Tag Archive | travessia

Podia ser pior!

A Vaca e o Prisioneiro (1959)

Para uma noite de insónia

Meu avô contava-me a seguinte anedota:

Um minhoto e um galego estavam entusiasmados numa espécie de conversa ao desafio.

  • Unha cabra golpeo cos cornos unha muller que pasaba polo camiño.
  • Podia ser pior.
  • Como podería ser peor?
  • Se em vez de uma cabra fosse um rinoceronte.
  • Unha procesión pasaba pola liña e un tren chega a toda velocidade…
  • Podia ser pior.
  • Como podería ser peor?
  • Se o comboio, em vez de vir de frente, viesse de lado, atravessado.
  • Onte, Francisco estivo con María, chegou o seu marido e apuñalouno por todas partes.
  • Podia ser pior.
  • Como podería ser peor?
  • Se fosse uma hora antes, não teria sido o Francisco, teria sido eu.

Vem esta anedota a propósito do último anúncio da Levi’s em que um homem troca a vaca por umas calças. Segundo as conveniências contemporâneas, podia ser pior.

  • Como podia ser pior?
  • Se en lugar dunha vaca, era unha muller.
  • Tens razão. Mas podia ainda ser pior.
  • Como podería ser peor?
  • Se no lugar de uma vaca, fosse uma criança.

De inconveniência em inconveniência, por aí adiante…

Marca: Levi’s. Título: Fair Exchange. Agência: Droga5, New York. Direção: Martin de Thurah. USA, fevereiro 2023

A caminhada do homem com a vaca trouxe-me à memória um filme bem-disposto de Henri Verneuil: La vache et le prisonnier (1959), com Fernandel. Seguem o trailer, a banda sonora e as ligações para o filme (dividido em três partes).

Trailer do filme La vache et le prisonnier (1959)
Banda sonora do filme La vache et le prisonnier (1959)

La vache et le prisonnier (primeira parte): https://gloria.tv/post/wLaTA7bRYzhr4UCiDfgixsame#25

La vache et le prisonnier (segunda parte): https://gloria.tv/post/R8nxZNx9ViJY1f4XLWnx8k3FY#5

La vache et le prisonnier (terceira parte): https://gloria.tv/post/JR4Wyu7Jkmgx4gHAK8uKbEQyu#5

Vida à distância

Samsung. The Awesome Product Adventure, abril 2022.

Cúmulo de grotesco, fantasia e magia, o anúncio The Awesome Product Adventure, da Samsung é, parafraseando Luc Boltanski (La souffrance à distance, 1994), uma paródia criativa e desenfreada de uma vida à distância refastelada num sofá ubíquo. A instalação Emoções Confortáveis da exposição Vertigens do Barroco, no Mosteiro de Tibães, em 2007, já convocava o fenómeno: chamava-se Emoções confortáveis. Esta género de paródia tem precedentes na própria publicidade, por exemplo, o anúncio chileno Digital Tv, da VTR CABEL TV (2008). Mas existe quem aprecie abandonar o sofá para desfrutar de outras vidas.

Marca: Samsung. Título: The Awesome Product Adventure. Agência: Wieden + Kennedy (Amsterdam). Direção: Keith Schofield. Reino Unido, abril 2022.
Marca: VTR CABEL TV. Título: Digital Tv. Agência: Lowe Porta Santiago. Direção: Cucho Olivares. Chile. 2008.

Pai e filho

Yusuf / Cat Stevens

No anúncio brasileiro The Journey, da iPlace & Apple, o filho convida o pai para uma jornada rumo à memória e ao rejuvenescimento. Existem vários anúncios sobre a relação entre pai e filho. Alguns, excelentes. Ver, por exemplo: https://tendimag.com/2020/03/04/condicao-de-felicidade-o-efeito-de-idade/ e https://tendimag.com/2017/09/27/entre-geracoes-2/. Neste âmbito, a canção Father & Son, de Cat Stevens, é incontornável. Seguem duas versões: na primeira, gravada em junho, com 72 anos, a interpretação é simples e despojada (o vídeo foi colocado no YouTube pelo próprio Cat Stevens); a segunda versão corresponde à versão original no vídeo oficial.

Marca: iPlace & Apple. Título: The Journey. Agência: Morya. Direcção: Felipe Blankenheim. Brasil, 2020.
Yusuf / Cat Stevens performs ‘Father and Son’ from his 1970 album Tea For The Tillerman, live in June 2020.
The official music video for Father & Son by Yusuf. Álbum Tea for the Tillerman. 1970.

Variações

António Variações (1944-1984)

No anúncio Llegá, da empresa petrolífera YPF, as pessoas vão chegando animadas por emoções tranquilas. Trata-se de um anúncio de Pucho Mentasti, um dos melhores realizadores da América Latina.

