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Aflição fascinante

Nem sempre se recorre à doçura para cativar o guloso. Por vezes, o isco consiste no inverso: na acidez. É o caso dos anúncios It’s Free. But it Could Cost You/Wooing Jeff e Scary Fast. O primeiro denuncia o cúmulo, o extremo, da inconveniência associado à absorção alienante provocada pela exposição, quase hipnótica, ao canal de televisão TVZN. O segundo, uma paródia de um thriller de terror, introduz o potente e heroico todo-terreno Ford Raptor R que escapa ileso a uma série de ameaças e perigos diabólicos. Ambos aos anúncios resultam imediata e assumidamente desagradáveis. Esta opção não é novidade. Com receitas e doses apropriadas, a adversidade e a perversidade podem compensar.

Para aceder ao vídeo seguinte, carregar na imagem e ligar o som.

Marca: TVZN+. Título: It’s Free. But it Could Cost You/Wooing Jeff. Agência: Dentsu Creative ANZ (Aotearoa). Direção: Damien Shatford. Nova Zelândia, junho 2022.
Marca: Ford Raptor R. Título: Scary Fast. Agência: Wieden+Kennedy New York. Direção: Lauren Sick. Estados-Unidos, julho 2022.

Não esqueças onde vais: Memória e idade

Yuichi Ikehata. Fragment of LTM6. Série Long Term Memory. 2015

“Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo” (Ortega y Gasset, José, Meditaciones del Quijote, Madrid, Publicaciones de la Residencia de Estudiantes, 1914, pp. 43-44).

Em Moledo, dá-me para escrever textos como este. Como sugere Ortega Y Gasset, convém atender às circunstâncias mais ínfimas e mais íntimas. Com escassa mobilidade, debato-me com um computador ultrapassado com som e imagem péssimos. Dedico-me, assim, a escrevinhar textos de média reflexão como este sobre “A memória e a idade” ou, há duas semanas, as “Canções de luto por vivos” (https://tendimag.com/2022/06/05/cancoes-de-luto-por-vivos/). Uma escapatória. Uma tábua de salvação.

Tornou-se proverbial associar a memória à idade. As pessoas maiores são, por excelência, os arquivos vivos. Com o tempo, acumula-se e destila-se o vivido. Será? Não me atardo sobre a degenerescência da memória. Limito-me à memória como actividade e produto social. A vida e a memória não são coisas. Nem a primeira é um conjunto de segmentos, nem a segunda o respectivo repositório. Não tinha completa razão Sherlock Holmes ao apoquentar-se com a selecção das recordações; na sua opinião, a memória é assimilável a uma caixa que depressa se enche; a cada recordação que entra, outro sai. Não, a memória não é um depósito de elementos, antes uma teia, uma agência, de virtualidades, “cujo centro está em toda a parte e a circunferência em parte nenhuma” (Pascal, Blaise, Pensamentos, 1670. Artigo XVII).  A vida é acção, experiência e abertura e a memória presentificação e criação. Um simples momento pode inspirar um oceano e a eternidade reduzir-se a uma gota A memória não condiz com a extensão do calendário. Quando muito, pode comportar episódios mais antigos. Não se pode assumir que longevidade seja sinal ou sinónimo de maior biografia ou memória.

POTÊNCIA E SONHO. Marca: TC Bank. Título: Dream Rangers. Agência: Ogilvy Taiwan. Direcção: Thanonchai. Taiwan, Março 2011. Legendado em inglês.

A memória remete para o passado mas actualiza-o e reforma-o no presente. É potência, emergência e protensão. Apresenta-se debruçada para o futuro. Dependente das condições, os encontros e os diálogos tendem a facilitá-la. A interacção social propicia a comunhão e a partilha de memórias. Não cessa de nos mergulhar no passado para nadar no presente e no futuro. Chamemos a esta comunhão e partilha de memórias comemoração (recordar em conjunto). Quem tem mais probabilidades de comemorar? De desfrutar de encontros? A idade aumenta as hipóteses de isolamento e diminui as oportunidades de intercâmbio e comemoração. O anúncio Come Home propõe uma ilustração extrema: um idoso simula a própria morte para forçar a visita dos filhos.

AUSÊNCIA E COMEMORAÇÃO. Marca: Edeka. Título: Come Home. Agência: Jung von Matt (Hamburg). Direcção: Alex Feil. Alemanha, Novembro 2015. Legendas em português.

