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La Llorona

A Llorona é uma figura mitológica, sobrenatural, de origem milenar, da América Latina, nomeadamente do México. Alude a uma mãe que, traída pelo marido, afoga, num ataque de ciúmes, os próprios filhos. Arrependida e incapaz de resgatá-los, ela também se afoga, mas é-lhe impedida a entrada no outro mundo, na vida após a morte. Resulta, assim, condenada a penar aparecendo, de noite, principalmente, vestida de branco e perto de lugares com água.

Carmen Goett. La Llorona. Vídeo oficial, 2019. Postales, 2022

Programa da Noite dos Medos, em Melgaço

A lenda da massa carbonara

Barilla. Carebonara. 2021

A duração conta. Muitas vezes, para saborear um alimento, uma ideia ou uma imagem convém dedicar-lhe tempo. Reserve o visionamento desta curta-metragem das massas Barilla para quando lhe puder conceder dez minutos de atenção. Já agora, se não conseguir, talvez seja a hora de reconsiderar o que é ser pobre neste mundo.

Marca: Barilla. Título: Carebonara. Agência: Alkemy. Direção: Xavier Mairesse. Itália, abril 2021,

Origem da massa carbonara

Tal como a maior parte das receitas tradicionais, origem deste prato é incerta, existindo diversas lendas. Refere-se que possa ter sido criada na região italiana do Lazio, na Roma antiga, sendo uma possível evolução da pasta (massa) cacio (queijo de ovelha ou cabra) e ova (ovo).[8] Como o nome deriva da palavra italiana para carvão, alguns acreditam que tenha sido uma refeição suculenta para os carvoeiros na Itália (carbinai).[8] Outros dizem que antigamente era feita sobre grelhadores de carvão. Ainda outros sugerem que as manchas pretas de toucinho e pimenta se assemelham a pequenos pedaços de carvão, o que poderia explicar o nome. Também foi sugerido que poderia ter sido inventado pelos membros da Carbonária, uma sociedade secreta italiana.

O prato não era conhecido antes da Segunda Guerra Mundial, não estando presente no livro clássico da culinária italiana La Cucina Romana, da autoria de Ada Boni, datando de 1927. Pensa-se que terá tido origem em zonas montanhosas fora de Roma e não dentro da cidade, mais concretamente nos montes apeninos. A sua popularidade começou após a Segunda Guerra Mundial, quando muitos italianos comiam ovos e toucinho fornecidos por tropas norte-americanas. Também se tornou popular entre as tropas norte-americanas estacionadas na Itália. Quando regressaram a casa, tornaram a receita popular nos EUA.

Outras teorias apontam que o primeiro a dar-lhe um nome foi o escritor culinário napolitano Ippolito Cavalcanti, que publicou a receita pela primeira vez no ano de 1839, no seu livro Cucina teorico-pratica. Uma outra hipótese indica que o prato pode ter tido origem em Carbonia, uma povoação a oeste de Cagliari, fruto da criatividade de um cozinheiro talentoso, que acabaria por se mudar para Roma, à procura de trabalho. Diz-se que o prato teria tido tanto sucesso que o cozinheiro, talvez por timidez, lhe acabaria por dar o nome da sua terra, em vez do seu. (Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Carbonara, consultado em 12.09.2022)

A tragédia de Silka

Ilse Losa. Silka. Ilustrado por Manuela Bacelar. 1989.

Os silkies (ou selkies) são criaturas mutantes da mitologia nórdica, nomeadamente das Ilhas Faroé, Islândia, Irlanda e Escócia. Vivem como focas no mar e humanos na terra. Para transitar de um meio para outro, têm que retirar, ou recolocar, a sua pele de foca. Sem as suas peles, as silkies, de rara beleza, convivem à vontade com os humanos, mas, mal recuperam a pele, não hesitam em regressar ao mar. Os contactos com os humanos são breves e espaçados de sete em sete anos. Regressada ao mar, a silkie evita rever o seu marido humano, mas não se furta a brincar com os filhos na praia.

As lendas com silkies assinalam a dualidade, difícil de conciliar, entre o mar e a terra, mundos separados entre os quais o trânsito só é possível mediante uma metamorfose associada a uma mudança de pele. Mas a pele que liga os dois mundos acaba por encerrar uma vulnerabilidade fatal que conduz a uma morte insólita e terrível. A pele como chave abre a porta a um destino invulgarmente trágico. The Selkie of Suleskerry distingue-se como uma das lendas mais célebres:

Uma jovem tem um filho de um homem desconhecido que se revelou ser um silkie: homem na terra, foca no mar, residia nas rochas de Sule. Volvidos sete anos, a criatura do mar regressa para reclamar o filho, ao qual oferece uma corrente de ouro. A mãe deixa-o partir. Passado algum tempo, esta casa-se com um caçador negociante em peles de animais. Um dia o marido regressa a casa com as peles de duas focas que tinha matado com o fim de as oferecer à esposa: uma era de uma velha foca cinzenta, a outra de uma foca jovem com uma corrente de ouro no pescoço! Ela morre, dilacerada pela dor causada por esta visão.