Anunciante: YPF. Título: Llegá. Agência: Ogilvy Argentina. Direcção: Pucho Mentasti. Argentina, Jul 2011

Em Never Stop, da Universidade de Auckland, as pessoas avançam aceleradas rumo ao topo. O registo desta fábrica de sucessos é futurista. No anúncio Llegá, as pessoas chegam ao lugar desejado, um cais de sentidos e sentimentos. O tempo abranda. O registo é romântico.

Na canção Estou Além, do António Variações, nem se parte, nem se chega. Uma travessia sem ancoragem. O registo é, agora, trágico: “Vou continuar a procurar / A minha forma / O meu lugar / Porque até aqui eu só: / Estou bem onde eu não estou / Porque eu só quero ir / Aonde eu não vou” (António Variações, Estou Além”).

António Variações. Estou além. Anjo da Guarda. 1983.

António Variações. Estou além (letra)

Não consigo dominar
Este estado de ansiedade
A pressa de chegar
P’ra não chegar tarde
Não sei de que é que eu fujo
Será desta solidão
Mas porque é que eu recuso
Quem quer dar-me a mão
Vou continuar a procurar
A quem eu me quero dar
Porque até aqui eu só:
Quero quem quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi
Esta insatisfação
Não consigo compreender
Sempre esta sensação
Que estou a perder
Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P’ra outro lugar
Vou continuar a procurar
A minha forma
O meu lugar
Porque até aqui eu só:
Estou bem aonde eu não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde eu nao estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde não estou
Estou bem aonde eu não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde eu não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde eu não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde não estou.

Os ossos não enganam: a dança dos esqueletos

Figura 1. Franciszek Lekszycki . Dança macabra. Cracóvia, Polónia. Século XVII. Curiosamente, as danças da morte neste quadro e no seguinte contemplam apenas mulheres. Lembram as naves das loucas (ver
https://tendimag.com/2014/07/29/michel-foucault-e-a-nave-dos-loucos/ )

“Nenhum homem há naquele ponto que não desejara muito uma de duas: ou não ter nascido, ou tornar a nascer de novo, para fazer uma vida muito diferente. Mas já é tarde, já não há tempo” (Padre António Vieira).

The dance of death. Oil painting. Sec. XVII. Credit: Wellcome Library, London. Wellcome Images images@wellcome.ac.uk http://wellcomeimages.org.

“Para nascer Portugal: para morrer o mundo” (Padre António Vieira). A despedida é fado, o afastamento o corolário. Despedi-me da aldeia para estudar em Braga; de Braga para estudar em Paris; de Paris para trabalhar em Braga. O que mais custa na despedida não é a adaptação ao novo destino, é o afastamento de um pedaço de vida. É um vazio que trespassa o esqueleto. Partir e repartir é cavar cemitérios de amizades e desbastar florestas de rotinas. Partir empobrece! Suspende-se a familiaridade do mundo da vida. Afastei-me sempre voluntariamente. Volto a pressentir a semente do alheamento. Mas imagino esta nova travessia diferente. Não perco a familiaridade do mundo, nem os amigos; apenas aqueles que não tenho. Há três contingências a que os ossos não se habituam: à água do mar, à febre de protagonismo e ao feiticismo da sabedoria. Prevejo afastar-me aos poucos num alheamento a prestações. Como os intérpretes da Sinfonia do Adeus, de Joseph Haydn, que se retiram do palco sem que a música deixe de cumprir a sua promessa. A Dança dos Esqueletos, de Walt Disney (1929), precede A Sinfonia do Adeus (1772) de Joseph Haydn (no vídeo, a deserção dos intérpretes começa no minuto 4).

Walt Disney. A Silly Shimphony: The Skeleton Dance. 1929.
Joseph Haydn. Sinfonia 45. A Sinfonia do Adeus. 1772.

Sobre rodas

Bertha Benz. Motorwagen.

Em 2018, por altura do Dia Internacional da Mulher, a Mercedes-Benz dos Estados-Unidos lançou um anúncio intitulado “First Driver” dedicado a Bertha Benz, mulher do inventor e empresário do primeiro automóvel (ver vídeo 1). Este ano, por altura do Dia Internacional da Mulher, a Mercedes-Benz alemã lança um anúncio intitulado “The journey that change everything” dedicado, também, a Bertha Benz. Para o próximo ano, por altura do Dia Internacional da Mulher, não estranhará se a Mercedez-Benz lançar um anúncio intitulado “Visita à família em quatro rodas”, dedicado, mais uma vez, a Bertha Benz. A consumar-se esta eventualidade, consolida-se uma saga internacional com Bertha Benz como protagonista.

Marca: Mercedes-Benz. Título: The First Driver. Agência: R/GA. Estados Unidos, Agosto 2018.

