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Os sinos da consciência

O nu desapareceu praticamente da publicidade. O grotesco resiste. Os anúncios de consciencialização e sensibilização social proliferam. Oferecem-se como uma marca distintiva da nossa era. Visam interpelar e mobilizar os cidadãos, pelo pensamento, pelo sentimento e pela imagem, para problemas, causas e movimento de uma extrema diversidade quanto às origens, modalidades e finalidades. Segue uma mistura de exemplos recentes.

Anunciante: Disasters Emergency Committee. Título: Never Alone. Agência: Don’t Panic (Londres). Direção: Rick Dodds. Reino Unido, fevereiro 2023
Anunciante: My Black is beautiful. Título: Unbecoming. Agência: Cartwright. Direção: DAYDAY. USA, março 2023
Anunciante: CONAF/Gobierno de Chile. Título: Campaña de prevención de incendios. Agência: McCann Santiago. Chile, fevereiro 2023
Marca: Nescafé. Título: Jars. Agência: Courage Inc Toronto. Direção: Omri Cohen. Canadá, fevereiro 2023
Anunciante: Gouvernement du Québec. Título: Escape the control. Agência: Lg2. Direção: Nicolas Brassard. Canadá, fevereiro 2023
Anunciante: HandsAway & Consentis. Título: Décoder les femmes. Agência: TBWA (Paris). França, março 2023
Anunciante: NHS. Título: Ribbon dancer. Agência: M&c Saatchi (london). Direção: SI&AD. Reino Unido, fevereiro 2023

Estigma capilar

Fotografia de Robert Capa. Chartres, 18 de agosto de 1944. Logo após a libertação da cidade, raparam o cabelo a uma mulher francesa que teve um filho com um soldado alemão como sinal de humilhação

Proveniente da Alemanha, país que tendemos a associar alguma contenção e ponderação, o anúncio “Hans”, da empresa de cabeleireiros Headhunter, excede-se. Propõe uma paródia ousada, senão atrevida, de uma realidade sensível: as campanhas de consciencialização para a inclusão de crianças com deficiência. Num aspeto o anúncio não deixa de estar certo: os cabelos podem funcionar como estigma, contagiando e desvalorizando a pessoa no seu todo. Recorde-se que, no final da Segunda Grande Guerra, nos dias imediatos à libertação da França, a população rapou o cabelo aos “colaboracionistas” com o regime nazi, expondo-os em cortejos degradantes (ver Violência e Humilhação: https://tendimag.com/2016/01/14/violencia-e-humilhacao/).

Marca: Headhunter. Título: Hans. Agência: Philipp & keuntje. Direção: Laszlo Kadar. Alemanha, 2000.

Balas e coletes. O assédio virtual

Kazoo. Social Bullets. 2022.

Tenho sina de colecionador. Foram selos, minerais e romances policiais, agora discos, anúncios publicitários e imagens de arte. Encetei uma nova fixação: as iniciativas de consciencialização e intervenção por parte de empresas privadas respeitantes a problemas “públicos e notórios”. Ideias originais, com impacto, concretizadas em campanhas de qualidade.

Fazem-no por interesse? Isso é um ónus? Não é por que uma ação é interessada que ela detem, à partida, menos valor do que outra desinteressada. A priori, o interesse não penaliza, nem o desinteresse abona. Os sociólogos Jean Duvignaud (Sociologie de la connaissance, 1979) e Pierre Ansart (Idéologies, conflits et pouvoir, 1977) insistem, inspirados em Karl Manheim (Ideologia e utopia, 1929), nesta tecla. Não se impõe um primado ético ou epistemológico do desinteresse sobre o interesse. Coexistem, aliás, várias formas de interesse e, tal como insiste, também, Pierre Bourdieu (Homo Academicus, 1984), “o desinteresse é interessado”. Nesta ótica, uma iniciativa de uma empresa, por exemplo financeira ou informática, não é menos digna de atenção, crédito e registo do que a promovida por uma grande causa cheia de boas intenções.

