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O riso da mulher grávida (revisto)

Albertino Gonçalves

Este texto corresponde a um dos capítulos do livro A Arte na Morte, em teimosa revisão desde 2017. Trata-se de uma versão renovada e consideravelmente aumentada de um artigo homónimo já publicado no blogue Tendências do Imaginário (O Riso da velha grávida 2016).

Figura 1. Hieronymus Bosch. As Tentações de Santo Antão. Tríptico, c. 1500. Museu Nacional de Arte Antiga.

No canto inferior esquerdo do painel central do Tríptico As Tentações de Santo Antão (c. 1500), Hieronymus Bosch introduz uma criatura deveras complexa e estranha: uma velha, montada num rato. A velha é um ser híbrido: da cabeça cresce uma árvore e os braços são ramos; o corpo termina em cauda. A velha segura nos braços um bebé enfaixado. Naquele tempo, era prática enfaixar os recém-nascidos. Assim é retratado o menino Jesus no presépio já no século IV (Figura 3) e ainda no século XVII (Figura 4).

Contemplamos uma velha na antecâmara da morte que segura, encostada ao ventre, uma criança. Extrapolando, reconhece-se o tópico da morte que alberga a vida, tópico amplamente estudado por Mikhaïl Bakhtin. Esta figura convoca ainda, através do hibridismo da velha, os três reinos da vida: o humano, o animal e o vegetal. O conjunto, cósmico, alude ao ciclo natural e contrapõe verticalmente o telúrico, o rato que evolui num líquido lamacento, ao aéreo, a árvore que demanda o céu.

Na Grécia, em particular na Beócia, descobriram-se várias estatuetas de terracota que, datadas por volta do século IV aC, podem ser, de algum modo, consideradas antepassadas da velha de Hieronymus Bosch. Das figuras 5 a 7, destaco a última, da coleção do British Museum, pelo seu dinamismo e exposição comunicativa, significados pela posição, boca aberta e dobras da roupa, expressivas do movimento e da tensão dos contrários. Parece falar, cantar ou rir animadamente enquanto cuida da criança.

Figura 7 Velha ama com bebé. Beócia. C.330-300 a.C. British Museum.

Entre a criança ao colo e a gravidez vai apenas um passo no tempo. Um passo atrás que desenha uma ligação ainda mais íntima entre a vida e a morte.

“Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no Museu L’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: É a morte prenhe, a morte que dá à luz” (Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, São Paulo, HUCITEC, 1987, pp. 22-23).

Só de as imaginar, estas pequenas estatuetas de terracota provenientes de Kertch, na Crimeia, fascinam. Há anos que as procuro. Mas se a Internet é pródiga quando o tema de pesquisa é abrangente, costuma mostrar-se somítica quando este é deveras específico. Não obstante, alguns autores (e.g. Katia Vanessa Tarantini Silvestri, Carnavalização como transgrediência da multidão, Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos, para a obtenção do Título de Doutora em Linguística, São Carlos, 2014, pp, 134-135) contemplam uma estatueta que condiz com as velhas grávidas de Mikhail Bakhtin: uma mulher, em pé, aparentemente idosa e grávida (Figura 8). Provém de Kertch, contanto se encontre no Museu do Louvre, em Paris, e não no Museu L’Ermitage, em São Petersburgo. Cada vez que observo esta “velha grávida” convenço-me que é precursora da Gioconda: não consigo descortinar se está ou não a rir.
Não muito longe de Kertch, na região de Beócia, na Grécia, foi descoberta uma estatueta com uma mulher, agora sentada, numa postura semelhante à da velha ama com bebé da figura 7: idosa, obesa e, com boa vontade interpretativa, grávida e risonha (Figura 9). Também não está no L’Ermitage, mas no British Museum. Condiz com as figuras de terracota de Mikhail Bakhtin. Convergem, inclusivamente, na data: por volta do século IV aC).
Antes de prosseguir este rosário de imagens com velhas com crianças, ao colo ou no ventre, ilustrativas do ciclo da vida e da morte, importa proceder a um desvio pela mitologia grega. Produzida há mais de 4500 anos, a “Vénus Adormecida”, do Museu Nacional de Arqueologia em Valetta (Malta), servir-nos-á como chave ou introito. Dorme, redonda, como a Terra Mãe, à espera da regeneração (Figura 10). Um sono de Inverno com sonho de verão. Batizaram-na Vénus (Afrodite, na mitologia grega). Parece aguardar, durante o inverno, o belo Adónis.

