Portugal: Competitividade e custos de contexto das empresas, do trabalho e do país.

«Um grande sacrifício é fácil, difíceis são os pequenos sacrifícios contínuos…» (Johann Wolfgang Goethe, adaptado de «As afinidades electivas»)
Em Portugal, o que interessa não é interessante. Prefere-se a poeira à clareza (AG).
O meu rapaz mais jovem, o Fernando, acaba de publicar um novo artigo numa revista com referee e com fator de impacto: “A Recursive Algorithm for the Forward Kinematic Analysis of Robotic Systems Using Euler Angle”, (Robotics 2022, 11(1), 15; https://doi.org/10.3390/robotics11010015 (registering DOI). O mesmo acontece com o meu rapaz menos jovem, o João que publicou o artigo “Common sense or censorship: How algorithmic moderators and message type influence perceptions of online content deletion” (New Media & Society, July 28, 2021: https://doi.org/10.1177/14614448211032310), igualmente numa revista com referee e fator de impacto. O Fernando é doutorando em Engenharia Mecânica e o João, doutor em Ciências da Comunicação, ambos pela Universidade do Minho, com bolsa da FCT. O João emigrou; é professor na Universidade Erasmus de Roterdão, na Holanda. O Fernando para lá caminha: atraído pelo Oriente, está a aprender japonês, o que, para mim, não é bom augúrio. Não se resignam à sorte que Portugal lhes destina nem receiam competir com os indígenas dos países de destino. O panorama nacional está longe de ser cativante. É o fado lusitano.
Repete-se que as empresas e os trabalhadores portugueses carecem de produtividade e competitividade. Não sei! Não disponho de informação suficiente, sobre umas e outros, para consolidar uma ponderação válida. Quero acreditar que se esforçam, que fazem por isso, que se empenham. É do seu interesse. Possuem virtudes e vícios, desconheço se maiores, melhores ou piores do que nos países estrangeiros. O que se me afigura é que se confrontam com custos de contexto incomparáveis e incomportáveis. Só por ser produzido em Portugal, um bem pode suportar custos comparativamente mais elevados. O que configura, na prática, uma espécie de “concorrência desleal” face aos adversários congéneres de outros países, por exemplo, da União Europeia. Um rosário de desgraças! Perdoem a imagem, mas lembra uma corrida em que uns calçam tamancos e outros, sapatilhas de desporto.
Comecemos pela energia, despesa apreciável e incontornável das empresas e das famílias:
“O custo da energia em Portugal continua a ser dos mais elevados da Europa, afetando as famílias e as empresas. Porquê? (…) Na gasolina 95 simples, a carga fiscal é de 63%, fazendo com que o país pague o sexto preço por litro mais elevado da União Europeia (EU). O preço praticado em Portugal é 0.55 euros mais caro que o preço mais baixo praticado na EU e fica a 0.17 euros do preço mais elevado. / No gasóleo, o preço por litro praticado em Portugal é o sétimo mais elevado da EU, sendo 0.38 euros superior ao preço mais baixo e fica a 0.21 euros do preço mais elevado. / Estes preços dos combustíveis são pouco competitivos à escala europeia. Panorama idêntico existe nos custos de eletricidade e do gás natural. / O Eurostat divulgou recentemente o seu boletim de preços e Portugal volta a ficar mal na fotografia. / A carga fiscal, apesar de não ser tão elevada como nos combustíveis, continua a ser acima do desejável: 40% na fatura da eletricidade e 32% na fatura do gás (faturas cobradas às famílias). / No segundo semestre de 2020, o país apresentou o quarto maior preço de eletricidade da EU, tendo por base a paridade do poder de compra das famílias (por MWH), apenas atrás da República Checa, Espanha e Alemanha (…) No que respeita ao gás natural, o país apresenta o segundo maior preço de gás da EU, tendo por base a paridade do poder de compra das famílias (por gigajoules) / Num período em que se discutiram e ainda discutem as prioridades económicas do país e se elaborou um plano de recuperação e resiliência com vista aos fundos estruturais da famosa e tardia “bazuca”, porque não se olhou ou começa a olhar para a questão dos preços da energia, que são elevados em Portugal e que afetam a competitividade das empresas e da economia em geral?” (Carlos Bastardo, Preços da energia em Portugal são elevados no contexto europeu, Jornal de Negócios: https://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/carlos-bastardo/detalhe/precos-da-energia-em-portugal-sao-elevados-no-contexto-europeu).