A lenda The Selkie of Suleskerry inspirou uma balada, com várias versões, entre as quais de Joan Baez (vídeo 1). A interpretação do trio britânico Serious Kitchen resulta particularmente interessante (ver vídeo 2). Angelo Branduardi traduziu a balada para italiano acompanhando-a com um arranjo próprio (álbum Il Rovo e la Rosa: ballate d’amore e di morte; ver vídeo 3). Mas o motivo principal deste artigo não reside nem no trio Serious Kictchen, nem em Angelo Branduardi, nem na lenda de Silkie em si mesma. Este artigo é dedicado ao conto Silka (Edições Afrontamento, 1989), um texto original de Ilse Losa, escritora portuguesa de origem alemã. Estimo-o como um dos contos mais maravilhosos que me foi dado devorar. Para preservar o impacto da surpresa, não adianto mais nada. Reforço apenas o convite: ao investir alguns minutos nesta leitura, não perderá tempo, conquistará um momento feliz. Para aceder ao conto, carregar na imagem com a capa do livro ou no seguinte link:

Joan Baez. Silkie. Joan Baez. Vol. 2. 1961.
Serious Kitchen. The Selkie O’ Suleskerry. Tig. 2002. Recorded at The High Barn in February 2013.
Angelo Branduardi. Silkie. Il Rovo e la Rosa: ballate d’amore e di morte. 2013.

The Selkie O’ Suleskerry. Letras.

I
An earthly nurse sits and sings,
And aye, she sings by lily wean,
“And little ken. I my bairn’s father,
Far less the land where he dwells in.
II
For he came one night to her bed feet
And a grumbly guest, I’m sure was he,
Saying, “Here am I, thy bairn’s father,
Although I be not comely.”
III
He had ta’en a purse of gold
And he had placed it upon her knee
Saying, “Give to me my little young son,
And take thee up thy nurse’s fee.”
IV
“I am a man upon the land,
I am a silkie on the sea,
And when I’m far and far frae land,
My home it is in Sule Skerrie.”
V
“And it shall come to pass on a summer’s day,
When the sun shines bright on every stane,
I’ll come and fetch my little young son,
And teach him how to swim the faem.”
VI
“Ye shall marry a gunner good
And a right fine gunner I’m sure he’ll be,
And the very first shot that e’er he shoots
Will kill both my young son and me.”
 
Silkie
Col suo bambino stretto al seno
Stava piangendo una fanciulla
“Chi sia tuo padre non so più dire
Così remoto ora lui vive”
 
Ma a notte fonda lui ritornò
Un’ombra oscura che gemeva:
“Io sono il padre del tuo bambino
Benché non sia il benvenuto
 
Io sono un uomo sulla terra
Io sono un Silkie nel mio mare
Ma quando da te io vado lontano
La mia dimora è Sule Skerrie”
 
E poi lui prese una borsa d’oro
E la depose ai suoi piedi:
“Tu ora dammi il mio bambino
Questa è la paga per le tue cure
 
E quando poi verrà l’estate
Col sole ardente sulle pietre
Io prenderò il mio bambino
E nuoteremo tra le onde
 
“Tu troverai un buon marito
Un buon fucile al suo fianco
Ed io già so che al primo colpo
Ucciderà mio figlio e me”

O Galo e a morte. A arte de morrer

 

Uma mulher confidencia a outra que acabou de viver uma situação de emergência médica: “O galo rondou esta casa, deu várias voltas, mas foi pousar noutro sítio”. Por coincidência, um vizinho faleceu nessa noite.

O galo é um símbolo solar. Anuncia a aurora e a luz. É também um símbolo de valentia. Na mitologia grega, o galo, consagrado a Hermes, é um psicopompo, “função tradicionalmente atribuída a Hermes no mito grego, pois ele, além de mensageiro dos deuses, era o deus que acompanhava as almas dos mortos, sendo capaz de transitar entre as polaridades (não somente a morte e a vida, mas também a noite e o dia, o céu e a terra)” (Dicionário Crítico de Análise Junguiana, Edição Eletrônica © 2003 Andrew Samuels/Rubedo, p. 88). Além desta função de transição entre as polaridades (as trevas e a luz; a morte e a vida), o galo comporta um lado lunar.

 

Existem imensas histórias em que a morte e o galo se cruzam. O galo de Barcelos é o primeiro exemplo que ocorre. Cozinhado e ressuscitado, o galo é protagonista de uma lenda marcada pela morte (ver https://tendimag.com/2017/08/20/o-cruzeiro-do-senhor-do-galo-em-barcelos-revisao/). Acresce o galo da Negação de São Pedro antes da crucificação de Cristo. A associação do galo à morte está arreigada na crença popular. No Brasil, em Espanha e em Portugal, acredita-se que o canto do galo fora de horas (antes ou à meia-noite) é mau augúrio: alguém da casa, ou vizinho, vai morrer. O galo junta-se, assim, aos animais anunciantes da morte: o mocho, a borboleta negra, o morcego, o cão, o gato… Um conto brasileiro inicia com um galo a matar uma criança. A mãe pede a outro filho para matar o galo e o abandonar em água corrente. O filho não segue a recomendação. Ele e três amigos matam o galo, cozinham-no e morrem antes de o provar (http://www.recantodasletras.com.br/contosinsolitos/830891).

03. Mestre E.S. Tentação da falta de fé. Ca. 1450

03. Mestre E.S. Tentação da falta de fé. Ca 1450

Estas gravuras de Mestre E. S. (1420-1468) foram publicadas no ano em que nasceu Hieronymus Bosch (1450-1516). Artes distintas, temas semelhantes: a morte, o pecado, a condenação, o céu e o inferno (Figuras 1 e 2). As gravuras de Mestre E. S. integram a torrente de imagens dedicadas à Ars moriendi (Arte de morrer). Testemunham uma mudança de atitude perante a morte. Observa-se uma antecipação do juízo final. A decisão deixa de esperar pelo fim dos tempos para se concentrar no momento de morrer. Continua a envolver um combate cósmico. De um lado, as forças celestiais, do outro, as forças demoníacas. As pessoas presentes não conseguem ver estas forças que disputam a alma do defunto. Apenas o moribundo (atente-se no alheamento do grupo de três pessoas na Figura 3). Acredita-se que o moribundo é submetido a uma prova, a uma tentação. Consoante a sua reacção assim é salvo ou condenado, não obstante as boas ou as más acções do livro da vida. Num ápice, resgata-se ou desgraça-se uma vida inteira. Faz sentido convocar o pensamento de Petrarca: “Que uma bela morte toda a vida honra”. Neste quadro, os livros dedicados à Ars moriendi, à arte de morrer, alcançam um enorme sucesso.