Figura 10 Vénus adormecida. Museu de Arqueologia. Valletta, Malta. 4000-2500 aC

Afrodite apaixonou-se por Adónis ainda este era criança. Entregou-o à guarda de Perséfone, que, por seu turno, também se toma de amores por ele. Ambas reclamam Adónis. Zeus, chamado a pronunciar-se, é salomónico. Divide o ano em três partes iguais: durante os meses de inverno em que as sementes estão soterradas, Adónis vive no inferno com Perséfone; na primavera, quando as sementes germinam, Adónis vive com Afrodite; os meses restantes ficam à escolha de Adónis, que opta por Afrodite. Adónis é o deus da morte e da ressurreição, um deus ctónico, associado à vegetação. Durante a sua estadia no submundo, a terra é estéril. A partir da Primavera, a terra torna-se fértil. A vida enterra a vida, a morte dá à luz a vida. Sem tréguas, nem dramas. Uma tragédia.
A própria Perséfone, igualmente bela, teve um destino similar, embora com enredo e protagonistas distintos.
Divertia-se Perséfone, filha de Deméter, por entre as flores quando ao aproximar-se de um narciso se abriu uma fenda no solo através da qual Hades a raptou e levou para o submundo. Ignorando o sucedido, Deméter, deusa associada à maternidade, a tudo que envolve a plantação, a nutrição e o crescimento, mas também à morte, à destruição e à transformação, procura a filha, sem comer, dormir ou banhar-se, durante nove dias e nove noites. Informada do rapto por Hélio, deus do Sol, assim como da conivência de Zeus, retira-se do monte Olimpo e, disfarçada de velha, divaga, inconformada, por cidades e campos. Em Elêusis, manda construir um templo em sua honra, onde permanece isolada e inativa. Sem a sua ação, nada germina, tudo permanece estéril. A miséria ameaça destruir a humanidade, privando os deuses das suas ofertas e sacrifícios. Após várias tentativas infrutíferas para demover Deméter, Zeus acaba por ordenar a Hades a libertação de Perséfone. Antes da partida, Hades oferece sementes de romã a Perséfone que as saboreou. Durante o reencontro, Deméter pergunta a Perséfone se tinha comido alguma coisa no submundo. Fatalmente! Por causa das sementes de romã, Perséfone resulta condenada a ser, durante o
inverno. rainha do submundo junto a Hades [sina semelhante à de Adónis]. Deméter devolve a fertilidade à terra e promove os Mistérios Elêusianos, festival durante o qual as pessoas “adquirem sabedoria para viver com alegria e morrer sem medo da morte” (remeto a análise do mito de Perséfone para o estudo de Camila Golegã e Luciana Romano Hernandes: “Deméter e Perséfone – A inexorabilidade cíclica da natureza” (https://offlattes.com/archives/author/camila-golega; acedido em 28.08.2022). Retenho, contudo, um pormenor: as sementes de romã. Até as sementes podem desempenhar um papel negativo, neste caso, a condenação de Perséfone. Símbolo por excelência da fecundidade, as sementes também padecem da duplicidade do devir. Morrem e renascem duas vezes: enterradas, para dar o trigo; queimadas para dar o pão. Pela terra e pelo fogo.
Mas nem a intensidade semiótica da semente nem o ciclo cósmico justificam o desvio pela mitologia grega. Este faculta, na verdade , o acesso a uma figura mítica tão pouco conhecida quanto prodigiosa: Baubo, “um arquétipo da vida, da morte e da fertilidade”, “deusa pagã grega da alegria e obscenidade, com a forma de uma velha gorda que exibe publicamente os genitais” (Figuras 11 a 13), mencionada, entre outros, por Goethe, em “Noite de Walpurgis” do Fausto (1808), e Nietzsche, na Introdução de A Gaia Ciência (1882).

