • – Inquérito às Associações Culturais do Concelho de Penafiel, para o Município de Penafiel, em 2003 e 2004
  • – Implementação da Rede Social do concelho de Vila Nova de Cerveira. e elaboração dos respetivos Diagnóstico Social e Plano de Desenvolvimento Social. de 2004 a 2006;
  • – Seminário O Trágico e o Grotesco no Mundo Contemporâneo, no Mosteiro de S. Martinho de Tibães, em 19 de abril de 2005;
  • Inquérito às empresas do concelho de Ribeira de Pena, para a Associação ADRIPÓIO, 2003 a 2005;
  • – Criação e acompanhamento do Espaço Memória e Fronteira (museu dedicado à emigração e ao contrabando), inaugurado no dia 27 de Abril de 2007, para o Município de Melgaço, desde 2005 (a atividade mais visível, mais grata e mais cara: cativado todo o orçamento, sobrou a despesa);
  • Inquérito aos trabalhadores da Zona Industrial de Campos, para o Município de Vila Nova de Cerveira, 2006;
  • – Avaliação do Projeto “Dar Vida às Letras”, para a Rede de Bibliotecas e a Comunidade Intermunicipal do Vale do Minho, 2006 e 2007 (a atividade que granjeou mais reconhecimento internacional e a segunda mais cara: cativados dois terços do orçamento, voltou a sobrar a despesa);
  • Inquérito às necessidades de formação profissional dos concelhos de Guimarães, Fafe e Vizela, para a Associação Sol do Ave, em 2006 e 2007;
  • Comissão Instaladora da Casa-Museu de Monção / Universidade do Minho, 2006 a 2017;
  • – Exposição Vertigens do Barroco: em Jerónimo Baía, e na actualidade, aberta ao público de 24 de março até 2 de Setembro de 2007, na Sala do Recibo do Mosteiro de S. Martinho de Tibães (a atividade mais ousada);
  • – Estudo das Perspetivas de Desenvolvimento do Concelho de Monção, para o Município de Monção e a Casa Museu de Monção / Universidade do Minho, de 2007 a 2009 (a atividade que mais se aproximou da intervenção política);
  • Avaliação do Impacto Social e Cultural de Guimarães 2012 – Capital Europeia de Cultural, para a Fundação Cidade de Guimarães, de 2010 a 2013 (de todas as atividades, aquela que me deu mais trabalho e canseira);
  • – Criação do curso de Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, da Universidade do Minho, em 2011 (o meu maior contributo para a Universidade);
  • – Blogue Tendências do Imaginário, desde agosto 2011: https://wordpress.com/view/tendimag.com (a minha perdição);
  • – Blogue Comunicação, Arte e Cultura, desde outubro 2011: https://wordpress.com/view/comartecultura.wordpress.com (plataforma para os alunos e a maior iniciativa de marketing);
  • – Ciclo de Sessões Percursos Profissionais na Área da Cultura, para o curso de Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, de 2011 a 2013 (a atividade com maior abertura pedagógica):
    • A Promoção da Cultura no Minho Interior, na Universidade do Minho, com Angelina Esteves, Catarina Afonso e Nuno Soares, em 8 de novembro de 2011;
    • Iniciativas Culturais do Mosteiro de Tibães, no Mosteiro de Tibães, com Aida Mata, Mário Brito e Miguel Bandeira, em 15 de novembro de 2011;
    • A Política e a Democracia Cultural, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, com José Bastos e Carlos Martins, em 6 de dezembro de 2011;
    • A Requalificação do Largo do Toural, na Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, com Maria Manuel Oliveira, António Amaro das Neves e Samuel Silva, em 28 de fevereiro de 2012;
    • Fotografia e Investigação, na Universidade do Minho, com Álvaro Domingues e Isabel Alves, em 2 de março de 2012;
    • A Lã e a Neve – Coreografia, na Caixa Negra da Fábrica Asa, em Guimarães, com Madalena Victorino, em 28 de novembro de 2012;
    • Mulheres da Raia – Sessão com a presença da realizadora, na Universidade do Minho, com Diana Gonçalves, em 9 de abril de 2013;
  • – Exposição Momentos Rurais, do fotógrafo Rui Pires, na Casa Museu de Monção / Universidade do Minho, em junho 2013;
  • – Estudos das festas e romarias de São Bartolomeu de Cavez, das Papas, de S. Tiago, de Santa Senhorinha, de Nossa Senhora dos Remédios e de S. Miguel, do concelho de Cabeceiras de Basto, para o Município de Cabeceiras de Basto, de 2011 a 2013;
  • Escola da Primavera, em Monção e Melgaço. Atividade destinada aos alunos dos cursos de Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, Doutoramento em Ciências da Comunicação e dos três ciclos de ensino em Sociologia, da Universidade do Minho. Aberta à comunidade. Anual, desde 2013 (a atividade mais diplomática, agradável e oportuna);
  • – Comemoração dos 25 anos da Licenciatura em Sociologia, Universidade do Minho, 20 de outubro de 2015;
  • – Alteração do curso de Mestrado em Sociologia, em 2017 (conjunto de iniciativas que se destacam pelo diagnóstico e pelo sucesso);
  • Encontros de Sociologia, no Mosteiro São Martinho de Tibães, iniciados em 2018.
  • Encontros Minho-Galiza:
    • – II, Casa Museu da Universidade do Minho em Monção, em 2017;
    • – III, Auditório de Goyan, em 2018;
    • – IV, Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, em 2019;
  • Quem somos os que aqui estamos? Programa de monografias, documentários, fotografia e eventos dedicado aos agrupamentos de freguesias do concelho de Melgaço, para a Associação Ao Norte e o Município de Melgaço. Concluídos os agrupamentos de Parada do Monte – Cubalhão e Prado – Remoães, está em curso o estudo do agrupamento de Castro Laboreiro – Lamas de Mouro. Programa iniciado em 2016 (a atividade mais reflexiva).