No anúncio Social Bullets, a empresa Kazoo divulga, em parceria com a organização sem fins lucrativos Stand for the Silent, um produto que comercializa (um aplicativo), mas também promove uma iniciativa de consciencialização eficiente, com vários prémios Não me lembro de vídeo contra o assédio virtual (anti-cyberbulling) mais “impactante”. Mas a minha memória é fraca.

“Kazoo é um aplicativo de segurança pessoal desenvolvido para ajudar as famílias a construir um ambiente de mídia social mais seguro. Para conscientizar sobre o problema, a Kazoo fez parceria com a Stand for the Silent, uma organização sem fins lucrativos que luta contra todas as formas de bullying desde 2010. O objetivo era fazer com que os pais entendessem o perigo que seus filhos enfrentam nas mídias sociais . Pesquisas mostram que o bullying é a principal causa de suicídio entre adolescentes nos Estados Unidos e que metade desse abuso acontece online. Juntos, Stand for the Silent e Kazoo decidiram criar uma poderosa mensagem anti-bullying, a campanha Social Bullets” (https://blackmadre.com/projects/social-bullets).

Marca: Stand for the Silent x Kazoo. Título: Social Bullets. Agência: Area 23. USA, 2022.

Horror pedagógico

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Hans Von Gesdorff. Field book of surgery. The wounded man. Strasburg. 1528.

De temps en temps, les Français me dépassent ! Hoje, vesti-me de crítico, como o actor de  Stanislavski (A Construção da Personagem, ca. 1930). Revejo o anúncio Déja-vu 2, da Agence de la Biomédecine, e percebo cada vez menos. Trata-se de uma paródia dos filmes de terror de série B. Uma paródia obtusa de um género obtuso. De noite, na floresta, uma jovem expansiva e ingénua afasta-se do grupo e é vítima de uma série de facadas e machadadas desferidas por um serial killer. O público-alvo do anúncio são os jovens entre os 15 e os 25 anos, grupo suposto aterrorizar-se ou gozar com o anúncio. O assunto é, contudo, sério: a doação de órgãos e tecidos:

Dans le contexte de l’évolution de la réglementation sur le don d’organes et de tissus, l’Agence de la biomédecine renouvelle une prise de parole à destination des jeunes. Une prise de parole qui a pour objectif de continuer à les sensibiliser sur le sujet du don d’organes et de tissus, mais aussi à les informer sur la loi en vigueur, notamment concernant le principe méconnu du consentement présumé et les modalités d’expression du refus » (Agence de la Biomédecine).

Afigura-se-me que estamos perante um anúncio de consciencialização que aposta na circulação, porventura, numa “epidemia” viral. A extensidade sobrepõe-se à intensidade, l’effet au sujet. Esta opção é vulgar na publicidade de consciencialização. Propagar é o objectivo! E o disgusto é um bom mensageiro.

Para terminar, um pergunta tão mesquinha quanto perversa: naquele corpo feminino, coberto de golpes, sobra algum órgão apto para doação? Et voilà!

Anunciante: Agence de la Biomédecine. Título : Déjà-vu 2. Agência : DDB Paris. Direcção: Steve Rogers. França, Novembro 2016.

Corações distraídos

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Não nos apercebemos o quanto ignoramos quem precisa da nossa ajuda. As câmaras, os corvos do século, revelam que, muitas vezes, aquilo que dizemos não corresponde àquilo que fazemos. Um excelente anúncio português que, apesar do dispositivo montado, navega, com sucesso, nas águas de simplicidade.

Marca: Lipton. Título: Awake, Uma Experiência Lipton. Agência: Funny How. Direcção: Nuno Alberto. Portugal, Novembro de 2016.

Menos simples, mas igualmente bem intencionada, é a solução adoptada pela Philips para animar as crianças hospitalizadas. Spiderman, o herói de serviço, pensa, porventura, o mesmo. Seria interessante uma investigação sobre a presença dos heróis da banda desenhada na publicidade. Um abraço para o Canadá!