“Imagens com mulheres grávidas e mulheres com as pernas abertas passaram a ser representadas em terracotas de estilo Tanagra no Egito a partir do período ptolemaico [iniciado em 323 a. C. Algumas terracotas apresentavam os atributos de Ísis-Afrodite e possuíam um corpo gracioso. Outras tinham escasso ou nenhum atributo, um corpo rechonchudo e pernas abertas para exibir os genitais. A estas terracotas estranhas costuma chamar-se Baubo, o nome de uma velha senhora que mostrou os seus órgãos genitais a Deméter para distraí-la da dor provocada pela perda de Perséfone. O nome Baubo aparece nos Fragmentos órficos de Clemente de Alexandria e Arnóbio que descrevem o episódio do rapto de Perséfone. Baubo também era alvo de culto, em conjunto com Deméter, em várias áreas do mundo grego, como demonstram diversas inscrições e estatuetas. O motivo para atribuir a designação “terracotas Baubo” a estas terracotas egípcias decorre da postura assumida de exposição dos genitais tal como Baubo fez com Deméter. Um outro motivo prende-se ainda com uma outra relação clara de algumas dessas terracotas egípcias com Deméter: existem vários exemplares com a imagem egípcia de Baubo sentada num javali [Figura info], gesto que lembra os javalis selvagens sacrificados durante o festival grego da Thesmophoria. Tanto os rituais da Elêusis como a Thesmophoria eram celebrados na região de Elêusis em Alexandria, com provável recurso a estas terracotas nestes contextos (Nifosi, Ada (2021) The Throw of Isis-Aphrodite: a rare decorated knucklebone from the Metropolitan Museum of New York. The Journal of Egyptian Archaeology. Acedido em 28.08.2022).

Existem várias versões do episódio de Baubo, algumas mais circunstanciadas e excêntricas como a comentada por Sigmund Freud num pequeno texto de 1916 (“Parallèles mythologiques à une représentation obsessionnelle plastique”, Essais de psychanalyse appliquée, Paris, Éditions Gallimard, 1971, pp. 83-85).

“Baubo é a esposa mítica de Disaule, bem como a empregada/ama que acolhe Deméter em Elêusis – o umbigo esotérico da Europa – quando esta procura desesperadamente a sua filha Perséfone. Recusando-se Deméter a tocar na comida, Baubo fá-la rir levantando o vestido e mostrando obscenamente os seus órgãos genitais. Iacchus, seu filho, também é reputado ter estado presente nesta cena, e ter aplaudido descontroladamente – o que provoca o riso de Deméter e enfatiza o lado cômico do episódio. Em algumas versões da história, diz-se que Iacchus rastejou sob as saias, de tal modo que seu rosto apareceu no lugar dos genitais quando Baubo exibiu suas partes púdicas, o que pode ser lido como uma alusão à fertilidade de Baubo – ela pode estar grávida – e, portanto, como um sinal de esperança para a fecundidade muito mais significativa que a própria Deméter tem que reencontrar, a fim de resgatar o mundo do inverno eterno” (Michele Cometa, “The Survival of Ancient Monsters: Freud and Baubo” in Raul Calzoni / Greta Perletti (eds.), Monstrous Anatomies. Literary and Scientific Imagination in Britain and Germany during the Long Nineteenth Century, Göttingen, V&R Unipress, 2015, pp. 297-310).

Baubo oferece-se como uma súmula de todas as situações, ações e propriedade até agora consideradas: é uma velha, grávida e com criança, pujante, cuja sexualidade desbragada provoca alívio e riso. Integra uma mistura de ações e atributos, um concentrado semiótico capaz de rivalizar com a “a velha com bebé ao colo” de Hieronymus Bosch. Condensa luto, fecundidade e jovialidade numa fusão apotropaica transbordante de sexualidade e humor. Os opostos mais do que se alternar ou de se (su)ceder uns aos outros coexistem. Prevalece a conjunção em detrimento da disjunção. Baubo é, simultaneamente, morte e vida, Eros e Thanatos, ordem e caos, tragédia e comédia, luto e esperança. Esta leitura corresponde, naturalmente, a uma interpretação, uma camada subjetiva de sentido que reveste Baubo. Tomando o presente texto como um todo, como um retrato, Baubo arrisca, com a sua turbulência, oferecer-se como um punctum, “o detalhe que preenche toda a fotografia” (Roland Barthes, A Câmara Clara, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 73).

Figura 18 James Ensor. A morte a as máscaras. 1927

Chegada a navegação a esta “bacia semântica”, terão os nossos olhos visto o que de essencial há para ver? Saturou-se o imaginário? A modernidade e a pós-modernidade pouca ou nenhuma originalidade acrescentam, limitando-se a repetir e reciclar? Convenha-se que, mínimas ou não, algumas alterações e inovações se verificaram.

