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A cerveja e o monstro

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“Desejamos a verdade e apenas encontramos incerteza” (Blaise Pascal, Pensées, 401-437). “Todos erram tanto mais perigosamente que cada um segue uma verdade; a sua falta não consiste em seguir uma falsidade, mas em não seguir uma outra verdade” (Blaise Pascal, Pensées, 443-863).

Há quem abuse do verbo lembrar. Lembrar é convocar e, porventura, comparar, sem pagar portagem à verdade. O pensamento respira; não possui a verdade, nem a verdade o possui.

Que lembra o anúncio Face the darkness, da Einstök? Ao meu rapaz acodem-lhe os videojogos. E ilustra com uma cena do Final Fantasy XV (ver vídeo 2). Anúncio e videojogo, ambos lembram um exorcismo. No anúncio, o título, a postura, o monstro, a convulsão cósmica, a garrafa/crucifixo e, por último, a domesticação/humilhação da besta. No videojogo, embora menos evidente, a ameaça e a derrota do monstro mediante uma espada/crucifixo.

Que tem o exorcismo a ver com o nosso tempo? A sua existência não é menosprezável. Pratica-se na substância e exporta-se na forma.

Entretanto, aguarda-se uma nova linha de cerveja: com ou sem baba de monstro.

Marca: Einstök. Título : Face the darkness. Agência : Filakademie Baden-Wurttember. Direcção: Andreas Bruns. Islândia, Setembro 2016.

Final Fantasy XV. Stand together. Novembro 2016.

Folia Portuguesa

Hoje, vou falar da folia, um produto criativo de sucesso, mas pouco conhecido, de origem nacional. Ando há meses para publicar este artigo mas tive que aguardar pelas férias para o conseguir.

“A história da folia reparte-se por dois períodos. A primeira folia, de origem portuguesa, caracterizada por Salinas em 1577, adquire popularidade em Espanha, e é exportada para Itália por volta de 1600” (Hudson, Richard, The Folia Melodies, Acta Musicologica, Vol. 45, Fasc. 1 (Jan. – Jun., 1973), pp. 98-119, p. 98).

A folia, “um dos fenómenos mais notáveis da história da música” (La Folia- A Musical Cathedral: http://www.folias.nl/html1.html), remonta a finais do século XV. Com raízes campestres ligadas a rituais de fertilidade, a folia, música e dança, estende-se a outros públicos: tanto ocorre nos ajuntamentos populares como nas festas da corte. Garcia de Resende, na Crónica do Rei D. João II, de 1545, refere várias vezes a folia:

“E toda a gente da cidade foi posta com muita brevidade em danças e folias, com infindas tochas na praça e no Terreiro dos Paços, e por todas as ruas principaes, e tanta gente honrada e nobre, e assi a do povo, que não cabia, nem se viu nunca tanto alvoroço e alegria, e muitos velhos e velhas honradas com sobejo prazer foram juntos cantar e bailar diante de El-Rei e a Rainha, cousa de que suas edades os bem escusavam” (Chronica de ‘L Rei D. João II, Bibliotheca de Classicos Portuguezes, Lisboa, 1902, p. 64).

Gil Vicente foi o primeiro escritor a mencionar a folia. O Auto da Sibila Cassandra, de 1511, inclui a letra de uma folia cantada por quatro figuras bíblicas:

“Traz Salomão Esaias e Moyses e Abrahão , cantando todos quatro de folia a cantiga seguinte:

Que sañosa está la niña!
Ay Dios, quien le hablaria!
En la sierra anda la niña
Su ganado á repastar;
Hermosa como las flores,
Sañosa como la mar.
Sañosa como la mar
Está la niña;
Ay Dios, quien le hablaria!”

(Gil Vicente, Auto de Sibila Cassandra, Obras de Gil Vicente, Tomo I, Officina Typográphica de Langhoff, Hamburgo, 1834, p. 46).

Manuel Machado. La Folia Dos Estrellas le Siguen. Séc. XVII.

Em pleno reinado dos Filipes, Sebastián de Covarrubias define, no Tesoro de la lengua castellana (Madrid, 1611), a folia nos seguintes termos:

“é uma certa dança portuguesa, muito barulhenta; porque comporta muitas figuras a pé com chocalhos e outros instrumentos, homens mascarados carregam aos ombros rapazes vestidos de mulher, que com as manlgas de ponta se contorcem e, às vezes, dançam. E também tocam pandeiros: e é tão grande o ruído e o som tão apressado, que parecem estar uns e outros sem juízo. E assim deram à dança o nome de folia, da palavra toscana ‘folle’, que significa oco, louco, insano, aquele que tem a cabeça vazia”.

No livro De Musica libri septem (Salamanca, 1577), Francisco de Salinas, cego desde os dez anos, organista e catedrático da Universidade de Salamanca, caracteriza a composição das “canções populares que os portugueses chamam Folias”. Apesar do amplo reconhecimento da origem portuguesa das folias, em vários países, são conhecidas por folias de Espanha. Por exemplo, em França e, pelos vistos, no Brasil. Uma tese de doutoramento em música, defendida por Flávio Apro, em 2009, na Universidade de São Paulo, tem o seguinte título: Folias de Espanha: O Eterno Retorno. Para esta deslocação da “patente” contribuiu, porventura, a contingência de a expansão das folias na Europa ter coincidido com o eclipse da nossa independência nacional entre 1580 e 1640.

“O padrão musical da Folia ibérica consistia numa linha de baixo ostinato (ou ground), sobre a qual se escreviam discantus e improvisavam-se variações, chamadas na época de diminuições (…) A moldura harmónica (…) costuma ser apresentada no tom de Ré menor: Dm | A7 | Dm | C | F | C | Dm | A7 | Dm | A7 | Dm | C | F | C | Dm A7 | Dm (Flávio Apro, pp. 15 e 32). A figura 1 apresenta uma das partituras mais antigas de uma folia.