04. Mestre E.S. Ars moriendi. Ca. 1450

04. Mestre E.S. Ars moriendi. Ca 1450

“O moribundo está recostado, rodeado pelos seus amigos e parentes. Seguem-se os rituais bem conhecidos. Mas sucede algo que perturba a simplicidade da cerimónia e que os assistentes não vêem; um espectáculo reservado apenas ao moribundo, que, por acréscimo, o contempla com um pouco de inquietação e muita indiferença. A habitação foi invadida por seres sobrenaturais que se apinham na cabeceira do jazente. De um lado, a Trindade, a Virgem e toda a corte celestial; do outro, Satanás e o exército dos demónios monstruosos. A grande concentração que nos séculos XII e XIII tinha lugar no fim dos tempos ocorre, a partir de agora, no século XV, na habitação do enfermo (…) Deus e a sua corte estão ali para constatar como o moribundo se vai comportar no momento da prova que lhe é proposta antes do seu último suspiro e que vai determinar a sua sorte na eternidade. A dita prova consiste numa última tentação. O moribundo verá a sua vida inteira tal como está contida no livro, e será tentado, tanto pelo desespero das suas faltas como pela vanglória das suas boas acções, bem como pelo amor apaixonado das coisas e dos seres. A sua atitude, no resplendor desse momento fugitivo, apagará de um só golpe todos os pecados da sua vida se afasta a tentação ou, pelo contrário, anulará todas as suas boas acções se não lhe resiste. A última prova tomou o lugar do Juízo Final” (Ariès, Philippe, Historia de la muerte en Occidente, Barcelon, Cadernos Crema, 2000,  pp. 48 e 49).

05. Mestre E.S. Ars moriendi. Ca. 1450

05. Mestre E.S. Ars moriendi. Ca 1450

As gravuras de Mestre E. S. condizem com a análise de Philippe Ariès. Na hora da morte, defrontam-se as cortes celestial e demoníaca. Na gravura da Figura 3, apesar das preces do rei e da rainha, o desfecho inclina-se para o lado do inferno. Na gravura seguinte (Figura 4), a prova está vencida: um anjo acolhe a alma do defunto. Na terceira gravura (Figura 5), pela disposição dos protagonistas, o moribundo está a superar a prova. A chave de São Pedro está próxima e os demónios parecem resignados. À cabeceira do leito, destaca-se um galo. Qual é o seu papel? Cantor de mortes? Psicopompo? “Luz da noite”, o galo situa-se, de facto, entre dois mundos: o céu e o inferno, a luz e as trevas, a vida e a morte. O galo é também “companheiro” inseparável de São Pedro. Na morte como na vida, a polissemia é uma tentação, que tem a virtude de nos fazer oscilar.

Morte, erotismo e política (revisto)

 

Jean-Michel Basquiat. Riding with Death. 1988.

01. Jean-Michel Basqjuiat. Riding with Death. 1988.

Riding With Death, de Jean-Michel Basquiat (1960-1988), é uma pintura que surpreende. Foi concluída em 1988, ano em que Basquiat faleceu, com 27 anos de idade, vítima de uma overdose de uma mistura de cocaína e heroína. Muitos encaram esta pintura como uma premonição. Mas quase toda a obra de Basquiat convoca a morte: esqueletos, caveiras, corpos transparentes, frases… Entre as imagens da morte, não tenho memória de uma “figura humana”, eventualmente híbrida, a cavalgar a morte. São, aliás, raras as imagens em que a morte aparece subordinada, como no episódio da descida de Cristo ao inferno (ver O Triunfo sobre a Morte).

Quem conduz? O título do quadro não é “Riding Death”, cavalgando a morte, mas Riding With Death, cavalgando com a morte. Estes cambiantes lembram duas lendas. Na primeira, conduz quem é montado. É o caso do rapto de Europa por Zeus, transformado em touro. Europa senta-se no dorso do touro que a sequestra ( ver O rapto de Europa. Com os olhos no retrovisor). Na segunda lenda, com Filis e Aristóteles, conduz quem monta.

Alexandre O Grande andava perdido de amores por Fílis, uma bela mulher proveniente da Índia. Ao ponto de descurar as responsabilidades e o governo do império. Aristóteles, tutor de Alexandre, chamou-o à razão: devia moderar os seus encontros com Fílis. Alexandre acedeu ao pedido de Aristóteles.

Fílis não gostou da interferência de Aristóteles. Decidiu, com êxito, seduzi-lo. É a vez de Aristóteles andar perdido de amores por Fílis.

06. Filis e Aristóteles., Cadouin Abbey, França

06. Filis e Aristóteles., Cadouin Abbey, França. Fim do séc. XV – início do séc. XVI.

Um dia, Fílis propõe a Aristóteles: “dou-te o meu corpo, mas, primeiro, acedes que ande montada nas tuas costas”, segundo algumas imagens, com rédeas, chicote e esporas (ver Figura 9). Alexandre, avisado, assistiu à cena. Quis expulsar Aristóteles. Mas, em verdade, só agora a lição se perfazia: se até um velho sábio não resiste ao encanto de uma mulher, que esperar de um jovem rei”.