Figura 19 Mason Williams. Esqueleto tatuado e bebé

A morte passa a ser menos disfarçada ou subentendida. A velha tende a ser substituída pela própria morte ou, mais precisamente, pela sua principal imagem-signo: o esqueleto. Volvidos quatro séculos da conclusão das Tentações de Santo Antão, no quadro A Morte e as Máscaras, datado de 1927, de James Ensor, destaca-se, entre os mascarados, um recém-nascido segurado ao colo não de uma velha mas de um esqueleto, a única figura sem máscara (Figura 18). Ressurge este tópico, por exemplo, nos motivos para tatuagem criados por Mason Williams (Figura 19).

Figura 20 Dança macabra. Impressa por Antoine Vérard. C. 1491-1492. Fonte Biblioteca Nacional de França

Mas esta diferença não deve ser sobrevalorizada. Inúmeros esqueletos, com ou sem carne, passeiam-se pelas pinturas e gravuras medievais e renascentistas. E fazem praticamente tudo o que é caraterístico de um ser humano (ver Vida de Esqueleto II. O Espelho: https://tendimag.com/2017/09/30/vida-de-esqueleto-ii-o-espelho/). Não é, aliás, de descartar a possível existência, que admito desconhecer, de uma qualquer imagem com um esqueleto a dar colo a uma criança. Registe-se que alguns esqueletos das danças macabras parecem tentados a embalar um berço. Por exemplo, na gravura da dança da morte mais antiga de que se tem conhecimento situada no cemitério dos Santos Inocentes, em Paris (Figura 20).

Figura 21 George Grosz. Estou feliz por estar de volta. 1943. Fonte Wikioo.org

Cumpre a Georg Grosz, pintor da desgraça humana do século XX, patentear a principal singularidade da nossa era. Na pintura Estou feliz por estar de volta, de 1943, um esqueleto andrajoso rasga a carne ensanguentada de um ventre rumo à luz, ao exterior, ao mundo (Figura 21). Eis a nova marca dos dois séculos mais recentes, modernos ou pós-modernos. Já não é só a morte que apaga a vida, a própria vida dá à luz a morte. No novo imaginário, muda a física, a geografia, e a orgânica, a progenitura, da relação entre a vida e a morte, este mundo e o outro. Nos séculos antigos, se o diabo andava, omnipresente, à solta, o inferno situava-se no Além, no outro mundo. Agora, o inferno está entre nós, “o inferno são os outros” (Jean-Paul Sartre, Huis Clos, 1944) ou, mais lucidamente, “somos nós”. Numa “sociedade mortífera”, a própria vida se encarrega de gerar a morte.

Autor: Albertino Gonçalves

A tragédia de Silka

Ilse Losa. Silka. Ilustrado por Manuela Bacelar. 1989.

Os silkies (ou selkies) são criaturas mutantes da mitologia nórdica, nomeadamente das Ilhas Faroé, Islândia, Irlanda e Escócia. Vivem como focas no mar e humanos na terra. Para transitar de um meio para outro, têm que retirar, ou recolocar, a sua pele de foca. Sem as suas peles, as silkies, de rara beleza, convivem à vontade com os humanos, mas, mal recuperam a pele, não hesitam em regressar ao mar. Os contactos com os humanos são breves e espaçados de sete em sete anos. Regressada ao mar, a silkie evita rever o seu marido humano, mas não se furta a brincar com os filhos na praia.

As lendas com silkies assinalam a dualidade, difícil de conciliar, entre o mar e a terra, mundos separados entre os quais o trânsito só é possível mediante uma metamorfose associada a uma mudança de pele. Mas a pele que liga os dois mundos acaba por encerrar uma vulnerabilidade fatal que conduz a uma morte insólita e terrível. A pele como chave abre a porta a um destino invulgarmente trágico. The Selkie of Suleskerry distingue-se como uma das lendas mais célebres:

Uma jovem tem um filho de um homem desconhecido que se revelou ser um silkie: homem na terra, foca no mar, residia nas rochas de Sule. Volvidos sete anos, a criatura do mar regressa para reclamar o filho, ao qual oferece uma corrente de ouro. A mãe deixa-o partir. Passado algum tempo, esta casa-se com um caçador negociante em peles de animais. Um dia o marido regressa a casa com as peles de duas focas que tinha matado com o fim de as oferecer à esposa: uma era de uma velha foca cinzenta, a outra de uma foca jovem com uma corrente de ouro no pescoço! Ela morre, dilacerada pela dor causada por esta visão.