Este inventário configura uma espécie de testamento de uma fase da vida. Admito que fui um péssimo agricultor: semeei tanto e colhi tão pouco. Convém ressalvar as aulas e os alunos, pelo desafio e pela recompensa.
Subsiste a noção de que as aulas totalizam unidades coerentemente lecionadas, enquadradas, planeadas e sumariadas. Graças à lógica ou à dialética, o professor conduz o aluno pela mão, de argumento em contra argumento, até à verdade final, como quem peregrina um caminho de Santiago. Sondam-se horizontes, somam-se marcos, semeia-se o trigo, separa-se o joio, numa álgebra do pensamento.
Numa aula, proporciona-se expor ou compor, partilhar ou construir conhecimento. Metaforicamente, não deixa de ser romântico propor-se rasgar janelas em anfiteatros claustrofóbicos, esboçar sombras em salas soalheiras ou erguer pontes entre corredores paralelos. Comungar o possível, a dúvida e o paradoxo, o improviso e o imprevisto, a um ritmo de jazz pedagógico. Uma aula quer-se uma performance, em que quase tudo pode servir como “material didático”: teorias, métodos, técnicas e análises, mas também artes e letras, documentários, filmes, anúncios, pintura, escultura, música, objetos, documentos, testemunhos, anedotas, convites, visitas, entrevistas, eventos… O mundo da vida senta-se na mesma sala em que professor e alunos são partes participantes, sabendo que sem criatividade, interpretação e diálogo não existe recurso ou visita que acrescente valor. A monotonia e a monologia abrem-se à polifonia e à diversidade. Um dos principais desafios consiste em cruzar fontes e alinhavar realidades distintas. Por composição e recomposição, a aula oferece-se como um mosaico ou uma travessia em que cada um, professor ou aluno, desenha o seu próprio percurso. A aprendizagem é heterogénea. A assimilação, a compreensão e a retenção variam consoante as competências, os interesses e as disposições. O professor confronta-se com uma multiplicidade de registos, asseverando-se difícil agir em consonância. Trata-se de uma demanda de sintonia que releva praticamente do milagre.
Não é óbvio navegar nestas águas e ainda menos chegar a bom porto. Quando muito, aproximamo-nos. As aulas são particularmente exigentes e vulneráveis. Requerem esforço, adesão, concentração, flexibilidade e investimento pessoal. Não se prestam à passividade, à rotina e à atenção intermitente. Interligar informação díspar não é confortável nem sequer se apoia numa atitude natural. Pressupõe predisposição e preparação, qualidades nem sempre desenvolvidas durante a trajetória escolar. Os alunos tendem a vir calibrados por e para aulas clássicas. O risco de rutura da comunicação é, assim, elevado. Desligar é um risco, uma outra forma de estar: olhar para a janela e embarcar noutro comboio, entreter-se com o telemóvel, distrair os colegas ou, simplesmente, entregar-se à evasão interior. Os alunos não têm todos o mesmo capital, o mesmo passado e a mesma experiência, o que institui desigualdades e injustiças de problemática e incerta reparação. Estas aulas correm o risco de pedir aquilo que, à partida, não foi oferecido. Neste caso, podem encobrir um fundo e uma perversidade elitistas.