A imagem de Fílis a montar Aristóteles, com trejeitos de sadomasoquismo, tornou-se célebre, em particular, na Idade Média e, sobretudo, no chamado Renascimento do Norte. De qualquer modo, esta lenda comporta uma lição claramente expressa: o erótico desafia o sábio e o político.

09. George Pencz. Fílis e Aristóteles. 1530. Para além das rédeas, Filis usa esporas.

09. George Pencz. Fílis e Aristóteles. 1530. Para além das rédeas, Filis usa esporas.

Um último apontamento sobre a Farsa de Inês Pereira (1523), de Gil Vicente. Inspirada na máxima “mais quero um asno que me carregue do que cavalo que me derrube”, a farsa termina com o segundo marido a carregar às costas Inês Pereira para a levar até ao amante, o Ermitão. “Pois assi se fazem as cousas” ( ver pdf: Gil Vicente. Farsa de Inês Pereira. Parte final).

O Cruzeiro do Senhor do Galo em Barcelos (revisão)

01. Cruzeiro do Galo. Barcelos. Face anterior.

01. Cruzeiro do Galo. Barcelos. Face anterior

Vale a pena visitar o Cruzeiro do Galo, em Barcelos. Outrora localizado perto da forca, agora situado no Museu Arqueológico da cidade, é uma obra única, de traço popular, porventura do início do séc. XVIII. Um exemplo ímpar da arte de contar com poucas imagens difíceis de esculpir: o galego “enforcado”, São Tiago a ampará-lo e o galo, combativo e matinal, a iluminar as trevas; no topo, Cristo na cruz. No lado oposto, São Bento (?), Nossa Senhora (?), o sol e a lua. Impressiona a centralidade da morte: o “enforcado”, o galo renascido e Cristo crucificado. Tudo gira em torno do galo, símbolo associado ao sol nascente e à ressurreição:

“O galo é também um emblema de Cristo, como a águia e o cordeiro. Mas assume especial relevo o seu simbolismo solar: luz e ressurreição” (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, 1982, Dictionnaire des symboles, Paris, Robert Laffont/Jupiter, p. 282).

Impressiona, também, a elevada cristalização simbólica: Cristo, Nossa Senhora, São Bento e São Tiago, as figura sagradas mais influentes no noroeste peninsular, o galo, o sol e a lua e, naturalmente, a forca. Uma carga simbólica difícil de igualar.

02. Cruzeiro do Galo. Barcelos. Face posterior.

02. Cruzeiro do Galo. Barcelos. Face posterior

Amaral Ribeiro, na sua Notícia sobre a Villa de Barcelos, de 1867, descreve, de forma sistemática, a iconografia do Cruzeiro do Galo:

“Na face anterior da coluna tem lavrada em relevo a figura de um homem pendente de uma corda bamba, amarrada ao pescoço; por baixo, outra figura com a cabeça e com a mão esquerda na atitude de suster as plantas dos pés do homem que pende do laço e tendo na mão direita um bordão com a cabaça, pelo que denota ser Santiago. Na face posterior, tem em cima, a um canto, a figura do sol, e no outro a da lua; ocupa o centro uma figura que parece ser Nossa Senhora; por baixo, outra que se assemelha a São Bento por ter na mão direita um cajado e na esquerda um livro aberto. Em cima da coluna, como vai dito, assenta uma cruz com peanha. A cruz, de um e outro lado, tem esculpida a imagem de Cristo crucificado. A peanha, em cima da cabeça do justiçado, apresenta a figura de um galo; na outra face, divisam-se os traços de um dragão” (Ribeiro Amaral, 1867, citado em http://www.summagallicana.it/lessico/b/Barcelos.htm).

 

A Lenda do Galo não é simples, mas pode resumir-se em poucas palavras.

Dois galegos, pai e filho, dirigem-se em peregrinação a Santiago de Compostela. Entram numa estalagem. A dona conhecida pela sua beleza encara com o jovem galego. Procura, em vão, reter os clientes. Mal retomam viagem, a guarda aprisiona o mancebo. A estalajadeira escondeu talheres de prata na sacola do galego e denunciou o roubo. O jovem galego foi condenado à forca. O pai acode ao juiz que lhe diz que só acredita na inocência do condenado se o galo assado começar a cantar. Dito e feito. O galo cantou como nunca. Mas chegara a hora de executar a sentença. O pai e o juiz não chegam a tempo, mas… a corda estava frouxa; São Tiago amparava o condenado, vivo, pelas plantas dos pés. Com Nossa Senhora e S. Bento prontos a ajudar.

05. Cruzeiro do Galo. Face anterior. S. Tiago ampara o enforcado

Cruzeiro do Galo. Face anterior. S. Tiago ampara o enforcado

“Segundo a tradição popular o galego regressou uns anos mais tarde a Barcelos, onde esculpiu o Cruzeiro do Senhor do Galo, monumento datado do início do século XVIII” (O Galo Lendário. Calçada da Miquinhas: http://calcadadamiquinhas.blogspot.pt/2012/04/).

Numa lenda popular, o diabo costuma ter lugar cativo. Neste caso, veste as saias da estalajadeira, a instigadora da crise. À justiça não se pode querer mal por ser aquilo que é: cega. Os galegos são as vítimas. São Tiago resgata o peregrino. O protagonista é o galo.