A lenda The Selkie of Suleskerry inspirou uma balada, com várias versões, entre as quais de Joan Baez (vídeo 1). A interpretação do trio britânico Serious Kitchen resulta particularmente interessante (ver vídeo 2). Angelo Branduardi traduziu a balada para italiano acompanhando-a com um arranjo próprio (álbum Il Rovo e la Rosa: ballate d’amore e di morte; ver vídeo 3). Mas o motivo principal deste artigo não reside nem no trio Serious Kictchen, nem em Angelo Branduardi, nem na lenda de Silkie em si mesma. Este artigo é dedicado ao conto Silka (Edições Afrontamento, 1989), um texto original de Ilse Losa, escritora portuguesa de origem alemã. Estimo-o como um dos contos mais maravilhosos que me foi dado devorar. Para preservar o impacto da surpresa, não adianto mais nada. Reforço apenas o convite: ao investir alguns minutos nesta leitura, não perderá tempo, conquistará um momento feliz. Para aceder ao conto, carregar na imagem com a capa do livro ou no seguinte link:

Joan Baez. Silkie. Joan Baez. Vol. 2. 1961.
Serious Kitchen. The Selkie O’ Suleskerry. Tig. 2002. Recorded at The High Barn in February 2013.
Angelo Branduardi. Silkie. Il Rovo e la Rosa: ballate d’amore e di morte. 2013.

The Selkie O’ Suleskerry. Letras.

I
An earthly nurse sits and sings,
And aye, she sings by lily wean,
“And little ken. I my bairn’s father,
Far less the land where he dwells in.
II
For he came one night to her bed feet
And a grumbly guest, I’m sure was he,
Saying, “Here am I, thy bairn’s father,
Although I be not comely.”
III
He had ta’en a purse of gold
And he had placed it upon her knee
Saying, “Give to me my little young son,
And take thee up thy nurse’s fee.”
IV
“I am a man upon the land,
I am a silkie on the sea,
And when I’m far and far frae land,
My home it is in Sule Skerrie.”
V
“And it shall come to pass on a summer’s day,
When the sun shines bright on every stane,
I’ll come and fetch my little young son,
And teach him how to swim the faem.”
VI
“Ye shall marry a gunner good
And a right fine gunner I’m sure he’ll be,
And the very first shot that e’er he shoots
Will kill both my young son and me.”
 
Silkie
Col suo bambino stretto al seno
Stava piangendo una fanciulla
“Chi sia tuo padre non so più dire
Così remoto ora lui vive”
 
Ma a notte fonda lui ritornò
Un’ombra oscura che gemeva:
“Io sono il padre del tuo bambino
Benché non sia il benvenuto
 
Io sono un uomo sulla terra
Io sono un Silkie nel mio mare
Ma quando da te io vado lontano
La mia dimora è Sule Skerrie”
 
E poi lui prese una borsa d’oro
E la depose ai suoi piedi:
“Tu ora dammi il mio bambino
Questa è la paga per le tue cure
 
E quando poi verrà l’estate
Col sole ardente sulle pietre
Io prenderò il mio bambino
E nuoteremo tra le onde
 
“Tu troverai un buon marito
Un buon fucile al suo fianco
Ed io già so che al primo colpo
Ucciderà mio figlio e me”

Condenados

Marca: Galeries Barbès. Título: Condamné à mort. França, 1935.

Sem anúncios, nem alusão à morte, o Tendências do Imaginário está descaracterizado. Urge reparar.

Encontrei na página Culturepub o anúncio Condamné à mort, das Galerias Barbès, datado de 1935. Uma relíquia estranha! Numa cena de fuzilamento, os soldados não obedecem à ordem de “fogo” do oficilal. Em vez de disparar, mostram caixas de fósforos. Na verdade, recusam-se a disparar, não contra o condenado que fuma um despreocupado cigarro, mas contra a cadeira onde este está sentado. O oficial não tem outro remédio senão libertar o prisioneiro. Um anúncio a uma marca de tabaco? Só se for subliminar ou currículo oculto. Trata-se de um anúncio às Galerias Barbès onde a cadeira pode ser comprada. Carregar na imagem acima para aceder ao vídeo.