“Toda a gente sabe” que as pessoas maiores “vivem mais do/no passado”. Para trás, uma vida inteira, para a frente, uma promessa incerta. Voltamos a cair na tentação de geometrizar o vivido.

Com o avançar da idade o presente tende a ser cada vez mais pautado por rotinas, que, apesar dos preconceitos, comportam uma inestimável espessura vivencial. Com os anos, mirra o restolho do passado, desbota o mapa do futuro e aumenta a repetição cíclica. Conjugar rotina e memória aproxima-nos de um oxímero, de uma espécie de memória automática do presente.

A orientação temporal da mente é variável. A bússola aponta para horizontes ora para o passado ora para o futuro. Por exemplo, em algumas comunidades, à memória outonal do verão, sucede o alheamento do inverno e a esperança da primavera. Uma pessoa pode recordar a última visita dos emigrantes como um cão que rilha um osso e acalentar a próxima como um pássaro que faz o ninho (Gonçalves, Albertino, “O Presente Ausente: O Emigrante na Sociedade de Origem”, Cadernos do Noroeste, vol. I – nº1, 1987, pp. 7-30; e Gonçalves, Albertino & Gonçalves, Conceição, “Uma vida entre parênteses. Tempos e ritmos dos emigrantes portugueses em Paris”, Cadernos do Noroeste, vol. 4 – nº6-7, 1991, pp. 147-158). Não se pode, portanto, afiançar que na vida das pessoas, mesmo as maiores, predomina o passado. Nem a minha experiência nem a alheia me permitem decifrar este enigma. Arrisco, em contrapartida, que com a idade cresce o sentimento e a experiência da ausência, e com esta, a memória dos ausentes, daqueles que “estão fora” e daqueles que “partiram para não mais voltar”, inclusivamente para o Além. Esta presença da ausência e dos ausentes torna-se obsessiva. Trata-se de um tipo de memória que afeta, naturalmente, mais as pessoas maiores.

Assim como, com a idade, tende a definhar a socialização, também tende a encolher o espaço vital. Cada vez se restringe mais a um espaço fixo exíguo, porventura a uma mera divisão da habitação. Diminuem a expansão, exploração e deambulação, em suma, a exposição a estímulos e rastilhos da memória. A dança do passado tende a evoluir num circuito fechado solitário, com sobre investimento nos marcadores disponíveis, por exemplo, as fotografias e as lembranças. Corresponderá este cenário a um acréscimo da memória e do seu exercício? Talvez da sua importância vivencial. Quando tudo tende a desaparecer, restam, como alternativa, os fósseis de uma vida. Por uma vez, concordo com os médicos e os cientistas: uma das principais ameaças à memória das pessoas maiores reside não no excesso mas na falta de exercício.

Subsiste, enfim, uma derradeira dimensão, propensa, aliás, a ser parceira da memória da ausência. Para além dos testemunhos, das pessoas e dos acontecimentos, a vida também acolhe a imaginação. É real. Fabrica-se, abraça-se, sente-se. “É virtual nos seus fundamentos e real nas suas consequências”. Refém do isolamento, o novo eremita entrega-se a sonhos e pesadelos. Cria mundos, interpreta personagens e inventa histórias. Experiencia-os. Salta de uns para outros. Pelo caminho, ficam as carícias e as cicatrizes do imaginado, tão familiares e sensíveis como as do vivido.

“Se sonhássemos todas as noites a mesma coisa, ela nos afectaria tanto quanto os objectos que vemos todos os dias; e, se um artesão estivesse certo de sonhar, todas as noites, durante doze horas, que é rei, creio que ele seria quase tão feliz quanto um rei que sonhasse, todas as noites, durante doze horas, que era artesão” (Pascal, Blaise, Pensamentos, 1670. Artigo XIII).

The Piano. Animação: Aidan Gibbons. Música: Yann Tiersen. Junho 2005.

Duvido que com a idade aumente a memória ou o seu exercício. Acredito que a passagem do tempo tende a diferenciá-los: propende a cavar a ausência e a beber no imaginário.

Como sociólogo e como pessoa, encaro os relatos de vida como a mais compensadora das fontes. Gosto de remexer no passado e partilhar experiências. No tempo em que costumava passar as férias e os fins de semana em Melgaço, comprazia-me a registar “testemunhos e confidências” de pessoas maiores, individualmente ou em grupo. Assentava-me bem o papel de regenerador, provocador e esquentador de memórias. E de vidas…

Mulheres incríveis

Contrex

“Nós somos invencíveis. Nada nem ninguém nos pode parar. Não há limites àquilo que podemos realizar. Marchamos sem armadura, sem estrelas nos nossos ombros. Ninguém nos obriga, mas ninguém nos pode impedir. Porque, sim, nós somos invencíveis. Mas não o nosso corpo. Dá-lhe todos os dias os minerais de que precisa: cálcio, magnésio, Contrex. O vosso corpo é a favor!”