06. Cruzeiro do Galo. Face anterior. Galo e Cristo crucificado

06. Cruzeiro do Galo. Face anterior. Galo e Cristo crucificado

A Lenda do Galo de Barcelos é percorrida por dois eixos, ou movimentos: o eixo do bem, desde a chegada dos peregrinos a Barcelos até ao regresso do galego para a construção de um ex-voto enorme, o Cruzeiro do Galo; e o eixo do mal, que vai desde encantamento da estalajadeira até à forca. Este segundo eixo interrompe ou suspende o primeiro eixo. O terceiro eixo, o da justiça, é coadjuvante. Opera uma inversão: o mal inicial converte-se no bem final.

07. Cruzeiro do Galo. Face posterior. Imagem de Nossa Senhora

07. Cruzeiro do Galo. Face posterior. Imagem de Nossa Senhora

A intervenção do galo, embora curta, coloca-o no centro da lenda. Vigilante e protector, o galo ergue-se nos cataventos e nas torres das igrejas. Rocha Peixoto, em 1899, caracteriza o galo nos seguintes termos:

“Na impressão que as aves exercem destaca-se a que produz esta [o galo], visivelmente pelos costumes dominadores e másculos. Altivo e majestoso, vigilante e cúpido, todo o povo o celebra, em contos, em superstições, em cantares:
Este galo é malvado,
Desonrador das galinhas
Inda bem não amanhece,
Já anda pelas curtinhas. (…)
Foi ele quem afirmou a divindade de Jesus quando os apóstolos, à mesa, duvidavam; é ele quem se antecipa a anunciar as alvoradas:
Canta o galo, abre a luz.
E grande é o seu poder sobre as entidades maléficas das trevas, já celebrado nos hinos da Igreja e nos cantos populares, antigo e extenso na simbólica grega, por exemplo, no Avesta em que o canto do galo obriga os demónios a fugir, desperta a aurora e faz erguer os homens” (Rocha Peixoto, 1990 [1899], Etnografia Portuguesa. Indústrias populares. As olarias de Prado, in Etnografia Portuguesa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990, pp. 89-132, p. 115).

Importa relevar dois traços da simbologia do galo.

O galo, tal como o cão, é um animal psicopompo (guia das almas; junção do grego pyché, alma, e pompos, guia). O galo procede à mediação entre bipolaridades: o dia e a noite, o céu e a terra, o bem e o mal. No caso do cruzeiro do Senhor do Galo, destacam-se duas bipolaridades: a vida e a morte e a verdade e a mentira. As gravuras medievais das ars moriendi evidenciam o papel do galo como animal psicopompo. O galo aparece empoleirado no quarto dos moribundos, algumas vezes na própria cabeceira da cama (ver O Galo e a Morte: https://tendimag.com/2016/10/19/o-galo-e-a-morte/). A particularidade de o galo ser um símbolo psicopompo manifesta-se útil para a interpretação da lenda e do cruzeiro do galo.

08. Cruzeiro do Galo. Face posterior. Imagem de São Bento

08. Cruzeiro do Galo. Face posterior. Imagem de São Bento

Contemplamos, até ao momento, o lado anterior do cruzeiro. É tendência predominante nos diversos textos a que tive acesso. Na parte posterior, identifica-se S. Bento e Nossa Senhora, o sol e a lua, mais um presumível dragão. Mas, qual é o papel de S. Bento? E de Nossa Senhora?…

O sol e a lua expressam o poder de Cristo sobre o mundo. E são ofuscados pelo brilho de Nossa Senhora. Na mesma lógica, os quatro elementos e as quatro estações de Giuseppe Arcimboldo representam o poder do imperador sobre o espaço e sobre o tempo, logo sobre o mundo. Simplificando, e sem relevar que o sol e a lua são símbolos alquimistas retomados pela maçonaria, o sol e a lua conferem uma dimensão cósmica ao evento. A interpretação é plausível, o que não obsta a outras conjecturas e derivações. O galo é, por excelência, um símbolo solar. Anuncia a luz do dia. Mas quando canta, a noite ainda não desapareceu.

09. Cruzeiro do Galo. Nossa Senhora, o sol e a lua

09. Cruzeiro do Galo. Nossa Senhora, o sol e a lua

Para Rocha Peixoto, “grande é o poder do galo sobre as entidades maléficas das trevas”. Existem crenças e rituais que convocam a componente nocturna do galo. No imaginário, as demarcações não são rígidas. O mundo não se apresenta a preto e branco. Comporta travessias e paradoxos. O mundo é contradictorial, na acepção de Gilbert Durand (1979, Figures mythiques et visages de l’oeuvre: De la mythocritique à la mythanalyse, Paris, Berg International). Os contrários não se anulam, nem se ultrapassam, coexistem, dando margem à ambiguidade e à ambivalência. Símbolo solar, o galo também pode ser lunar. Na mitologia grega, o galo estava consagrado aos deuses solares, mas também às deusas lunares. “O galo está ao lado de Leto, grávida de Zeus, quando ela dá à luz Apolo e Artemis. Também é, igualmente, consagrado, a Zeus, a Apolo, a Leto e a Artemis, ou seja, aos deuses solares e às deusas lunares (Chevalier, Jean, Dir, 1986, Diccionario de los Símbolos, Barcelona, Editorial Herder, p. 521).

10- Meister E. S., Ars moriendi. Circa 1450.

10- Meister E. S., Ars moriendi. Circa 1450g

O dragão costuma oferecer-se como uma imagem do mal, do diabo que se insinua na lenda do Galo. E Nossa Senhora e São Bento, que significam? São Bento é exorcista; combate o diabo. Nossa Senhora também nos livra do mal. Ambos nos protegem dos demónios. Por outro lado, Nossa Senhora e São Bento são as figuras sagradas mais veneradas na região. A esta luz, o cruzeiro do Senhor do Galo lembra uma gravura das Ars Moriendi: na hora da morte, o moribundo é rodeado por figuras divinas e demoníacas, que lutam pela salvação ou pela condenação de sua alma (ver o Galo e a Morte: https://tendimag.com/2016/10/19/o-galo-e-a-morte/).