Alexandre Parafita. Mitologia Popular Portuguesa. 2021.

Ando entretido com o livro Mitologia Popular Portuguesa, de Alexandre Parafita, publicado em novembro de 2021. Inclui um poema que me apraz partilhar.

O CASAL DE ANCIÃOS E A MORTE

Conta-se que outrora havia
Em certa aldeia do norte
Dois anciãos, noite e dia,
Sempre a cismar com a Morte.

“- Oxalá na frente eu vá! –
Dizia sempre o velhinho.
– Não me vejo andar por cá
Co’ a falta do teu carinho”

E, ouvindo tal, a mulher
Responde-lhe sempre assim
“- Se a Morte por’ i vier,
Que me leve antes a mim!”

Nisto, uma pancada forte
Na porta se faz ouvir
“- Quem vem l´?” “- Sou eu, a Morte,
Quero entrar, venham abrir.”

E logo cheio de medo,
Diz o homem p’rá mulher:
“- Tenho um pé com formigueiro,
Vai lá ver o que quer!”

“Mas eu não posso! – diz-lhe ela –
Estou bem pior do que tu.
O formigueiro que tenho
Chega-me dos pés ó cu”.

Estavam assim nesta faina,
Sem vontade de lá ir,
E a Morte sempre a dizer:
“Vamos lá, venham abrir”

Até que farta e irritada,
Que faz a Morte depois?
Entrou com a porta fechada
E, em vez de um, levou os dois.

(Alexandre Parafita. Mitologia Popular Portuguesa. Sintra: Zéfiro. 2021, p. 100-101).

Dior

John William Waterhouse. Eco e Narciso. 1903.

“Surrealist images manage to make visible what is in itself invisible. I’m interested in mystery and magic, which are also a way of exorcising uncertainty about the future” (Maria Grazia Chiuri, responsável pela coleção de alta costura de outono-inverno 2020-2021 da Dior; https://www.dior.com/en_pt/womens-fashion/haute-couture-shows/fall-winter-2020-2021-haute-couture-collection).

Lento, longo e luxuoso, este vídeo da Dior é uma pérola. A viagem da alta costura pelos mundos da mitologia e da arte. Uma aposta na intertextualidade. Convoca figuras míticas e obras de arte. Recupera, por exemplo, as iluminuras medievais com mulheres nuas a sair de conchas ou o Narciso da pintura Eco e Narciso, de John William Waterhouse (1903). Quinze minutos de estética envolvente. “Alta costura, alta cultura”.

A Beatriz enviou-me este conto da Dior. A seguir a mim, é a Beatriz quem mais tem escrito no Tendências do Imaginário. Centenas de comentários. Não sei como lhe agradecer.

Dior. Le Mythe Dior. Dior Autumn-Winter 2020-2021 Haute Couture. Direção: Matteo Garrone. Julho 2020.

Ninguém é normal.

01. Nobody is normal. 2020.

A normalidade não existe. Apenas desvios à norma. Na literatura, abundam figuras de monstros que são bons e de bons que são monstros. Por exemplo, a Bela e o Monstro, de Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve (1745), Quasímodo, de Victor Hugo (1831) ou Dorian Gray, de Oscar Wilde (1890). No anúncio Nobody is normal, da britânica Childline  –  NSPCC (Sociedade Nacional para a Prevenção da Crueldade contra Crianças), todos são anormais por dentro e por fora.

02 Fonte de Diana de Éfeso. Tivoli. Villa d’Este

A metamorfose da figura feminina galardoada (ver figura 1) lembra, os justos que me perdoem, uma deusa grega, Ártemis, ou romana, Diana, na versão dita de Éfeso. “Bolsas” cobrem-lhe o peito (ver figuras 2 a 7). Há entendidos que alvitram seios, outros ovos ou testículos de touro. Sempre atributos de fertilidade, apanágio da “mãe natureza”. Entre as imagens de Ártemis de Éfeso, retenho a escultura no jardim da Villa D’Este, um colossal palácio maneirista construído no século XVI, em Tivoli, perto de Roma. As fontes de Villa d’Este são famosas (figuras 8 a 17). Os jatos de água provenientes das “bolsas” de Diana de Éfeso não enganam. Parecem seios, uma abundância de seios! Estes esguichos não são de ovos, nem de testículos de touro. Acode-me, que os justíssimos me perdoem, a lactação de São Bernardo (ver https://tendimag.com/2012/10/26/um-abraco-a-divindade-sao-bernardo-de-claraval/).