O anúncio “Nous sommes invencibles”, da Contrex, representa uma inovação na imagem de marca da empresa. O foco são as mulheres, mas já não se fala de “elegância”, a Meca peregrinada durante décadas. Quem se atem às palavras julga tratar-se de um anime ou de um hino de samurais. Limitar a interpretação a este tópico seria injusto. Tomar a árvore, delirante, pele floresta. As imagens apresentam-se em dissonância com as palavras: corpos esgotados e desalentados. O anúncio é um poema de palavras e imagens. A alma invencível mora num corpo vencido. Só um druida pode acudir ao desequilíbrio. Assim como a poção mágica de Panoramix dá força a Axtérix, a água de Contrex dá potência ao corpo das mulheres. Resultado: uma alma invencível em corpo inabalável.

Marca: Contrex. Título: Nous sommes invencibles. Agência: Marcel. França, Março 2017.

A aceleração da morte

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“Tarde, cerca da meia-noite, guiado pela juventude
Que comanda os enamorados, ia ver a minha amante.
Completamente só, além do Loire, e passando por um desvio
Aproximando-me de uma grande cruz numa encruzilhada,
Oiço, parecia-me, uma caça cheia de latidos
De cães que me seguiam, passo a passo, o rastro;
Vi perto de mim, sobre um grande cavalo negro,
Um homem que só tinha os ossos, ao vê-lo,
Estende-me uma mão para me montar na garupa.”

(Ronsard, Pierre de (1524-1585), Oeuvres complètes de Pierre Ronsart, Paris, P. Janet,1857-1867, pp. 134-135. Tradução minha, AG).

Anunciante: Rail Safety. Título: Horsepower. Agência: Marketforce Perth. Austrália, Agosto 2011.

O anúncio Horsepower, da Rail Safety, é um concentrado de símbolos e emoções. O galope é avassalador e imparável. Galopam os cavalos e galopa o anúncio. Galopam, ainda, o coração e a imaginação. O esquartejamento e barba sugerem as trevas medievais. As correntes metálicas e a carroçaria do comboio são frias e mortíferas. Os mitos associam os cavalos à morte, nomeadamente quando são negros como o cavalo que guia a manada. O final, em plena velocidade, sobressalta o espectador: um arrepio de quem sente passar a morte! Ameaçado entre potências, o ser humano descobre-se frágil, tão frágil como o viajante de Pierre Ronsart.

“Os cavalos da morte são, na maioria, negros, como Charos, Deus da morte dos Gregos modernos. Negros são também, na maioria das vezes, os corcéis da morte, cuja cavalgada infernal perseguiu durante muito tempo os viajantes perdidos, na França assim como em toda a cristandade (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des Symboles, Paris, Ed. Robert Laffont, 1969, p. 226).

Espinafres

8916-popeye-the-sailor-cartoons-spinach_1920x1080A leveza não é o único valor relevante na sociedade contemporânea. A potência, associada eventualmente à energia, à velocidade e ao sexo, também é um valor apreciável. O valor da potência destaca-se na publicidade em segmentos tais como os automóveis, as sapatilhas e as bebidas energéticas. Nos anúncios da NOS e da Burn (censurado), temos duas versões dos efeitos da “poção mágica”.

Marca: NOS. Título: With This NOS I Will. Agência: Mistress UK. Direcção: Ryan Hope. UK, Maio 2015.

Marca: Burn. Título: The morning. Agência: Fullsix. Direcção: Murat Gomullu. Itália, 2007.

Viagra para o Fiat 500

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Administrar Viagra a um Fiat 500 é desperdício. Mais falta faz no orçamento e nos bancos, que, como diz o silêncio, pouca tiveram a ver com a crise. Consta, sábia e politicamente, que a crise é da responsabilidade das famílias que vivem acima das possibilidades e das mordomias do funcionalismo público. Os funcionários públicos são um pau de dois bicos: causa e cura da crise; causa, pelas mordomias e gorduras, cura, com cortes e rescisões! Uma sangria inédita, graças a uma nova estirpe de sanguessugas, para equilíbrio das contas.