11. Galo de Barcelos

11. Galo de Barcelos

Uma última pergunta: que ligação existe entre o cruzeiro do Senhor do Galo e o famoso galo cerâmico de Barcelos? Aparentemente, pouca, se não nenhuma. Estima-se que a construção do cruzeiro do Galo remonta aos inícios do século XVIII. O galo de Barcelos, com a estilização e os atributos actuais, data de meados do século XX. Desde finais do século XIX, existem exemplares, imagens e referências a galos da olaria de Barcelos, mas ainda são “protogalos”, segundo a expressão de João Manuel Mimoso (Uma História Natural do Galo de Barcelos: http://www.inverso.pt/barcelos/galo/textos/historia.htm). Estes “protogalos” não passaram despercebidos ao Estado Novo e aos “comissários” dedicados ao estudo, estilização e promoção das artes e tradições populares. Por iniciativa de António Ferro e Leitão de Barros, e participação de Artur Maciel e Manoel Couto Viana (impulsionador do traje à vianesa), foram oferecidos, num congresso internacional, no Estoril, em Setembro de 1931, galos de cerâmica. A seu tempo e a seu modo, o SPN/SNI também se interessou pelo “protogalo”de Barcelos. “Por ocasião da Exposição do Mundo Português, se produziram milhares de peças, entre reproduções do figurado antigo, e novidades por ele mais ou menos inspiradas” (Mimoso, João Manuel, Uma História Natural do Galo de Barcelos: http://www.inverso.pt/barcelos/galo/textos/historia.htm). O Galo de Barcelos corporiza um daqueles ovos de Colombo que o Estado Novo prezava: o local como caso particular do nacional.

 

O facto de um fenómeno emergir dois séculos depois de outro não é obstáculo à sua ligação. Apenas não nasceram juntos. Para haver relação, basta, por exemplo, que o segundo se inspire no primeiro. A maioria da informação a que acedi não aponta no sentido de uma conexão. Sobressaem, contudo, obras célebres que sustentam o contrário (por exemplo, Lima, Fernando de Castro Pires de, 1965, A Lenda do Senhor do Galo de Barcelos e o Milagre do Enforcado, Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho). Trata-se de um assunto polémico e confuso.

São vários os supostos criadores originais do Galo de Barcelos. Domingos Côto, o “pai” mais “consensual” do Galo de Barcelos, dessacraliza o acto fundador:

“Estava eu aqui sentado, a jantar, e reparei num galo, de asas abertas, pimpão, a arrastar a asa à galinha, e vai daí disse ao meu irmão: vou fazer um galo a namorar a galinha. Pus-me ao trabalho e a gente virou p’ra isto que aí vê” (citado em “O Galo Lendário”: http://calcadadamiquinhas.blogspot.pt/2012/04/).

Mas para toda a afirmativa, existe sempre outra afirmativa:

“Procurei junto dos familiares do “pai” do Galo de Barcelos cimentar a questão em causa. Todos afirmam que foi Domingos Côto que fez o primeiro galo de barro e que o fez inspirado na lenda do Galo de Barcelos. Dos familiares desse oleiro, destaca-se um: Júlia Côta, neta de Domingos Côto, e insigne artesã (…) Quando lhe perguntei por que razão é que o avô começara a fazer os galos e donde é que lhe veio a ideia, Júlia Cota respondeu convicta sem hesitação: “Olhe! Foi a partir da Lenda do Galo que o meu avô começou a fazer galos” (“Galo de Barcelos”: http://www.galegossmaria.maisbarcelos.pt/?vpath=/inicio/ogalodebarcelos/).

Carlos Alberto Ferreira de Almeida sublinha o momento em que começou a vingar a narrativa que associa o galo cerâmico ao galo da lenda:

14. Galo de Barceleos. Cleção do Museu de Arte Popular, em Lisboa.

14. Galo de Barcelos. Colecção do Museu de Arte Popular, em Lisboa

“A lenda que o cruzeiro do Senhor do Galo, entretanto também chamado de Barcelos, nos ilustra não parou na sua capacidade de originar fenómenos culturais. A lenda do cruzeiro do Senhor do Galo era de há muito conhecida. Objectivamente e até 1963, ela não teve nada a ver, nem geográfica, nem cronológica, nem mentalmente, com a figura do galo cerâmico que o turismo lançara e tanto desenvolveu. Naquele ano, F. Pires de Lima publica um livro sobre A Lenda do Galo de Barcelos e o Milagre do Enforcado (Lisboa, 1963) a que se seguiu uma conferência local, onde o autor ensaiou o estudo comparativo dessa narrativa e afirmou a possibilidade de ter havido uma relação entre o galo da lenda e o da cerâmica. Poderá parecer, mas, até esse momento, não havia qualquer ligação. Mas tanto bastou para que pessoas locais o passassem a acreditar e os agentes e guias de turismo o divulguem mais. E o galo que era já um númen da cidade de Barcelos e tinha uma ascendência muito curta e até envergonhada por ser um simples fenómeno de quadro da feira de Barcelos e do turismo ficou com uma apetecida origem religiosa. E assim nasceu um mito (ALMEIDA, Carlos, 1990, Barcelos. Cidades e Vilas de Portugal, Lisboa, Presença, pp. 99-100).