Algumas propriedades do mercado de trabalho português prejudicam a produtividade e a competitividade nacionais. Por falta de informação adequada, algumas das afirmações seguintes reduzem-se a meras impressões e conjeturas.
A descoincidência, o desacerto, entre a oferta e a procura de trabalho manifesta-se com um dos mais graves obstáculos ao desenvolvimento da economia nacional, da competitividade das empresas e da produtividade do trabalho. As empresas conhecem dificuldades em encontrar trabalhadores ajustados às suas necessidades e especificidades, mesmo quando o desemprego é apreciável; por seu turno, os trabalhadores têm dificuldade em encontrar empregos adequados às suas capacidades e aspirações, mesmo quando a economia se aproxima do pleno emprego. Vários fatores contribuem para este desequilíbrio. Por exemplo, as migrações descontroladas, designadamente a emigração. Mas também a desfocagem da educação, da formação e da requalificação profissional, desfasadas das necessidades efetivas, presentes e futuras, dos sectores público e, sobretudo, privado. Acresce o desencontro da distribuição geográfica. Apesar das “correções espontâneas” e do acréscimo da mobilidade, persiste alguma tendência para as empresas se concentrarem em territórios onde as bolsas de trabalho escasseiam e desertarem das áreas onde a disponibilidade de trabalhadores é maior. As disparidades regionais e as dinâmicas demográficas, principalmente entre o litoral e o interior, concorrem para esta descoincidência. Esta realidade é manifesta. Fui convidado para estudar uma zona industrial a braços com uma crise anunciada: várias empresas com centenas de colaboradores ameaçavam deslocalizar-se devido à dificuldade em recrutar trabalhadores localmente. O desenvolvimento do turismo e do comércio transfronteiriço multiplicou os estabelecimentos hoteleiros e os comércios no norte interior. A maioria dos trabalhadores provêm da área metropolitana do Porto, com o compromisso de lhes garantir alojamento. Existem empresas predadoras de salários baixos que erram de terra em terra, de trabalho esgotado em trabalho prometido.
Quer-me parecer que a imigração, em particular a brasileira, tem mitigado parte desta descoincidência do mercado de trabalho nacional. Mas o atual surto de emigração, com características únicas, agrava-a. Quando a educação e a formação logram acertar, a emigração distorce. A dificuldade no recrutamento de médicos e enfermeiros para o Serviço Nacional de Saúde constitui um exemplo. As famílias com que me relaciono, uma amostra não representativa, têm quase todas pelo menos um filho a trabalhar no estrangeiro. A geração mais qualificada de sempre, descendente da geração mais qualificada do passado, está a despedir-se do país. Portugal está a desperdiçar capital humano, ambição e energia. Grave, muito grave!
O envelhecimento demográfico acentua-se como uma variável de contexto que compromete a economia portuguesa. Em 2019, Portugal era, entre 37 países europeus, o terceiro com maior percentagem de população com 65 e mais anos de idade: 21.8%, a par da Finlândia e atrás da da Itália (22.8%) e da Grécia (22.0%). Entre 2009 e 2019, Portugal foi o sexto país em que este grupo etário mais aumentou (3,8 pontos percentuais contra 2.9 no conjunto da União Europeia – fonte: Eurostat). Este envelhecimento pesa, entre outras dimensões, na sustentabilidade da segurança social e na disponibilidade de força de trabalho. Nestas circunstâncias, importa expandir a disponibilidade laboral, reduzindo, eventualmente, a ocupação com tarefas, tais como a dedicação doméstica à primeira infância, através, por exemplo, da aposta na cobertura de creches. No caso da zona industrial acima referida, a abertura de uma creche propiciou uma maior “drenagem” de trabalhadores, sobretudo, do sexo feminino. Uma iniciativa positiva tanto para as empresas como para os trabalhadores.