Aulas que exigem esforço, concentração e participação apostam na motivação. O investimento deve compensar, a vários títulos. Aprender com prazer não é uma quimera. Ensinar não é apenas, como dita a etimologia, marcar. É, também, envolver e entusiasmar. A razão não é a única hóspede da sala de aula. Para além do Homo sapiens, o professor também lida com o Homo aestheticus (Luc Ferry, Homo Aestheticus, 1990) e o Homo eroticus (Michel Maffesoli, Homo Eroticus, 1990). As aulas são um “fenómeno social total” (Marcel Mauss). Dar aulas, mais do que uma profissão e do que uma vocação, é uma arte. E a universidade, para além do saber intrínseco das disciplinas, deve prodigar cultura e, mais do que saber, sabedoria. É esse o seu batismo.
A interação na sala de aula é decisiva. Caracteriza-se pela abertura; e a abertura pelo imponderável. Nunca se está suficientemente seguro, dotado ou atualizado. Uma boa cultura geral só pode ajudar. Não há apontamentos nem apresentações que valham, que consigam antecipar e dominar os tópicos e os desvios não só previsíveis mas também potenciais. Auxilia possuir um bom acervo de recursos mobilizáveis, ao mesmo tempo adequados e oportunos. Alguns, se possível, da própria autoria do professor ou, inclusivamente, dos alunos. Convém, enfim, ser bom marinheiro. Quando se navega em águas dispersas, com vários mapas e bússolas, torna-se vital a gestão das âncoras. A abertura e eventual dispersão não dispensam a tensão da compressão, querem-se minimamente articuladas, encadeadas e regularmente sintetizadas. De outro modo, corre-se o risco de se perderem alunos e professores. Por mais originais que as aulas se desejem, cumpre-lhes respeitar os objetivos e os conteúdos programáticos da disciplina.
Este tipo de aula expõe-se a uma espécie de penalização indireta. Os procedimentos e os formulários da avaliação passam ao largo da sua especificidade e do seu valor. Com o professor Leandro de Almeida e demais colegas do Grupo de Missão para a Qualidade do Ensino-Aprendizagem, participei na elaboração do primeiro questionário de (auto)avaliação da Universidade do Minho. Tivemos a preocupação de contemplar várias dimensões consistentes, mediante análises fatoriais, testes e benchmarking. Um instrumento desta índole nunca é perfeito. Sofreu, desde então, alterações significativas. Tornou-se mais unidimensional, com itens mais abrangentes e menos incisivos, com ênfase na vertente administrativa e disciplinar em detrimento da formativa e pedagógica. O que ganhou, porventura, em operacionalidade perdeu em validade. Em suma, passa um pouco a leste da inovação pedagógica e do cabo da Boa Esperança.
Estas aulas são, sem dúvida, uma anomalia! Por isso, tenho tantas saudades delas. Eram a modos como o meu desporto favorito. O meu desporto atual é mais solitário, pouco interativo, menos exigente, menos desafiante e menos empolgante. Estou a falar deste blogue.

