Circuito de Generosidade


No anúncio “Noel 2022”, da Coop, uma corrente de entreajuda forma uma roda: quem recebe um gesto de generosidade prossegue-o até regressar ao primeiro par, num encadeamento circular que lembra o circuito Kula das ilhas Trobriand (Bronislaw Malinowski). Bonito? Muito. Improvável? Bastante. Possível? Talvez, durante o Natal. Pelo menos, na imaginação. A roda da vida a sobrepor-se às danças da morte e dos tolos.
Dança macabra. Mosteiro dos Bernardinos. Séc. XVII. Cracóvia.
A Suíça Portuguesa

No one upstages the Grand Tour of Switzerland, da Switzerland.com, é um belíssimo e apelativo anúncio. Mas à dupla Anne Hathaway e Roger Federer falta ainda explorar Melgaço. Recordo que à terra onde comecei costumava chamar-se “Suíça portuguesa”.
Para aceder ao vídeo Melgaço é um destino de natureza por excelência!, carregar na seguinte imagem (não se esqueça de ligar o som):

A sombra das novas tecnologias
Anúncios como o Get your brain back, da reMarkable, ou Relax we post, da Ibis, multiplicam-se. A extrema euforia é mãe do desencanto. Inovações com o impacto das novas tecnologias não podem dormir na sombra do entendimento. As novas tecnologias são aditivas. Afastam-nos do “mundo da vida”. Moldam-nos, menos com sobressaltos e mais com massagens infestantes. O anúncio Get your brain back enuncia os riscos do mundo electrónico e sugere, como alternativa, o “papel digital”, uma oportunidade de negócio; no anúncio Relax we post, uma rede de hotéis disponibiliza uma ama-seca para cuidar dos telemóveis. Somos netos de Metropolis (Fritz Lang, 1927) e do Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley, 1932). Combate-se o fogo com o fogo. E o digital com o digital? A alienação com a alienação? Um novo flautista de Hamelin conseguirá afastar os ratos electrónicos, o cortejo de “amigos” mortos vivos? Em Portugal, os telemóveis existem desde 1991. Sobre os seus efeitos, pessoais e sociais, pouco se sabe. A procissão ainda vai no adro.
Get your brain back e Relax we post são dois anúncios notáveis a transbordar de criatividade. Contribuem, ambos, para abrir caminho num terreno movediço que a experiência já banalizou.
Marca: Ibis Switzerland. Título: Relax we post. Agência: Jung von Matt/Limat. Direcção: Johannes Schroeder. Suíça, Outubro 2018.
Marca: reMarkable. Título: Get your brain back. Agência: & Co./NoA, Direcção: Simon Ladefoged. Dinamarca, Novembro 2018.
Vida de esqueleto II. O espelho
O esqueleto acompanha-nos desde a expulsão de Adão e Eva do paraíso. A dança da morte da ponte Spreuer, em Lucerna, na Suíça (Figura 3), mostra Adão e Eva, mais o esqueleto, a sair, curvados, do paraíso:
“Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais” (Genesis 3:3).
Dança macabra da ponte Spreuer, em Lucerna
O esqueleto sempre assombrou a humanidade. Condenado, tal como o ser humano, ao trabalho, esmera-se. Toca os clientes, captura-os e transporta-os para o outro mundo. Assedia como um toureiro, ceifa como um camponês, pesca como um lobo-do-mar e caça como um nobre ou como um predador furtivo. Usa a gadanha, o arco e a flecha, o machado, a espada, a lança, a rede e a pá. Desloca-se a pé, montado num caixão (Figura 1), num cavalo, num burro ou numa vaca. Por finais do século XIX, também voa (Figuras 6 a 11).
O ofício de esqueleto
Às vezes, o esqueleto, enquanto trabalha, diverte-se com outros esqueletos. Nas danças macabras, toca música e baila de mãos dadas com os vivos mortos. O transporte para o outro mundo resulta festivo. O esqueleto investe na política. Faz a guerra e não desdenha o poder. Nos triunfos, a morte senta-se no trono, rodeada pelo seu séquito, com as autoridades mundanas a seus pés (Figura 2 e 12 a 15).
Triunfo da morte
13 a 15. Triunfos da morte do Palazzo Abbattelis, de Clusone e de Pieter Bruegel
O esqueleto também repousa. Cansa-se, como o esqueleto sentado na escada da figura 15. Aprecia o lazer e a actividade espiritual. Dormita aconchegado em prazeres, come, joga, espera, aborrece-se, vê-se ao espelho, lê, contempla uma caveira (uma dupla vanitas), ouve e toca música, parodia a arte e, sublinhe-se, reza (ver figuras 16 a 29).
Actividades de lazer
O espelho da morte mostra-nos a nossa finitude. Em vez da nossa imagem, vemos a morte. As actividades do esqueleto são semelhantes às nossas. Podiam ser as nossas. Com a ressalva da procriação. Ao olhar para o espelho, mais do que a morte, vemo-nos a nós próprios. O esqueleto é uma projecção. O esqueleto somos nós. Somos, pelo menos, o modelo (Figuras 30 a 33)
O espelho da morte
Tanto nos dá para temer o esqueleto como para o venerar. Dedicamos-lhe cultos, os cultos da morte e dos mortos. Nas igrejas, nos cemitérios, em casa, na rua e durante o Halloween. Às vezes, exorbitamos. É o caso dos santos descobertos no século XVII nas catacumbas romanas que o papa distribuiu por várias igrejas germânicas. Identificados como esqueletos dos primeiros mártires, beneficiaram do esmero póstumo de freiras, joalheiros e outros artífices dos séculos XVII e XVIII (Figuras 34 a 37).
Santos das catacumbas romanas