Anónimo, partitura de folia, copiada por Valderrábamo, Silva de Sirenas, Valladolid, 1547, reproduzida em Giuseppe Fiorentino, Música Española del Renacimiento entre Tradición Oral y Transmisón Escrita, tese de doutoramento em História e Ciências da Música, Universidade de Granada, 2009, p. 390.

Anónimo, partitura de folia, copiada por Valderrábamo, Silva de Sirenas, Valladolid, 1547, reproduzida em Giuseppe Fiorentino, Música Española del Renacimiento entre Tradición Oral y Transmisón Escrita, tese de doutoramento em História e Ciências da Música, Universidade de Granada, 2009, p. 390.

“A melodia fácil e as possibilidades que oferecia à improvisação foram qualidades que não passaram desapercebidas entre os músicos instrumentistas do barroco” (Juan Luis de la Montaña Conchina, Apuntes sobre “las folias de España”: http://filomusica.com/filo7/cdm.html). A folia distingue-se como uma composição que, embora de raiz popular, conseguiu conquistar a corte. Estes dois traços, a adopção pela corte e a abertura ao improviso e a variações, concorreram tanto para o seu sucesso como para a sua longevidade.

Arcangelo Corelli. Violin Sonata in d minor La Follia Opus 5 no.12 (1700): theme and 23 variations.

A folia não se resume à música e à dança, comporta texto e animação. Estes quatro  elementos dotam a folia de uma carga envolvente vertiginosa que raia a loucura. É uma prática típica do grotesco carnavalesco de raiz medieval (Mikhail Bakhtin, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, São Paulo/Brasília, Hucitec/Editora Universidade de Brasília, 2008).

A popularidade da folia era tal o que próprio Dom Quixote bailou esta dança em Barcelona, em casa de D. António Moreno (Miguel Guerol Galvadá, La música en la obra de Cervantes, Madrid, Ediciones del Centro de Estudios Cervantinos, Madrid, 2005, p. 140). Em Portugal, a folia mantém-se, séculos a fio, como uma das principais atracções da procissão do Corpo de Deus. Não é raro uma procissão incorporar várias folias (Francisco Marques de Sousa Viterbo, Artes e Artistas em Portugal, Lisboa, Livraria Ferin, 2ª  ed., 1920).

A partir do séc. XVI, muitos músicos compuseram folias, ou as inseriram nas suas obras: Arcangelo Corelli (vídeo 2), Jean Baptiste Lully, Marin Marais, Antonio Vivaldi, Domenico Scarlatti, Antonio Salieri, Niccolò Paganini, Hector Berlioz, Franz Liszt, Sergei Rachmaninov… Trata-se apenas de uma pequena amostra. A página La Folia – A Musical Cathedral (http://www.folia.tk/), que procede a um inventário de folias, estima que “mais de 150 compositores em mais de 330 anos conceberam inúmeras variações brilhantes”.

Jan Johansson. Sinclairvisan. Musik Genom Fyra Sekle. 2008.

Nas sociedades ditas pós-modernas ou líquidas, ainda há lugar para a folia? “No presente, as Folias continuam a assombrar o nosso imaginário musical” (Lutin d’Ecouves: http://fr.wikipedia.org/wiki/Discussion:Folia). O cruzamento de géneros tem sido uma propensão das últimas décadas. E a folia alinha. No cinema, consta da banda sonora de filmes tais como Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick, ou 1492 A Conquista do Paraíso (1992), de Ridley Scott. Karl Jenkins (Adiemus) compôs uma La Folia (http://www.youtube.com/watch?v=UIHHT0NXdsw). O jazz, a seu jeito, também se deixou tentar. Vários grupos e artistas tocam folias. Permito-me relevar Jan Johansson, pianista expoente do jazz sueco, falecido em 1968 (ver vídeo 3; Sinclairvisan – La Folia). Inesperada é porventura a presença da foliano mundo dos videojogos. Final Fantasy, distinta referência no género, inclui, na banda sonora do Final Fantasy IX, uma folia, composta por Nobuo Uematsu (Vamo’ Alla Flamenco, vídeo 4).

Final Fantasy IX OST. Vamo’ Alla Flamenco. Compositor: Nobuo Uematsu.

Os espanhóis prestam atenção e dão valor à folia. O mundo, também. E nós, os portugueses seus criadores? Deparei-me com uma obra notável: um cd intitulado O Lusitano – Portuguese Vilancetes, Cantigas e Romances, pelo ensemble Circa 1500 e Gérard Lesne, com direção de Nancy Hadden, impresso na Alemanha pela Virgin Classics,em 1992. Tudo nomes aparentemente estrangeiros… Tropecei com o seguinte comentário sobre este cd no blogue Assédio: “Se nós não investimos e não investigamos a nossa música, há quem o faça e lhe dê o real valor que tem, e que é muito! Aqui está a prova: a nossa música do século XVI” (http://assedio.blogspot.pt/2006/04/portugal-circa-1500.html). Foi, contudo, neste cd, O Lusitano, que ouvi pela primeira vez a folia de minha eleição: La Folia Dos Estrellas le Siguen, do português Manuel Machado (c. 1590-1646), compositor que se formou em Lisboa, mas que migrou, como muitos conterrâneos, em 1610, para Madrid, onde foi músico, primeiro, da Capela Real e, em seguida, no palácio de Filipe IV de Espanha. Quase  todas as partituras que compôs foram destruídas pelo terramoto de 1755.

Nós, portugueses, sabemos o que valemos?