Liber ethicorum des Henricus de Alemannia. Scena – Henricus de Alemannia con i suoi studenti. Sec. XIV.

Quotas

Juizo Final. Ucrânia. No Juizo Final também se fazia a separação das almas.

Tomei consciência da importância das quotas aquando da polémica das “quotas leiteiras” na Comunidade Económica Europeia. Quanto leite podia produzir a França? E a Alemanha? Arrumar o mundo por quotas é uma tentação burocrática.
Estão a aplicar-se quotas nos concursos aos cursos de mestrado. Por exemplo, 40% de nacionais e 60% de estrangeiros. Parece inócuo, mas existe uma possibilidade muito possível e algo incómoda. E se dois, três, quatro ou n portugueses forem eliminados com pontuações superiores às dos candidatos estrangeiros? Importa pensar antes de inventar. Estranha interpretação do princípio constitucional da igualdade de oportunidades (“Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar”). Para entorses, já basta assim. Apetece ouvir música condizente com o humor virado do avesso. Por exemplo, a banda italiana Rhapsody of Fire, power metal sinfónico, com um dedo de fantasia.
Fernando e Albertino.

Rhapsody of Fire. Emerald Sword. Symphony of Enchanted Lands. 1998. Live – From Chaos to Eternity. Canada.

Mocidade académica. O amor burocrático

Quino

Com tantos regimentos, regras, normas, modelos e procedimentos, criar resume-se a um jogo de colorir imagens. Um projecto é um projecto, conforme o regulamento. As referências bibliográficas, também. Nada como encurralar o pensamento em 2 000 palavras… Esta é a arte, esta é a bênção. Tudo deliberado, consignado e disponível em documento próprio, para instrução de alunos com experiência académica e percursos profissionais notáveis. Se pretende saber, saiba connosco, saiba como nós! Percorra o caminho batido.

Na escola primária, há mais de cinquenta anos, entoava-se, no início, a seguinte canção:

Vamos cantar com alegria

E começar um novo dia

Para nós o estudo só nos dá prazer

Faremos tudo, tudo para aprender.

Não há muitas opções: ou se ensina o caminho ou se aprende a caminhar (Antonio Machado). É sensato confinar os alunos numa redoma de regras e normas? Para colher réplicas? Para conseguir a quadratura do círculo? Apesar da minha costela anarquista, admito a necessidade de normas e de regras. Incomoda-me o excesso de amor e de zelo burocráticos. Regulamente-se, regulamente-se até ao cinzento final. “Pim!”

Quino

Caras de pau

Wooden Tree Sculpture: Close-up of Faces Carved in Wood, Handmade.

As mulheres da minha aldeia estendiam criteriosamente a roupa lavada sobre a erva. “Corava ao sol”. Vestidos com roupa corada, corávamos também. Bastava uma palavra, uma anedota, uma imagem, um namoro, um olhar, um mau pensamento… Agora, as máquinas lavam, secam e engomam. A roupa não cora. E as pessoas, deslavam-se? Quer-me parecer que somos cada vez mais caras de pau. Reviramos a pele como quem muda de roupa. Ainda existe quem core, mas aproxima-se de uma espécie em vias de extinção. Surpreender alguém a corar releva de uma epifania , uma graça abençoada. Quase não coramos! E torna-se complicado distinguir a emoção rosada de um cosmético revigorante. Há vasos sanguíneos que caíram em desuso. Como, a seu modo, os pelos, os dentes tortos, as rugas, a transpiração ou a saliva.

Giorgio de Chirico. “Mélancolie hermétique”. Huile sur toile. 1919.

Nestas coisas do pensamento, sou como um cão. Quando encontro um osso, não o largo. O que me ofusca. Na dúvida, recorri a um “grupo de foco”. Nos mundos dos participantes, as pessoas coram, coram, por exemplo, os professores e os alunos nas escolas. Até as personagens dos anime coram. Cora-se, porventura, menos no meu mundo. Rostos serenos e pálidos, a lembrar São Sebastião. A ninguém interessa corar. Um colega com vergonha é como um coxo a andar para trás. E na publicidade? Nos anúncios, não se cora. Mas quem lucra com a comunicação da vergonha?