Nas fotografias de Paul Koudounaris (2013, Heavenly Bodies, New York, Thames Hudson), contam-se mais jóias e ornamentos do que ossos. Ao bom jeito barroco, são esqueletos em majestade. Rivalizam com Nossa Senhora da Boa Morte ou com a Santa Morte, padroeira, entre outros, dos traficantes e dos bandidos (Figuras 38 a 41).
Morte santa
Se os esqueletos são ecos, por que os imaginamos? Para personalizar ou eufemizar a morte? Para acomodar o vazio? Ou será porque prestamos mais atenção ao eco do que à voz? A vida do esqueleto é o paroxismo da reflexividade e da catequese humanas.
O prazer da publicidade
Vou contar um segredo: gosto da publicidade. Sei que é reflexo condicionado denegri-la. Pois, não a considero nem vazia, nem alienante, nem cacofónica. Cada anúncio é uma interpelação. É obra de gente competente e criativa. Aprende-se mais com a publicidade do que com muitas agências de ensino. Sente-se mais com a publicidade do que com muitas paradas e promessas de prazer colectivo. Enfim, gostar do que se gosta é a nossa maior liberdade.
O anúncio Every spot a masterpiece, do Graubünden Tourism, é um bom exemplo. Centra-se num pormenor: as marcas dos trilhos transformadas em obras de arte. Marcas que, ao jeito dos fragmentos, convocam o todo: as majestosas montanhas suíças. E assim a arte se refaz. Regressa ao meio ambiente para ajudar a guiar os passos do homem.
“Everyone knows them: the white-red-and-white trail markers that show hikers the way. From today, these look a little different on three trails in Graubünden. For an artist has set his hand, or rather his brush, to these and made these signs live up to the beauty of the surrounding nature. True to the motto: every spot a masterpiece” (Graubüngen Tourism).
Marca: Graubünden Tourism. Título: Every spot a masterpiece. Agência: Jung Von Matt. Suíça, Setembro 2017.
De bicicleta até ao fim do mundo
“I’ve seen things you people wouldn’t believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die.” (Blade Runner, Tears in Rain).
Vi muitos anúncios de consciencialização: moralistas, solidários, sentenciosos, cómicos, grotescos, depreciativos, cruéis, tétricos, estúpidos, mas não dei conta de nenhum anúncio cínico. Le Cicliste, da Police cantonale de Fribourg, colmata a lacuna. Pedalar com presunção e euforia pode ser funesto; 50% dos ciclistas morrem por culpa própria. Quanto mais parvo ao pedal, mais depressa se chega ao outro mundo.
Para acompanhar, Katie Melua, 9 million bicycles.
Marca: Police Cantonale Fribourg. Título: Le Cicliste. Agência: Helvetics. Direcção: Jérôme Piguet & Raphael Sibilla. Suíça, Abril 2017.
Katie Melua, 9 million bicycles. Piece by piece. 2005.
De rir a chorar
Ontem como hoje, na Europa e no mundo, há funerais festivos e há funerais macabros. E outros ainda difíceis de classificar. Existem muitos anúncios publicitários com funerais. Começo por reter dois a pender para o risonho.
O ser humano delira. Dá-lhe para dançar e rir quando é suposto ensimesmar e chorar. No primeiro anúncio, um funeral com lágrimas e dança (ver anúncio português semelhante: https://tendimag.com/2014/02/20/a-um-morto-nada-se-recusa/). No segundo, o humor resulta mais vulgar: o velório passa colectivamente das lágrimas às gargalhadas. Passar de uma emoção à emoção oposta parece ser apanágio do homem. Talvez porque os extremos estão mais próximos do que se pensa.
Marca: Spotify. Título: Play this at my funeral. Agência: Wieden + Kennedy. USA, Fevereiro 2007.
Marca: Tages Anzeiger. Título: L’Enterrement. Agência: McCann Erikson. Suíça, 1998.
A isabel comentou este artigo relembrando o vídeo Doing It To Death, dos The Kills. Já o tinha colocado no Tendências do Imaginário (https://tendimag.com/2016/11/02/grao-a-grao-meio-milhao/). Mas o vídeo é extraordinário e a coreografia, fantástica. Vou recolocá-lo. O comentário da Isabel vem a preceito, também o vou colocar.
“Embora não seja novidade no tendimag, suponho que este é um dos casos difíceis de classificar: https://www.youtube.com/watch?v=498zUzNGQxY (…) Quando os mortos têm um sentido de humor fora do comum e se tem um relação próxima com eles, o que fazer? Chorar de saudades ou rir com saudades? Não me parece assim tão difícil de compreender, só sentindo. Não deixa de ser uma homenagem, num sentido ou noutro. Ou oscilando” (Isabel Vilela).
The Kills. Doing It To Death. Ash & lce. 2016.
Distracção fatal
A publicidade anda necrófila. Volta e meia, repete o mote: “Se insistir, morre!” A Maria João enviou-me o anúncio suíço “Anastase: The Magic Trick”, da Polícia de Lausanne. Escrever mensagens e ouvir música num smartphone na rua é fatal. Como ilustração, um jovem é atropelado por um carro. “Abracadabra! Se tu também queres realizar este truque incrível [a morte], basta um telefone móvel, alguns excertos de música, uma aplicação sms e, sobretudo, um pouco de inatenção”. Com humor negro, ficamos elucidados: o abuso do smartphone mata. Como o álcool, a droga, a obesidade, o tabaco.
Desconversemos.
O uso indevido do smartphone mata. E o resto, não mata, nem morre? Eis uma pitada de absurdo lógico.
A política, o desporto, o amor, o sexo, o sol, os medicamentos e os hospitais, não matam? Até o ridículo.
A OMS, que se presta a estes alertas, bem podia discriminar uma lista exaustiva com tudo quanto mata. Morreríamos mais felizes, para sempre!

