O Cruzeiro do Galo em Barcelos
Vale a pena visitar o Cruzeiro do Galo, em Barcelos. Obra única, de traço popular, porventura do início do séc. XVIII. Um exemplo da arte de contar com parcas imagens difíceis de esculpir: o galego “enforcado”, S. Tiago a ampará-lo e o galo, combativo e matinal, a iluminar as trevas; no topo, Cristo na cruz. Impressiona a centralidade da morte: o “enforcado”, o galo renascido e Cristo crucificado. Tudo gira em torno do galo, símbolo associado ao sol nascente e à ressurreição:
“O galo é também um emblema de Cristo, como a águia e o cordeiro. Mas assume especial relevo o seu simbolismo solar: luz e ressurreição” (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, 1982, Dictionnaire des symboles, Paris, Robert Laffont/Jupiter, p. 282).
Há notícia de lendas semelhantes em vários lugares da Europa, mas não há galo como o de Barcelos.
A seguir à galeria de imagens, acrescenta-se a mais antiga e mais completa versão escrita da Lenda do Senhor do Galo (Domingos J. Pereira, Nova Memória Histórica da Villa de Barcelos, ampliada, manuscrita, 1877), reproduzida na página do projeto maisBarcelos: http://www.galegossmaria.maisbarcelos.pt/?vpath=/inicio/ogalodebarcelos/.
Lenda do Senhor do Galo
“Por aqueles sítios, à beira da estrada velha, talvez no mesmo sítio do Senhor do Galo, havia uma estalagem muito concorrida pelos viandantes que se desfaziam em elogios sobre a formosura, sem igual, da sua dona, moça gentil, cuja fama de beleza se estendia por muitas léguas, mas em desabono de quem nada havia que dizer. Fez o diabo (e quem senão ele!) que em certo dia acertou de entrar na estalagem um peregrino, por sinal galego, que, acompanhado de um galhardo mancebo, seu filho, ia cheio de fé cumprir um voto a S. Tiago. Ver a estalajadeira ao mancebo e ficar enfeitiçada com ele, foi o momento, posto que o filho do galego não fosse acometido da mesma paixão que levou aquela até aos pontos que o leitor vai ver. Quando ela se convenceu de que os viandantes não contavam demorar-se mais que o tempo necessário para tomar algum repouso, empregou todos os recursos que lho sugeriu a sua imaginação de mulher para persuadir o peregrino da conveniência de demorar-se alguns dias. Quando conheceu que era impossível vencer a teimosia do galego em continuar seu caminho, empregou todos os esforços para conseguir do filho que ali ficasse até ao regresso do pai, e quando a obstinação desta foi seguida pela indiferença do moço, a estalajadeira formou um plano, genuinamente diabólico, que pôs em acção, logo de seguida.
Pagaram os peregrinos as despesas, despediram-se da vendeira, que longe de manifestar pesar, aparentou rosto risonho e sorriso de mau agouro e sem se demorar mais, continuaram aqueles santos varões sua piedosa jornada. Não haviam progredido muito nesta quando, num cotovelo de caminho, apareceu um bando de aguazis que dirigindo-se ao mancebo lhe disseram:
– Em nome d’El-rei, estás preso.”
Atónitos, pai e filho, com dificuldade conseguiram perguntar, balbuciantes, o que significava aquilo e, por isso, calcula-se como ficariam ao ouvir qualificar o moço de ladrão e o que mais é, quando dentro da sacola lhe retiraram uns talheres de prata, corpo do delito que a estalajadeira denunciara à justiça.
O peregrino prosseguiu imperturbável a sua visita a Santiago, depois de abraçar o filho que, conduzido à cadeia, não tardou a ser condenado à pena da forca, segundo a legislação então em vigor.
Nesse dia e na mesma hora em que deveria ser executada a sentença valeu-se o galego pai da sua peregrinação e, cheio de pesar com a notícia do que se passava, foi procurar o juiz, em ocasião que estava comendo, a fim de o convencer da inocência do filho. Desejando o magistrado que ele não o importunasse, pedindo-lhe pelo filho, declarou-lhe que para o acreditar inocente seria preciso que cantasse o galo assado que tinha na mesa e ia trinchar. Dizer isto, pôs-se de pé o galo, sacudir a salsa e começar a cantar foi um abrir e fechar de olhos.
Levantou-se o juiz aterrado, olhou o relógio, era precisamente a hora da execução. Correu, seguido pelo pai ao sítio do suplício e a grande distância um e outro viram que chegavam tarde!… O réu via-se dependurado da viga fatal… Pouco porém importava tudo isto. S. Tiago pegava no filho à vista do pai, amparando com a cabeça e mãos os pés do enforcado.
… eis a tradição, transmitida ao longo dos anos, que deu origem ao cruzeiro do Senhor do Galo.”
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