O testemunho de Carlos Basto recolhido por Elisabete Muga Rodrigues (2008, O galo de Barcelos. Do Mito, do Símbolo e do ícone, dissertação para a obtenção do grau de mestre, Universidade Lusíada, Lisboa, p. 32) aponta no mesmo sentido: “que esta união entre Lenda e Galo terá acontecido no meio de uma conversa entre este e Simplício de Sousa ao qual Pires de Lima também assistia. Carlos Basto terá achado a ideia ridícula e assegurado que a Lenda e o Galo não tinham qualquer relação ou fundamento histórico, mas Simplício de Sousa (forte impulsionador das primeiras feiras de artesanato realizadas em Barcelos) terá afirmado que, independentemente de não ter fundamento histórico, havia muito interesse turístico”.

 

Para que dois fenómenos culturais se associem, não é necessária uma relação objectiva, basta que se ergam pontes entre ambos. Basta uma “autoridade” assegurar que a ligação existe e haver quem acredite. A ligação passa a existir e torna-se viva. Os interesses comandam, as comunidades imaginam-se, as tradições reinventam-se e as identidades são como o barro, moldam-se.

Segue “a mais antiga e mais completa versão escrita da Lenda do Senhor do Galo” (Domingos J. Pereira, Nova Memória Histórica da Villa de Barcelos, ampliada, manuscrita, 1877). Está acessível na página do projeto maisBarcelos: http://www.galegossmaria.maisbarcelos.pt/?vpath=/inicio/ogalodebarcelos/

Lenda do Senhor do Galo

“Por aqueles sítios, à beira da estrada velha, talvez no mesmo sítio do Senhor do Galo, havia uma estalagem muito concorrida pelos viandantes que se desfaziam em elogios sobre a formosura, sem igual, da sua dona, moça gentil, cuja fama de beleza se estendia por muitas léguas, mas em desabono de quem nada havia que dizer. Fez o diabo (e quem senão ele!) que em certo dia acertou de entrar na estalagem um peregrino, por sinal galego, que, acompanhado de um galhardo mancebo, seu filho, ia cheio de fé cumprir um voto a S. Tiago. Ver a estalajadeira ao mancebo e ficar enfeitiçada com ele, foi o momento, posto que o filho do galego não fosse acometido da mesma paixão que levou aquela até aos pontos que o leitor vai ver. Quando ela se convenceu de que os viandantes não contavam demorar-se mais que o tempo necessário para tomar algum repouso, empregou todos os recursos que lho sugeriu a sua imaginação de mulher para persuadir o peregrino da conveniência de demorar-se alguns dias. Quando conheceu que era impossível vencer a teimosia do galego em continuar seu caminho, empregou todos os esforços para conseguir do filho que ali ficasse até ao regresso do pai, e quando a obstinação desta foi seguida pela indiferença do moço, a estalajadeira formou um plano, genuinamente diabólico, que pôs em acção, logo de seguida.

Pagaram os peregrinos as despesas, despediram-se da vendeira, que longe de manifestar pesar, aparentou rosto risonho e sorriso de mau agouro e sem se demorar mais, continuaram aqueles santos varões sua piedosa jornada. Não haviam progredido muito nesta quando, num cotovelo de caminho, apareceu um bando de aguazis que dirigindo-se ao mancebo lhe disseram:

– Em nome d’El-rei, estás preso.”

Atónitos, pai e filho, com dificuldade conseguiram perguntar, balbuciantes, o que significava aquilo e, por isso, calcula-se como ficariam ao ouvir qualificar o moço de ladrão e o que mais é, quando dentro da sacola lhe retiraram uns talheres de prata, corpo do delito que a estalajadeira denunciara à justiça.

O peregrino prosseguiu imperturbável a sua visita a Santiago, depois de abraçar o filho que, conduzido à cadeia, não tardou a ser condenado à pena da forca, segundo a legislação então em vigor.

Nesse dia e na mesma hora em que deveria ser executada a sentença valeu-se o galego pai da sua peregrinação e, cheio de pesar com a notícia do que se passava, foi procurar o juiz, em ocasião que estava comendo, a fim de o convencer da inocência do filho. Desejando o magistrado que ele não o importunasse, pedindo-lhe pelo filho, declarou-lhe que para o acreditar inocente seria preciso que cantasse o galo assado que tinha na mesa e ia trinchar. Dizer isto, pôs-se de pé o galo, sacudir a salsa e começar a cantar foi um abrir e fechar de olhos.

Levantou-se o juiz aterrado, olhou o relógio, era precisamente a hora da execução. Correu, seguido pelo pai ao sítio do suplício e a grande distância um e outro viram que chegavam tarde!… O réu via-se dependurado da viga fatal… Pouco porém importava tudo isto. S. Tiago pegava no filho à vista do pai, amparando com a cabeça e mãos os pés do enforcado.

… eis a tradição, transmitida ao longo dos anos, que deu origem ao cruzeiro do Senhor do Galo.”

(Domingos J. Pereira, Nova Memória Histórica da Villa de Barcelos, ampliada, manuscrita, 1877)

 

O Cruzeiro do Galo em Barcelos

02. Cruzeiro do Galo. Barcelos. Face posterior.

02. Cruzeiro do Galo. Barcelos. Face posterior.

Vale a pena visitar o Cruzeiro do Galo, em Barcelos. Obra única, de traço popular, porventura do início do séc. XVIII. Um exemplo da arte de contar com parcas imagens difíceis de esculpir: o galego “enforcado”, S. Tiago a ampará-lo e o galo, combativo e matinal, a iluminar as trevas; no topo, Cristo na cruz. Impressiona a centralidade da morte: o “enforcado”, o galo renascido e Cristo crucificado. Tudo gira em torno do galo, símbolo associado ao sol nascente e à ressurreição:

“O galo é também um emblema de Cristo, como a águia e o cordeiro. Mas assume especial relevo o seu simbolismo solar: luz e ressurreição” (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, 1982, Dictionnaire des symboles, Paris, Robert Laffont/Jupiter, p. 282).