Campanha contra a obesidade
O meu rapaz, que detesta absurdos lógicos, corrige: sustentar que o uso indevido do smartphone mata não significa que a ligação seja linear nem geral. Basta meia dúzia de vítimas para se poder afirmar que o “smartphone” mata. Assim, relativizada, a sentença de que o smartphone mata tende a esvaziar-se. O que incha, desincha e passa. O uso do smartphone na rua não mata, pode matar. Matar, sem mais nem menos, é um concentrado votado à propaganda.
Segundo a Polícia de Lausanne, na Suíça, em 2013, “1100 pessoas foram gravemente feridas ou faleceram devido à distracção. Entre os peões, 66% reconhecem que telefonam ou ouvem música durante as suas deslocações a pé”. Algumas informações têm o condão de desinformar: das 1100 pessoas, quantas morreram? Para além do smartphone, que outras fontes de distracção estão contempladas? Os números prestam-se a diversas embalagens.
Anunciante: Police de Lausanne. Título: Anastase: the magic trick. Direcção: Raphael Sibilla & Jerôme Piguet. Suíça, Maio 2015.
Whiskey sábio

Auguste Piccard
Nada escapa à voracidade da publicidade. Nem sequer a ciência. O anúncio ao whiskey Hennessy reconstitui a primeira ascensão estratosférica em balão. Proeza de Auguste Piccard, físico, inventor e explorador suíço, fonte de inspiração para a personagem do Professor Tournesol, de Hergé. Cientista reputado, “cujas experiências não cabiam nos laboratórios”, consta, em cima à esquerda, da fotografia da Conferência de Solvay, em 1927, na companhia de, entre outros, Werner Heisenberg, Niels Bohr, Max Planck, Marie Curie e Albert Einstein.
Pergunto-me como, naquele tempo, sem rankings, nem factores de impacto, estes sábios conseguiram conhecer-se e encontrar-se.
Se Auguste Piccard subiu mais alto, o filho, Jacques Piccard desceu mais baixo! Foi o primeiro a atingir, em 1960, o ponto mais profundo do planeta: a fossa das Marianas (11 034 metros). O neto de Auguste Piccard , Bertrand Piccard, empreendeu, em 1999, o primeiro voo de balão à volta do mundo sem escalas (ver documentário sobre a família Piccard).
O que tem o whiskey Hennessy a ver com os Piccard? Nada, logo tudo! A publicidade é espantosa, não é?
Marca: Hennessy V.S.. Título: The Piccards. Agência:
Peixes voadores
Há anúncios que fazem cócegas no diafragma, regalam a vista e desafiam o raciocínio. Humor, estética e imaginação. FlyBoardFishing, da Fishersman’s Friend, surpreende uma sequência de voo em flyboard e pescaria de mergulho. Tudo graças ao sopro de um velho com pulmões invejáveis. De perder o fôlego! Fish, da Johnnie Walker, estreado em 2003, é uma obra-prima da publicidade. “Antes do primeiro passo”, os seres humanos nadam, entre saltos e mergulhos, como golfinhos, num movimento semelhante ao do pescador do anúncio FlyBoardFishing. De suster o fôlego! No anúncio Fish, carregar em HD.
Marca: Fisherman’s Friend. Título: FlyBoardFishing. Agência: Walker Zurich. Direcção: Axel Laubscher. Suíça, Fevereiro 2016.
Marca: Johnnie Walker. Título: Fish. Agência: BBH London. Direcção: Daniel Kleinman. Reino Unido, 2003.