Marca: Philips. Título: Everyday Hero. Agência: Ogilvy & Mather London. Direcção: Fredrik Bond. Reino Unido, Outubro 2016.

Positividade

FAD Create

Fiquei agradavelmente surpreendido pela campanha “construye tu mundo” da ONG espanhola FAD (Fundación de Ayuda contra la Drogadicción). Acrescento, por isso, um segundo anúncio. Repito o que escrevi acerca do primeiro: é possível fazer anúncios de consciencialização de elevada qualidade apostando na criatividade positiva.

“Try! Create a why not, a just because. Create a place to be, create a nonsense. Create what you like, but create something, because the more things you create in your life, the less room is left for drugs” FAD, Create).

Anunciante: FAD. Título: Create. Agência: Publicis, Spain. Direcção: Marc Coronas & Lorena Medina. Espanha, Março 2015.

Sem sombra de defeito

UnitedHealthcareFazem tudo para nos fazer sentir mal. Que talento! E ainda regozijam. Não fossemos moles e até chateava. Mas não! Nem sequer nos fazemos rogados: vemos e partilhamos. Acima de um milhão de visualizações na Internet em poucos dias. Um belo anúncio. Valha-nos o humor e a criatividade. Resta-nos compreender e aceitar! É para a nossa salvação. Desculpem! É pela nossa saúde! A salvação do lado do corpo. Toca a prevenir vícios e defeitos… UnitedHealthCare. Registou? Tal como sopram os ventos, não tarda, bastará um pequeno defeito para sermos reciclados. Vade retro! Respire fundo. Há tanta gente a preocupar-se connosco, os anormais.

Anunciante: UnitedHealthCare. Título: Our song. Agência: Leo Burnett. USA, Março 2015.

Humor frutado

3_-_cancer_now_available_print_strawberry_aotwL’homme n’est ni ange ni bête, et le malheur veut que qui veut faire l’ange fait la bête” (Blaise Pascal, Pensées).

“O homem nem é anjo nem é besta, e o infortúnio dita que quem quer fazer de anjo faz de besta”.

Humor macabro destilado nos alambiques da consciencialização rumo a uma prevenção provavelmente eficaz entre os humanos. Qual será a opinião dos vermes?

Anunciante: Canadian Cancer Society. Título: Operating room. Agência: Rethink. Direcção: Michael Schmidt. Canadá, Janeiro 2015.

Aproximar

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O excesso de álcool é amigo do sono. O “artista”, consumidor moderado, pinta os corpos dos amigos adormecidos. As pinturas, graffiti sobre pele, adaptam-se ao corpo com humor. O anúncio Be the artist, not the canvas, da Steinlager, aborda, assim, com boa disposição, um comportamento socialmente indesejado: o alcoolismo. Não precisa de indispor a tela, nem o artista, nem o público. As pinturas não estigmatizam, convocam e tribalizam. Aqui, o lúdico dispensa diabolizações e maniqueísmos. Quem bebe em excesso é envolvido numa homeopatia sem catarse, que chama sem afastar e convence sem anular. Uma opção rara na publicidade de consciencialização. Curiosamente, este é um anúncio a uma marca de cerveja. Leão de Ouro em Cannes!

Marca: Steinlager. Título: Be the artist, not the canvas. Agência: DDB New Zealand. Direcção: Pippa Lekner. Austrália, Outubro 2013.

Meter medo a um susto

Cancer Society of Finland

“Todos vêem o que tu aparentas, poucos sentem aquilo que tu és; e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos muitos que, aliás, estão protegidos pela majestade do Estado; e, nas acções de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das mesmas. Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados, porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados, e no mundo não existe senão o vulgo; os poucos não podem existir quando os muitos têm onde se apoiar.” (Maquiavel, O Príncipe, Cap. XVIII, 1513).

“Quando o fim é bom, também são os meios” (Hermann Busenbaum, Medulla theologiae moralis, 1645).

Será?

Anunciante: Cancer Society of Finland. Título: Baby Love. Agência: Havas Worldwide (Helsinki). Direção: Mikko Lehtinen. Finlândia, 2013.