Anunciante: Nspcc. Título: Nobody is normal. Agência: The Gate. Direcção: Catherine Prowse. Reino Unido, Novembro 2020.

Galeria de imagens 1: Esculturas de Ártemis/Diana de Éfeso.

Galeria de imagens 2: Fontes da Villa d’Este, em Tivoli.

A aceleração da morte

Trail Cavalos.png

“Tarde, cerca da meia-noite, guiado pela juventude
Que comanda os enamorados, ia ver a minha amante.
Completamente só, além do Loire, e passando por um desvio
Aproximando-me de uma grande cruz numa encruzilhada,
Oiço, parecia-me, uma caça cheia de latidos
De cães que me seguiam, passo a passo, o rastro;
Vi perto de mim, sobre um grande cavalo negro,
Um homem que só tinha os ossos, ao vê-lo,
Estende-me uma mão para me montar na garupa.”

(Ronsard, Pierre de (1524-1585), Oeuvres complètes de Pierre Ronsart, Paris, P. Janet,1857-1867, pp. 134-135. Tradução minha, AG).

Anunciante: Rail Safety. Título: Horsepower. Agência: Marketforce Perth. Austrália, Agosto 2011.

O anúncio Horsepower, da Rail Safety, é um concentrado de símbolos e emoções. O galope é avassalador e imparável. Galopam os cavalos e galopa o anúncio. Galopam, ainda, o coração e a imaginação. O esquartejamento e barba sugerem as trevas medievais. As correntes metálicas e a carroçaria do comboio são frias e mortíferas. Os mitos associam os cavalos à morte, nomeadamente quando são negros como o cavalo que guia a manada. O final, em plena velocidade, sobressalta o espectador: um arrepio de quem sente passar a morte! Ameaçado entre potências, o ser humano descobre-se frágil, tão frágil como o viajante de Pierre Ronsart.

“Os cavalos da morte são, na maioria, negros, como Charos, Deus da morte dos Gregos modernos. Negros são também, na maioria das vezes, os corcéis da morte, cuja cavalgada infernal perseguiu durante muito tempo os viajantes perdidos, na França assim como em toda a cristandade (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des Symboles, Paris, Ed. Robert Laffont, 1969, p. 226).

Touros com rodas

Audi Q3

Já faltava um bom anúncio a um automóvel. Graças à sequência de imagens, ao texto, à música, à divisa e a uma boa composição global, o anúncio All conditions are perfect conditions é excelente. O Audi Q3 é sensual e robusto. Trata-se de um todo-o-terreno, preparado para “qualquer condição”. O Audi Q3 parece obra dos deuses. Sem menosprezar o Lamborghini, lembra um touro mítico cretense.

Pasifae. Vilanova i la Geltru. Espanha.

Pasifae. Vilanova i la Geltru. Barcelona. Espanha.

Zeus apaixonou-se por Europa. Avistando-a na praia, aproximou-se, transformado num touro branco com chifres e cascos de prata. Confiante, Europa montou no touro que a levou mar adentro até Creta.
Minos, filho de Zeus e Europa, casou com Pasifae. Na qualidade de rei de Creta, faz um pacto com Poseídon, prometendo-lhe sacrificar o melhor touro. Minos não cumpre a promessa. Sacrifica um touro vulgar. Sentindo-se enganado, Poseídon pede o auxílio de Vénus, que, durante a noite, implantou no coração de Pasifae, um desejo irresistível por um touro. Incapaz de se conter, Pasifae pede a Dédalo para lhe construir uma armadura em forma de vaca de modo a poder aproximar-se do touro (a versão bovina do cavalo de Tróia). O desejo foi satisfeito.
Da relação de Pasifae, mulher de Minos, com o touro, nasceu o Minotauro, um ser humano com cabeça de touro. Resultado de uma concepção anómala, o Minotauro envergonhava Minos e aterrorizava os cretenses. Minos encomenda a Dédalo a construção de um labirinto, de onde fosse impossível sair, para encarcerar o Minotauro.
Minos conquista Atenas, de cujo povo leva semanalmente sete rapazes e sete raparigas virgens para alimento do Minotauro. Teseu, filho do Rei de Atenas, junta-se a um destes grupos com o intuito de matar o Minotauro. Em Creta, Teseu conhece Ariadne que, apaixonada, lhe dá o novelo de lã para o ajudar a sair do labirinto. Teseu matou o Minotauro. Consta que a parte humana ficou na terra e a parte animal foi para o céu formando a constelação Touro.

