Paródia disparatada
Há dias, fiz um apelo para a interpretação de uma gárgula do Mosteiro da Batalha. Apetece-me, agora, alinhar alguns disparates.
Grotescas, as gárgulas incarnam o pecado, em acto ou em expiação. Constituem exemplos a evitar. Muitas gárgulas com figuras humanas são frades ou freiras que caíram na tentação da carne, da luxúria e da gula. Várias freiras têm manto, mas subido ou aberto, exibindo os peitos e as partes genitais. Umas estão com as mãos juntas, em sinal de arrependimento, outras com as mãos em partes impróprias. Por vezes, aparece uma criança, de corpo inteiro ou só a cabeça (no peito, no ventre…). Há quem associe estas figuras de mulheres devassas com criança a freiras que tiveram filhos, nomeadamente com autoridades da comunidade eclesiástica. Que motiva a Igreja a esculpir estes desmandos? Há quem assegure que a Igreja estava mais empenhada em combater, do que em encobrir, os pecados internos.
A gárgula pode corresponder a uma freira que teve um filho através de uma relação inaceitável. E a criança? Por que está assim representada? A mulher engole, vomita ou engasga? Nada inibe o escultor grotesco de colocar uma cabeça nos locais mais inconcebíveis: no peito, na barriga, no rabo, na perna… E na boca. Mas não me parece que seja ao acaso.
Continuando a fabular, mas de outro jeito.
As bruxas também tinham mantos e cobriam a cabeça. Na Idade Média, havia muitas bruxas na cabeça das pessoas. No ranking da luxúria, estavam no topo. E constava que comiam crianças, incluindo os filhos. Figura próxima do diabo, a bruxa tinha lugar cativo na tribuna das gárgulas.
A figura desta gárgula com uma criança na boca traz à memória o parto do gigante Gargântua pela orelha da mãe, Gargamelle (ver https://tendimag.com/?s=partos+extravagantes). As letras francesas e a escultura portuguesa a aproximar-se! Era lindo, não era?
Complicando, mas estamos a lidar com reportórios simbólicos muito sensíveis, já tinha ouvido falar em espécies de rã que têm os filhos pela boca. Segundo o jornal ABC News, de 20 de Março de 2013, uma equipa de cientistas australianos recuperou uma estirpe de rã “que dá à luz pela boca” (http://abcnews.go.com/blogs/technology/2013/03/frog-that-gives-birth-through-mouth-to-be-brought-back-from-extinction/). Ora o sapo é dos animais mais ligados à bruxaria e ao próprio diabo.
Sabe bem fabular, delirar, parodiar a argumentação científica. Será que se esconde em cada um de nós um Jonathan Swift ou um Carlo Cippola?
Partos extravagantes
Embora o parto seja um dos atos humanos mais íntimos, não escapa ao humor da publicidade. Em 2002, num anúncio da X-box o nascimento de um bébé assemelha-se à abertura de uma garrafa de champanhe. Neste Birth, do álbum Pocket Symphonies de Sven Helbig, o trabalho de parto é acompanhado por uma orquestra.
Fantasiar a propósito do parto, parodiar o nascimento, não é apanágio do nosso tempo. François Rabelais, num livro escrito em 1534, descreve deste modo o nascimento do gigante Gargântua, pai de Pantaguel: Gargamelle, a mãe, grávida de onze meses, empanturra-se com tripas de boi. Tanto comeu que acaba por dar à luz as próprias tripas. Com as saídas de baixo obstruídas, a criança, Gargântua, “entra na veia cava e, trepando pelo diafragma até acima dos ombros (onde a dita veia se divide em duas), tomou caminho à esquerda e saiu pela orelha esquerda. Acabado de nascer, não gritou como as outras crianças: ‘Mies! Mies! Mies!’ , mas a alta voz: ‘A beber! A beber! A beber!’, como se estivesse a convidar todo o mundo a beber.” Mas há casos mais complicados do que o de Gargântua. Nascer, por exemplo, de uma costela ou de uma coxa masculina.
Marca: Sven Helbig’s Pocket Symphonies. Título: Birth. Agência: Kolle Rebbe, Hamburg. Direção: Kai Schonrath. Alemanha, Março 2013.
Marca: Xbox. Título: Champagne. Agência: Bartle Bogle Hegarty. Reino Unido, Janeiro 2002.
Criaturas pantagruélicas 1
François Rabelais (1494-1553) é um dos grandes nomes da literatura universal. Pantagruel e Gargantua, seguidos pelo Tiers Livre e pelo Quart Livre, são obras-primas originais, escritas num estilo livre, criativo e ousado. Mikhail Bakhtin fala, a seu propósito, em realismo grotesco, eivado por um humor desenfreado, fantástico e exorbitante, francamente inspirado na cultura cómica popular da época. Apesar de sucessivas proibições, os romances de Rabelais foram um caso sério de popularidade.
Em 1979, devorei A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o Contexto de François Rabelais, de Mikhail Bakhtin, e decifrei toda a obra de François Rabelais na versão original. Há coincidências prodigiosas. François Rabelais é, para mim, um dos melhores escritores de todos os tempos e Bakhtin, um dos maiores pensadores do século XX. A influência de Rabelais venceu os séculos. Concebeu situações e seres fantásticos. Artistas, como Salvador Dali, não resistiram à tentação de os desenhar.
O álbum Les Songes drolatiques de Pantagruel, ou sont contenues plusieurs figures de l’invention de maistre François Rabelais, da autoria de François Desprez, é uma das primeiras obras gráficas dedicadas às personagens rocambolescas do livro Pantagruel. Foi editado em 1565, doze anos após a morte de Rabelais. Les songes drolatiques é composto apenas por 120 gravuras legendadas. Segue uma galeria com algumas dessas “criaturas”. Fala-se muito, na atualidade, em ciborgues, homens-máquina e biomecanóides. Mas já em 1565, há mais de quatro séculos, a questão da ligação entre o corpo e a técnica era sistemática e explicitamente abordada. O nosso tempo, dito pós-moderno, compraz-se em barrigadas sociocêntricas. Somos diferentes, claro! Mas muito menos do que se nos afigura.
Recorri a estas imagens numa comunicação intitulada “O tecnohumano na era dos descobrimentos: a pretexto do livro Tecnologia e Configurações do Humano na Era Digital”, no âmbito do encontro Ecosofia na Era Digital, 1º Simpósio Internacional, Universidade do Minho, 28 de Junho de 2011.
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