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Pokémon GO e São Cristóvão

 

Pawel Kuczynski.

Pawel Kuczynski.

A realidade é traiçoeira, não pertence a nenhum dos lados (a partir de André Gorz, Le Traître, 1957).

Tomei conhecimento deste cartoon do Pawel Kuczynski através do Abel Coentrão. Lembra São Cristóvão com o menino Jesus, e o mundo, aos ombros.

O jogo Pokémon GO não é um acontecimento menor. Representa um marco na história dos videojogos e da realidade aumentada. Menos pelo pioneirismo e mais pelo modo e pelo alcance.

Pawel Kuczynski  3

Pawel Kuczynski

O fenómeno Pokémon GO requer que se repense a relação entre o mundo real e o mundo virtual. Teorias outrora avançadas resultam, agora, insuficientes. Arrisquemos alguns apontamentos:

  • O mundo virtual realiza-se. Esta asserção peca por defeito. No mundo virtual, o mundo real não vem em segundo lugar. Tao pouco antecede, sucede, complementa, sobrepõe ou articula. O mundo virtual e o mundo real não só interagem como se interpenetram, o que extravasa as atividades listadas. Continuaram a ser úteis as noções de simulação, simulacro e hiper-realidade do Jean Baudrillard e do Umberto Eco?
  • O mundo real virtualiza-se. Esta asserção também peca por defeito. O mundo virtual é constitutivo do mundo real. Não paramos de retocar o passado, de alucinar o presente e adivinhar o futuro.
  • Na realidade aumentada, uma pessoa evolui em vários tabuleiros. Acede, anda, explora, escolhe, adquire, colabora, disputa, convive, lança bolas de fogo, acumula, perde e ganha. Os acidentes por inatenção, a “invasão” à base aérea canadiana, as inconveniências no museu de holocausto em Washington ou a proibição do governo da China são contingências que pouco ou nada têm a ver com efeitos perversos ou predições criadoras. São situações e acções possíveis e prováveis no entrelaçamento dos mundos virtual e real.
Cynocephali illustrated in the Kievan psalter, 1397

Cynocephali illustrated in the Kievan psalter, 1397

São Cristóvão é uma figura que não destoava num manga ou num videojogo. Filho de um rei pagão, eventualmente de Canaã, morreu, na Anatólia, martirizado, em 251. É, por vezes, retratado com cabeça de cão (ver, neste blogue, o artigo Santo Cão: https://tendimag.com/2014/03/15/santo-cao/). Até à conversão ao cristianismo chamava-se Auferus (bandoleiro) ou Reprobus (maldito). O “nome de baptismo” será Cristóvão (aquele que transporta Cristo). Gigante aprazível, com força colossal, assume como vocação servir os mais fortes. Em dada altura, serviu um rei poderoso. Mas, quando constata que este se assusta com o diabo, passa a servir o diabo até que comprova que este teme a cruz. Decide servir Cristo, que procurou durante muito tempo.

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Mandyn Flanders. Saint-Christopher and the Christ child, ca 1550.

Um dia, encontra um eremita que o inicia à religião cristã. Como Cristóvão não se prestou a jejuar nem a rezar, o eremita propôs-lhe que a ajudasse as pessoas a passar um rio perigoso. Mais cedo ou mais tarde, Cristo lhe apareceria. Passados muitos dias, ouviu a voz de uma criança que lhe pede para a passar para a outra margem. Cristóvão coloca o menino no ombro e, munido com o bastão, faz-se ao rio.

St. Christopher, from the Westminster Psalter, c. 1250

St. Christopher, from the Westminster Psalter, c. 1250.

Aumentavam, a cada passo, a agitação das águas e o peso do menino. Cristóvão parecia carregar o mundo inteiro. Acabada a travessia, já na outra margem, o menino diz a Cristóvão que é o seu rei, Jesus Cristo. Pede-lhe que enterre junto à casa o bordão, que se transforma, dia seguinte, numa magnífica palmeira carregada de tâmaras. São Cristóvão dedica o resto da sua vida à divulgação da palavra de Deus. Consta entre os santos que mais pagãos converteram. Segundo Santo Ambrósio, conseguiu arrancar ao erro do paganismo quarenta e oito mil homens e leválos ao culto da fé cristã”.

Morre na Anatólia. no dia 25 de Julho do ano 251, reinava Décio, imperador romano. Foi cruelmente martirizado. Foi açoitado. Bateram-lhe com vergas de metal. Colocaram-lhe um elmo de ferro em brasa na cabeça. Acorrentaram-no num estrado de ferro, besuntaram-no com pez e pegaram-lhe fogo, mas o estrado desfez-se.

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Jusepe di Ribera, St. Christopher, 1637.

Amarrado a uma estaca, foi alvo de setas disparadas por quatrocentos soldados. Mas, espantosamente, nenhuma lhe acertou, paravam no ar. Uma seta inverteu o sentido e acertou no olho do rei responsável pela martírio do Santo. São Cristóvão adverte o rei : “amanhã, vou morrer, mas tu, tirano, deves fazer lama com o meu sangue e untar com ela o teu olho para seres curado”. São Cristóvão foi decapitado. O rei misturou um pouco de sangue com terra e colocou-o no olho. Ficou curado e convertido! Este relato do martírio de São Cristóvão encerra uma notável densidade simbólica.