Concentremo-nos no anúncio. Associar sexo e automóvel é banal. Quase todo o anúncio é dedicado ao percurso atribulado da pílula de Viagra. De ressalto em ressalto, adquire velocidade num crescendo de nonsense. Um recurso humorística garantido.

Enfim, este anúncio da Fiat é uma boa publicidade ao Viagra. Para além das virtudes em termos de volume e potência, o anúncio, e a odisseia da pílula, inicia com um casal de idade e termina com um jovem garboso. Viagra, o elixir da juventude!

Marca: Fiat. Título: Blue pills. Agência: The Richards Group. USA, Outubro 2014.

Potência

Volvic. La force du volcan.

Quando a música é boa, e o resto não desmerece, vale a pena experimentar. No novo anúncio da Volvic e no trailer do videojogo Assassin’s Creed, repete-se a música de Woodkid. E a mesma propensão para o mito, senão para o arquétipo. Do conjunto, desprende-se uma sensação de potência. Existe uma estética da potência? Tem milénios… Um anúncio, um trailer, um videoclip. Três forças da natureza humana.

Marca: Volvic. Título: La Force du Volcan. Agência: Young & Rubicam Paris. Direção: Johnny Green. Europa, Outubro 2014.

Assassin’s Creed: Revelations – Official E3 Trailer. Ubisoft Montréal. Junho 2011.

Chuteiras bestiais

Tudo me lembra alguma coisa. Idade a mais, criatividade a menos. Sintonizo-me com a sociedade em que dizem que vivo. Nenhuma outra a sucede. É a última; e não avança. É tão “após”; e tão pouco “antes”! Pós-industrial, pós-colonial, pós-moderna, pós 11 de Setembro… Os milenaristas, os iluministas, os modernos e os marxistas erguiam a cabeça e viam a ponta do nariz. Entretanto, acabaram-se as grandes narrativas, a prevalência dos projectos e, até, a própria história. Somos a primeira sociedade orgulhosamente órfã do futuro! Consta que agarramos o presente… O presente não se agarra, vive-se. Faz-se. Para além da idade e da falta de criatividade, vivo nesta sociedade da repetição. Nestes moldes, recordar pode parecer  um desperdício. Quem não espera o futuro não tem por que se sentar no passado.


Marca: Adidas. Título: Instinct takes over. Internacional, Agosto 2014.

Vêm estes depautérios a propósito do último anúncio da Adidas: Instinct Takes Over. Em sequência acelerada e sincopada, o futebolista turco Mesut Özil é associado a diversos animais, cuja potência simbólica reverte para as chuteiras Predator. Pois, o anúncio lembra-me coisas antigas. Lembra-me as gravuras de quatro artistas, todos com um artigo no Tendências do Imaginário:

Giambattista della Porta (1535-1615): http://tendimag.com/2012/08/26/homens-e-bestas/
Ticiano Vecellio (c. 1485-1576): http://tendimag.com/2012/08/27/homens-e-bestas-2/
Peter Paul Rubens (1577-1640): http://tendimag.com/2012/08/29/homens-e-bestas-3/
Charles Le Brun (1619-1690): http://tendimag.com/2012/09/03/homens-e-bestas-4-charles-le-brun/.

Por estranho que pareça, recordar também pode ser uma forma de tomar balanço.

Jogo à portuguesa

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Nos últimos quatro séculos, o que mudou na representação do sexo? Por que motivo a televisão portuguesa dispensa a suposta potência de Paulo Futre e os iconoclastas protestantes toleraram as obscenidades de Hans Sebald Beham?

Marca: Libidium Fast. Título: Paulo Futre. Agência: ExcentricGrey, Lisbon. Portugal, Julho 2014.

Potência

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Existem muitos tipos de poder. Tantos que nem apetece contar: o hegemónico, o quarto poder, o quinto poder… Vou reter apenas três: a potência, a direcção e a autoridade.
A potência dispensa regras e consentimento, impõe-se, caso necessário, pela força.
A direcção é um poder restrito que se exerce em determinadas condições. Por exemplo, o poder do árbitro num jogo de futebol. Fora das quatro linhas, o poder desaparece.
A autoridade requer legitimidade. O poder só existe enquanto for reconhecido pelos dominados. O líder do balneário é aquele que goza de autoridade junto dos seus colegas.
Lançado na véspera do Brasil-Alemanha, este anúncio alemão é uma boa metáfora da potência.

Marca: Bayern 3 Radiostation. Título: How it ends. Alemanha, Julho 2014.