Os dois anúncios partilham a mesma protagonista e a mesma história: a viagem de cerca de 60Km em automóvel até à residência da mãe. Ela própria cuidou que o evento justificasse uma grande cobertura mediática e publicitária. Bertha Benz, uma mulher notável, é uma referência para a marca Mercedes-Benz, bem como para a emancipação da mulher. Nestes anúncios, Bertha Benz é uma dupla embaixadora.

Marca: Mercedes-Benz. Título: The Journey That Changed Everything. Agência: antoni garage. Direcção: Sebastian Strasser. Alemanha, Março 2019.

Os dois anúncios são semelhantes no conteúdo, mas bastante distintos no estilo. First Driver, a preto e branco, acusa um pendor clássico. The journey that change everything comporta, a começar pelo título, uma propensão barroca, por vezes, grotesca. A acção é exuberante e sobram as personagens feias, porcas e más. Esta diversidade no estilo intriga. Poucos anos atrás, a Mercedes-Benz primava por cultivar uma imagem robusta, ver previsível. Recentemente, a saída de um novo anúncio gera expectativa. Não se consegue adivinhar, à partida, qual é o estilo, o conteúdo e o público-alvo. A publicidade da Mercedes-Benz parece ter adoptado uma estratégia de comunicação poliédrica e polifónica.

Natal andróide

Edeka. Christmas. 2117

Num mundo disfórico entregue às máquinas, um andróide deixa-se cativar por alguns vestígios de vida humana num cartaz e num filme com a ceia de Natal. Começa uma odisseia da máquina em busca do humano. Simula a ceia de Natal com manequins, mas não resulta, falta o espírito. Acaba por reconhecer a paisagem numa fotografia de um jornal.  Por vales e montanhas, encontra finalmente a família humana que o acolhe com generosidade.

Este anúncio lembra filmes tais como O Planeta dos Macacos (1968), Blade Runner (1982), Equilibrium (2002) ou WALL-E (2008). E convoca uma série de mitos mais ou menos contemporâneos:

– A superação e a dominação do homem, aprendiz de feiticeiro (Goethe, 1797), pelas suas próprias obras, nomeadamente computadores e andróides;

– As máquinas assumem-se mais humanas do que os humanos, propiciando um espelho, mais ou menos deformado, da condição humana;

– Uma ovelha negra redentora galga fronteiras e vence obstáculos contribuindo para a emancipação, mais ou menos fugaz e inconsequente, dos oprimidos.

Marca:  Edeka. Título: Will we celebrate Christmas in 2117? Agência: Jung von Matt. Alemanha, Novembro 2017.

Transformação

sjswedishrailways_pellepiasjourney17

Multiplicam-se os anúncios com pessoas LGBT. O Paul’s Journey, da SJ Swedish Railways, é especial. Como diria Edgar Morin (1967, Commune en France, Paris, Fayard), é stendhaliano: tem o sentido do detalhe. Durante uma viagem de comboio, gesto a gesto, assiste-se a uma transformação da aparência identitária.

 

Marca: SJ Swedish Railways. Título: Paul’s Journey. Agência: TBWA Stokholm. Direcção: Anders Hallberg. Suécia, Março 2017.

Salvo pelos lobos

Wolf DPS_46x30cmH_Eng

Tendências do Imaginário deixou escapar este anúncio de Bruno Aveillan. Imperdoável. A fotografia e o ritmo de Bruno Aveillan desprendem uma aura quase sagrada. Neste It’s in our nature, da cadeia de hotéis Shangri-La, um jovem perde-se na neve. Exausto, adormece. Morte certa. Uma alcateia de lobos aproxima-se. O lobo é um animal temível, infernal. Mas as bocas devoradoras mantêm-se fechadas. Os lobos rodeiam o jovem formando uma espécie de abrigo contra a adversidade. Por entre tanta maldade mítica, o lobo esconde uma centelha de bondade. Lembra-se da loba de Rómulo e Remo? E de Mogli, a criança selvagem criada por uma alcateia de lobos? Existem muitas histórias semelhantes. Sobra um canto para os lobos nos nossos mitos de estimação. Os lobos compuseram um abrigo. Shangri-La é um abrigo, “pronto a receber um estranho como membro da casa”.

Marca: Shangri-La. Título: Wolves. Agência: Ogilvy & Mather Hong Kong. Direcção: Bruno Aveillan. Hong Kong, 2010.

O berço redescoberto

prudential_fishermen_3

Tempo cíclico. O regresso a um ponto de partida recomposto. O mesmo ou outro. Objectos e gestos. O barco é símbolo de travessia, de passagem para outro mundo, eventualmente o inferno, ou de renascimento, o berço redescoberto (Gaston Bachelard). Sabe bem chegar a casa e pôr os olhos a boiar no ecrã durante dois minutos, com direito a repetição.

Marca: Prudential PLC. Título: The Fishermen. Agência: Lowe Cape Town. Direcção: Kim Geldenhuis. África do Sul, Abril 2015.