O rapto de Europa. Mosaico. Byblos. Séc. III A.D. Beirute.

O rapto de Europa. Mosaico. Byblos. Séc. III A.D. Beirute.

O texto do anúncio inspira-nos um misto taurino de sexo e poder: esculpir, adrenalina, excitação… Esta é a alquimia de muitos anúncios a automóveis. Impressiona, contudo, que este chamamento seja o oposto dos anúncios de prevenção rodoviária. Adrenalina e excitação não é o que se espera de um condutor previdente. Como avaliam as altas autoridades os anúncios publicitários? Há uns tempos, espantei-me com a proibição de uma anúncio da Rexona por causa de três raparigas que dançavam no banco de trás de uma carrinha sem cinto de segurança (http://tendimag.com/2011/11/29/zelai-por-nos/). Se calhar, as Altas Autoridades atendem mais ao conteúdo do que à forma. Elas lá sabem! Foram nomeadas para impedir erros alheios de alto efeito. Alta Autoridade é um nome que cria urticária ideológica. Mais alto do que uma alta autoridade, só uma alta alta autoridade ou uma altíssima autoridade. As altas autoridades pegaram de estaca neste nosso húmus democrático. Soam a retro, soam talvez aos anos trinta.

Marca: Audi Q3. Título: All conditions are perfect conditions. Agência: Ogilvy & Mather, Cape Town. Direcção: Rob Malpage. África do Sul, Agosto 2015.

Texto do anúncio e tradução.

  This is not a road, it’s an invitation

This is not driving, this is carving.

These aren’t bad conditions, as there is no such thing.

This is not a flash flood. It’s a source of adrenalin.

Ok, this is treacherous. But so what?

This is not tension, this is excitment.

This is not a mountain, this is the next level.

All conditions are perfect conditions.

The new Audi Q3

Isto não é uma estrada, é um convite

Isto não é condução, isto é “esculpir”

Estas não são más condições, pois não existe tal coisa.

Isto não é uma enxurrada, é uma fonte de adrenalina.

Ok, isto é desleal. E então?

Isto não é tensão, isto é excitação.

Isto não é uma montanha, isto é o próximo nível.

Todas as condições são condições perfeitas

O novo Audi Q3-

Kit mitológico

Eis-me regressado de duas mostras do intelecto na luminosa Lisboa. Já sentia saudades de deitar o cérebro nos lençóis do ecrã.

A animação dos objectos é uma tentação ancestral. Atestam-no As Metamorfoses de Ovídio (43 a.C./17 d.C.) ou o Quebra-Nozes e o Rei dos Ratos de E.T.A. Hoffmann (1776 – 1822). Pedras, bonecos, árvores, utensílios, tudo pode ganhar vida com o sopro da imaginação. No anúncio “hummingbird”, um minúsculo pássaro metálico voa caprichosamente até encontrar a alma gémea: uma majestade mecânica denominada Audi.

Anunciante: Audi. Título: Hummingbird. Agência: BBH, UK. Direcção: Daniel Barber. Reino Unido, Setembro 2011.

Quem diz mitologia, diz Grécia. E grego é o anúncio “A Night at the Store” (uma paródia de Night at the Museum) composto por uma animação (libertação temporária) de objectos, muito ao gosto dos contos de E.T.A. Hoffmann.

Anunciante: Wind Telecommunications. Título: A Night at the Store. Agência: Leo Burnett, Athens, Greece. Direcção: Matthias Zentner. Grécia, Setembro 2011.

De têmpera divina, são os hamburgers Carl’s Jr, amassados pela fúria dos deuses e devorados por amazonas, nãomáquinas, desejantes.

Nestes tempos em que os homens e as mulheres ainda são seres humanos, a mitologia e a fantasia portam-se ambas bem. Palavra de Roland Barthes.

Anunciante: Carl’s Jr. Título: Hamblor, God of Hamburgers. Agência: David&Goliath, USA. Direcção: Guy Shelmerdine. EUA, Setembro 2011.