Há notícia de lendas semelhantes em vários lugares da Europa, mas não há galo como o de Barcelos.

A seguir à galeria de imagens, acrescenta-se a mais antiga e mais completa versão escrita da Lenda do Senhor do Galo (Domingos J. Pereira, Nova Memória Histórica da Villa de Barcelos, ampliada, manuscrita, 1877), reproduzida na página do projeto maisBarcelos: http://www.galegossmaria.maisbarcelos.pt/?vpath=/inicio/ogalodebarcelos/.

Lenda do Senhor do Galo

“Por aqueles sítios, à beira da estrada velha, talvez no mesmo sítio do Senhor do Galo, havia uma estalagem muito concorrida pelos viandantes que se desfaziam em elogios sobre a formosura, sem igual, da sua dona, moça gentil, cuja fama de beleza se estendia por muitas léguas, mas em desabono de quem nada havia que dizer. Fez o diabo (e quem senão ele!) que em certo dia acertou de entrar na estalagem um peregrino, por sinal galego, que, acompanhado de um galhardo mancebo, seu filho, ia cheio de fé cumprir um voto a S. Tiago. Ver a estalajadeira ao mancebo e ficar enfeitiçada com ele, foi o momento, posto que o filho do galego não fosse acometido da mesma paixão que levou aquela até aos pontos que o leitor vai ver. Quando ela se convenceu de que os viandantes não contavam demorar-se mais que o tempo necessário para tomar algum repouso, empregou todos os recursos que lho sugeriu a sua imaginação de mulher para persuadir o peregrino da conveniência de demorar-se alguns dias. Quando conheceu que era impossível vencer a teimosia do galego em continuar seu caminho, empregou todos os esforços para conseguir do filho que ali ficasse até ao regresso do pai, e quando a obstinação desta foi seguida pela indiferença do moço, a estalajadeira formou um plano, genuinamente diabólico, que pôs em acção, logo de seguida.

Pagaram os peregrinos as despesas, despediram-se da vendeira, que longe de manifestar pesar, aparentou rosto risonho e sorriso de mau agouro e sem se demorar mais, continuaram aqueles santos varões sua piedosa jornada. Não haviam progredido muito nesta quando, num cotovelo de caminho, apareceu um bando de aguazis que dirigindo-se ao mancebo lhe disseram:

– Em nome d’El-rei, estás preso.”

Atónitos, pai e filho, com dificuldade conseguiram perguntar, balbuciantes, o que significava aquilo e, por isso, calcula-se como ficariam ao ouvir qualificar o moço de ladrão e o que mais é, quando dentro da sacola lhe retiraram uns talheres de prata, corpo do delito que a estalajadeira denunciara à justiça.

O peregrino prosseguiu imperturbável a sua visita a Santiago, depois de abraçar o filho que, conduzido à cadeia, não tardou a ser condenado à pena da forca, segundo a legislação então em vigor.

Nesse dia e na mesma hora em que deveria ser executada a sentença valeu-se o galego pai da sua peregrinação e, cheio de pesar com a notícia do que se passava, foi procurar o juiz, em ocasião que estava comendo, a fim de o convencer da inocência do filho. Desejando o magistrado que ele não o importunasse, pedindo-lhe pelo filho, declarou-lhe que para o acreditar inocente seria preciso que cantasse o galo assado que tinha na mesa e ia trinchar. Dizer isto, pôs-se de pé o galo, sacudir a salsa e começar a cantar foi um abrir e fechar de olhos.

Levantou-se o juiz aterrado, olhou o relógio, era precisamente a hora da execução. Correu, seguido pelo pai ao sítio do suplício e a grande distância um e outro viram que chegavam tarde!… O réu via-se dependurado da viga fatal… Pouco porém importava tudo isto. S. Tiago pegava no filho à vista do pai, amparando com a cabeça e mãos os pés do enforcado.

… eis a tradição, transmitida ao longo dos anos, que deu origem ao cruzeiro do Senhor do Galo.”

 

São Valentim Ecosófico

the-flower-orangeNeste anúncio, a Orange brinda-nos com uma lenda que, embora passada algures em África, se manifesta actual. Uma princesa deseja uma flor mítica. Vários pretendentes se dispõem a procurá-la. Apenas um vence a prova: aquele que respeita a flor, não lhe toca e regressa tornando-a presente pela descrição, pela palavra. “Words are the most precious gift”. Trata-se de uma mensagem de São Valentim ecosófica, com animação e música a condizer.

Marca: Orange. Título: The Flower. Agência: Marcel, Paris. Direcção: Scott Benson. França, Fevereiro 2014.

Até os símbolos perdem as penas

O anúncio “The Hawk of Achill” conta uma história: a lenda irlandesa do Falcão de Achill, ave ancestral que voava entre este e outros mundos. Graças ao generoso whiskey Jameson, ficamos a saber qual foi o seu trágico fim: cozido e assado numa travessa. Na publicidade, como no cinema e nos videojogos, o épico, ou a sua paródia, continua a marcar boa presença. Este anúncio brinda-nos com uma história bem (re)contada, com excelente imagem, assinada por Noam Murro.

Marca: Jameson. Título: The Hawk of Achill. Agência: Biscuit Filmworks. Direcção: Noam Murro. EUA, Outubro 2011.