Emilio Cao. A voz e a harpa

A harpa integra os instrumentos da música dita celta. Encontramo-la na Galiza, na Bretanha, na Cornualha, no País de Gales, na Irlanda e na Escócia. Curiosamente, não aparece como característica do Minho, apesar das raízes celtas. Cada um destes territórios possui harpistas célebres, por exemplo, o bretão Alan Stivell, o irlandês Derek Bell (dos Chieftains), a escocesa Phamie Gow, a galesa Catrin Finch ou o galego Emilio Cao.
“Emilio Cao (Santiago de Compostela, 1953) es un músico, compositor y cantautor de música folk y tradicional gallega. Destacado intérprete de arpa celta y recuperador de este instrumento medieval en Galicia” (https://es.wikipedia.org/wiki/Emilio_Cao).
Atuou, com o português Fausto, nos Encontros Culturais I de Castro Laboreiro, em 1986, a 15 de agosto, dia da feira do gado e do concurso do cão de Castro Laboreiro. Contemplando vários eventos associados a tradições locais, tratou-se de uma iniciativa, ousada, protagonizada por um grupo de jovens. Repete-se uma tendência: o empenho dos filhos e dos netos na valorização e na revitalização do património, dos usos e costumes, dos avós e dos pais.
Seguem quatro canções de Emilio Cao.
Meigas

Existem momentos em que o contexto, os astros, as afinidades e as predisposições se conjugam para transformar a comunicação em comunhão, a porta em ponte, o limite em prolongamento, a cara em carinho e o saber em conhecer (do latim cognoscere, de com, junto, mais gnoscere, saber, ou seja, saber em conjunto). As pessoas, os gestos e os pormenores parecem apostados em entrelaçar as mãos. Não sei por que estou a escrever estas palavras. Deve ter sido algum pirilampo que passou pelo teclado.
Serões do Medo. Melgaço. 21.10.2022
Regressei de Melgaço com os ouvidos cheios de testemunhos de experiências sobrenaturais: acompanhamentos, aparições, sinais, bruxas e meigas. Proporciona-se a canção Túa nai é meiga e, por acréscimo, Alalá Das Mariñas, ambas de Uxía.
Canto galego

Anque tocan as campás
non tocan polos que morren.
Tocan polos que están vivos
para que deles se acorden.
(Tanxugueiras. Albedrío. Contrapunto. 2019)
Um canto de Galiza, terra de meus avós. As Tanxugueiras, três vozes femininas, seis dedos de música festiva. Esmorecer é começar a perder.
Morrinha

Em Moledo, sinto-me galego. Quando a chuva é miudinha, há quem lhe chame morrinha. Na Galiza, a morriña é um sentimento de melancolia com enxerto de saudade. Seguem dois cantos a Galiza distintos: Romeiro Ao Lonxe, dos Luar Na Lubre, e Un Canto a Galicia, de Júlio Iglesias, ao vivo com Amália Rodrigues.
Teño Morriña, teño saudade. Un canto a Galicia.
Em conversa com um galego, afirmo:
– Não costumo seguir a moda.
Responde:
– É uma lástima! Os outros vão de carro e tu vais a pé.
A minha voz pede outras línguas. Sinto saudades da Galiza! Cresci junto à Galiza, e não o esqueço. Apraz-me republicar, com pequenos retoques, o artigo Um Canto a Galiza.
Faz tempo que não vou à aldeia. Criança, mal abria as janelas do quarto, a Galiza, como o Melro de Guerra Junqueiro, dava-me bons dias. Mais quatrocentos metros e nascia galego. Aprendi cedo, com a ferrugem dos anos, o que significa a interculturalidade. “Vendo-os assim tão pertinho / A Galiza mais o Minho / São como dois namorados / Que o rio traz separados / Quasi desde o nascimento… (João Verde, Ares da Raya, excerto). Gosto de poesia, de verdades sentimentais. João Verde escreve: “Que o rio traz separados”. O Minho não separa, une! Nas ruas de Melgaço, Monção, Valença, Cerveira e Caminha fala-se tanto português como galego. E come-se bacalhau!