Caras de pau ou não, eis a questão? Órfão de uma nova intuição, deixo-me embalar pela melancolia. Há melancólicos que descansam a cabeça e fitam o infinito. Não se sabe se esperam ou desesperam. Eu oiço música e escrevo. Procuro nas palavras alento para continuar.

Léo Ferré. La melancolie. La melancolie. 1965.

Velocidade pedagógica: o novo futurismo

Carlo Carrá. Il cavalieri rosso. 1913.

“Nós estamos no promontório extremo dos séculos!… Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente” (Filippo Tommaso Marinetti, Manifesto Futurista, 1909).

A sensação que se desprende do anúncio Never Stop, da Universidade de Aukland, é velocidade, vertigem e futurismo.

O ensino é admirável. Um mundo novo, na era das learning machines. Antes do tempo, sem parar e sempre a subir, até ao pináculo. Educação acelerada, numa sociedade sem fios. Aguarda-se a aprendizagem instantânea: o implante de um chip, com actualizações automáticas, reciclável e sem plástico.

Marca: University of Auckland. Título: Never Stop. Nova Zelândia, Junho 2017.

Acrescento, mais por vício do que por virtude, um hino hard rock à velocidade:a música Highway Star, dos Deep Purple (álbum Machined Head, de 1972, que inclui o consagrado Smoke on the water). Canta Ian Gillan que “ninguém lhe rouba a vida porque a guarda no inferno”.

Deep Purple. Highway Star. Machine Head. 1972.

Procissão erótica

A academia é bipolar: Excitante para quem adere ao jogo, depressiva para quem o dispensa.

Figura 1. Trois phallus portant une vulve couronnée en procession. Enseigne en plomb, fin du XIVe siècle, Paris, Musée National du Moyen Âge.

Deus existe? A morte existe? E o sexo existe? Três nós cegos do nosso entendimento dados a recalcamentos e sublimações. Existem véus que não cobrem a realidade mas toldam o olhar, como cataratas no cristalino. Por conveniência, hipocrisia, pudor. No entanto, o sexo existe! Faz parte do triângulo da nossa obsessão quotidiana: Deus, morte e sexo. Com duas faces tensas: sol e lua, diurno e nocturno, taça e gládio, carne e espírito. Como redimir a alma quando a verdade é pecadora?

O Museu de Cluny, perto da Sorbonne, possui uma peça rara e ousada: uma insígnia erótica, do século XIV ou XV, composta por três falos antropomórficos que conduzem, em procissão solene, numa espécie de andor, uma vulva coroada (Figura  1). Presa no chapéu ou na capa, presume-se que esta insígnia, ou amuleto, era utilizada em espaços e situações especiais, tais como os prostíbulos e os rituais de fertilidade. Esta escultura em chumbo é minúscula. Mas a arte e o imaginário não se medem aos palmos. Segue uma pequena reportagem.

Les incroyables trésors de l’Histoire : Les pin’s érotiques du moyen-âge. Musée de Cluny. Le Point. França, Outubro 2013.

A imaginação ao poder. Os slogans de Maio 68

Les slogans de mai 68 | Archive INA

Dar poder ao poder está na ordem do dia! Alinhar, dobrar, polir e envernizar. O mundo está aparafusado e elitista. Apetece desafinar, comemorar, por exemplo, Maio de 1968, a utopia da desordem. Foi há cinquenta anos! Alguns slogans fizeram história.

“Fermons la télé, Ouvrons les yeux.”
Fechemos a televisão, Abramos os olhos.

“Je ne veux pas perdre ma vie à la gagner.”
Não quero perder a minha vida a ganhá-la.

“Il est interdit d’interdire !”
É proibido proibir.

“L’imagination au pouvoir !”
A imaginação ao poder.

“Métro-boulot-dodo.”
Metro-trabalho-casa.

“On ne tombe pas amoureux d’un taux de croissance.”
Não nos apaixonamos por uma taxa de crescimento.

“Prenons nos désirs pour des réalités !”
Tomemos os nossos desejos por realidades.

“Sous les pavés, la plage !”
Sob os paralelos, a praia.

“Soyons réalistes, demandons l’impossible.”
Sejamos realistas, reivindiquemos o impossível.