Uma cantiga com a voz de Luz Casal, a gaita-de-foles de Carlos Nuñez e a poesia de Rosalía de Castro é uma Negra Sombra abençoada. Festiva é a interpretação ao vivo de Mar Adentro por Carlos Nuñez. E, para que não digam que não trago nada de novo, acrescento a canção tradicional galega Camariñas, interpretada por Luz Casal com Luar na Lubre.
Não há três sem quatro. O Álvaro Domingues sugeriu uma canção em galego interpretada por Teresa Salgueiro com a colaboração de Carlos Nuñez. Uma sugestão oportuna.
Luz Casal & Carlos Nuñez. Negra Sombra. Poema de Rosalía de Castro.
Carlos Nuñez. Mar Adentro. Ao vivo em Vigo.
Camariñas, canção tradicional galega interpetrada por Luz Casal & Luar na Lubre.
Teresa Salgueiro & Carlos Nunez. María Soliña. Teresa Salgueiro. Obrigado. 2005.
Para uma sociologia do polvo
A reportagem Sabe porque no Norte do País o polvo é o prato da Consoada, de Ricardo J. Rodrigues (Notícias Magazine. 08-12-2017), é uma espécie de sociologia do polvo, notável pela ideia e pelo modo. Tive o gosto de participar. Para aceder, carregar na imagem.
Até o bom pode ser efémero
O III Encontro Minho-Galiza já pertence ao passado. As coisas boas também partem. Perduram, no entanto, na memória dos presentes e na imaginação dos ausentes. O Encontro foi fantástico, do início ao fim. Tomiño e Goián receberam-nos de braços abertos. O auditório era grande, confortável e bem equipado. Houve música e palavras. Uma centelha de diálogo e humanidade acendeu o Encontro, dando azo a momentos de comunhão irrepetíveis. Houve música para todos os gostos: Banda da Escola de Música de Tomiño, Ricardo Almeida (gaita de fole), Pedro Abrunhosa (cantor e compositor português), Ses (cantora e compositora galega) e Joaquim Fidalgo (acordeão). Pedro Abrunhosa entusiasmou-se, e entusiasmou-nos. As comunicações dos painéis testemunharam, dialogaram e agradaram. Tendemos a separar saber e prazer, um engano que nos traz desinteressados. No dia 1 de Abril de 2017, o saber e o prazer dançaram até se cansar. Por obra, talvez, da proximidade do rio Minho, um dos rios que, segundo Orlando Ribeiro, unem mais do que separam.
A organização do Encontro resultou de uma parceria entre o Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, o Centro de Estudos Galegos e o Centro de Estudos Comunicação e Sociedade, todos da Universidade do Minho. Para não diluir os créditos em etiquetas amplas, quem, na realidade, concebeu e se empenhou na organização do III Encontro Minho-Galiza foram:
– Fernando Groba (CEG-ILCH);
– Helena Pires (MCAC/CECS-ICS);
– Francisco Abrunhosa (MCAC-ICS);
– Adriana Silvério (MCAC-ICS);
– Albertino Gonçalves (MCAC/CECS-ICS).
Os eventos científicos converteram-se ao benschmarking e entenderam por bem tirar fotografias como nos casamentos. Uma boa prática. Segue uma galeria com fotografias quase todas da autoria de Francisco Abrunhosa.
Galeria de imagens
Em companhia da morte
“Uma rapariga que tinha de ir regar um campo muito cedo, passou por diante da igreja e vendo que se estava à missa, deu parabéns à sua fortuna e entrou, indo ajoelhar entre as outras mulheres. Estas começaram a olhar umas para as outras e a rosnar “aqui cheira a fôlego vivo”! Uma das mulheres levantou-se, aproximou-se da rapariga e disse-lhe: “O que te valeu foi vires ajoelhar na campa de tua madrinha, que sou eu. Vai-te e não olhes para trás!” A rapariga saiu, mas não resistiu à curiosidade e olhou para trás. Viu muitas fogueiras a arder. Eram as almas das pessoas, porque se não tinham dito missas. (Guimarães) (…)
Na noite de Natal é costume rezar pelas almas dos antepassados, “para eles não virem comer as migalhas que ficaram na mesa”. No Alto Minho nessa mesma noite põe-se sempre um talher a mais para a pessoa de família que ultimamente faltou, e não se levanta a mesa que fica posta toda a noite” (Pedroso, Consiglieri, Tradições Populares Portuguesas, Braga, Edições Vercial, 2010-2012, p. 102-103).
A fronteira entre o mundo da vida e o mundo da morte constitui um dos temas mais complexos da relação com a morte. O que parece um abismo é, afinal, uma ponte, uma zona de contrabando macabro. A morte assombra os vivos e os mortos mantêm uma centelha de vida (fantasmas, almas penadas, mortos-vivos). Proliferam as crenças e os testemunhos sobre os prenúncios de morte, tais como os acompanhamentos ou as procissões de defuntos. Carmelo Lisón-Tolosana dedica uma parte da Antropología Cultural de Galicia (Madrid, Akal, 1971) a este fenómeno conhecido na Galiza por “la santa compaña”. Muitas das lendas estudadas por Lisón-Tolosana também existiam na paróquia da minha infância.
Se bem me lembro, um acompanhamento é uma procissão de almas de mortos, eventualmente de vivos, que ocorre normalmente de noite. Confina-se ao território da paróquia, que delimita demarcando uma espécie de comunidade de vivos e de mortos. A procissão é encabeçada por um vivo que leva uma cruz e o caldeiro de água benta. Para o comum dos mortais, a procissão não é visível, mas pode ser sensível: aragem, frio, cheiro a velas, som de passos… Existe o risco de um vivo ser incorporado na procissão. Uma forma de o evitar consiste em traçar um círculo no chão e deitar-se com o rosto virado para baixo até a procissão passar. Os vivos que encabeçam as procissões carecem ser substituídos. De outro modo, empalidecem, definham e morrem. Embora o comum dos mortais não consiga ver o acompanhamento, existem excepções, pessoas que, vendo a procissão, se inteiram das próximas mortes. Não é raro as pessoas “sentirem” a passagem do acompanhamento. Muitos o admitem. Há relatos aterradores: um morto da procissão deu uma vela a uma pessoa; ao acordar, não tinha uma vela mas um osso do fémur. Na minha paróquia “sabia-se” quem tinha o fado de ver os acompanhamentos e a sina de antever os mortos. Não eram, precise-se, figuras fictícias: tinham rosto e nome. São crenças, mas para quem acredita são verdades.
Vêm estas curiosidades a propósito do documentário galego Em Companhia da Morte, de 2011 (também acessível em http://entreominhoeaserra.blogspot.pt/2014/11/as-gentes-de-castro-laboreiro-e-os.html), que, durante 29 minutos, dá voz ao saber e à experiência de mulheres de Castro Laboreiro no que diz respeito a acompanhamentos e outros anúncios da morte.
Em Companhia da Morte. filmado por Vanessa Vila Verde, João Aveledo e Eduardo Maragoto. Filmes de Bonaval. Galiza, 2011. Duração: 29 minutos.
Além do documentário, acrescento dois episódios do filme Fantasia (1940) de Walt Disney: Night on Bald Moutain, com música de Modest Mussorgsky: e Ave Maria, com música de Franz Schubert. Ambos lembram outros mundos.
Fantasia (1940) de Walt Disney: Night on Bald Moutain, com música de Modest Mussorgsky.
Fantasia (1940) de Walt Disney: Ave Maria, com música de Franz Schubert.