Para combater estes e outros custos de contexto, os decisores parecem não vislumbrar outra solução a não ser o recurso à contenção dos salários, à precariedade e à compressão, ao encolhimento, das carreiras. Para o meu entendimento, suspeito, esta é a maior praga da economia portuguesa, o maior custo de contexto. Retomando o artigo “Lamento político 1: Os salários nos sectores público e privado em Portugal e na EU” (https://tendimag.com/2022/01/11/lamento-politico-1/), no ano 2000, entre os dez países europeus considerados, Portugal é aquele que tem o salário médio mais baixo, tanto no setor público como no setor privado. O salário médio da Irlanda é três vezes superior ao português. Portugal destaca-se com o maior diferencial de salário médio entre os setores público e privado: mais 36.6%. Os baixos salários e o diferencial entre setores privado e público, pouco recomendáveis, corroem a competitividade e a produtividade das empresas, dos trabalhadores e do país. Recentemente, as estatísticas revelaram que uma proporção significativa de pessoas com emprego vive abaixo do limiar de pobreza. Não há motivo para tanta surpresa. Em Portugal, existem multidões de trabalhadores que não ganham sequer para a sua reprodução antroponómica, para falar à maneira de Daniel Bertaux (Destins personnels et structure de classe: Pour une critique de l’anthroponomie politique, Paris, Presses Universitaires de France, 1977), ou para a reprodução da sua força de trabalho, como diria Karl Marx. Esta enormidade não pode ser benéfica para a competitividade das empresas e a qualidade de vida dos cidadãos. Compostas por trabalhadores. a produtividade e a competitividade das empresas dependem da qualidade, mobilização e motivação do seu capital humano. Além de baixos, os salários comprimem-se em demasia: pouca amplitude, pouca variação e pouca dispersão. No ano 2000, o desvio-padrão da distribuição dos salários/hora no setor privado era o mais baixo do conjunto dos países da então União Europeia (1,6 contra, por exemplo, 4,1 em França). Não só se ganha menos como são menores as perspetivas de progressão. Nas últimas décadas, esta tendência para a compressão tem-se acentuado, sobretudo, no sector público. A categoria dos professores oferece-se como exemplo: os salários reais baixaram e a sua distribuição comprimiu-se; a carreira encolheu e a espera aumentou. Sobe-se menos, com mais dificuldade e mais devagar. Para cúmulo, o prestígio e a autoestima degradaram-se, fenómeno para que alguns governos contribuíram, sem que ninguém tenha lucrado. Uma das consequências está à vista: a profissão perdeu atratividade. Resulta, mais uma vez, uma descoincidência entre a procura e a oferta de emprego. Atendendo ao envelhecimento da classe e respetiva reforma, os governos vão-se debater, nos próximos anos, com sérias dificuldades em recrutar os professores exigidos pelo sistema de ensino. Aos médicos e aos enfermeiros, juntam-se os professores.
A educação e a saúde são serviços em que, comparativamente, Portugal não desmerece. O respetivo desempenho afirma-se aceitável, justificando, inclusivamente, num ou noutro aspeto, algum motivo de orgulho, por exemplo o sucesso no estrangeiro dos diplomados pelo ensino nacional. Esta avaliação vale para o presente, justifica-se, porém, alguma apreensão quanto ao futuro próximo, mormente no caso da saúde. A educação não para de se debater com um problema crónico: se é ponto assente que o país carece de reformas, a educação padece de reformismo permanente. A cada ano, quando não a cada mês, alteram-se as regras, os procedimentos, os objetivos e os projetos. A educação parece o laboratório do reformismo infantil do Estado. Poeira, que nunca assenta, com prejuízo da consolidação e da estabilidade desejadas para o sistema. Um excesso quase delirante de benchmarking, experimentalismos pedagógicos, sobreaquecimento administrativo, heteronomia e protagonismos políticos. Esta proliferação de minúsculos enxertos e inovações resulta desgastante. A educação parece a nossa folle du logis. Creio chegada a altura de proporcionar algum apaziguamento ao sistema de ensino, de dar repouso a este Sísifo pátrio. Na saúde, em particular no Sistema Nacional de Saúde, a escassez de recursos humanos, a saturação e a morosidade, objetivadas nas filas de espera, mais do que comprometer o presente, erguem-se como um presságio deveras inquietante para o nosso futuro comum.
A saúde e educação suscitam uma mesma reserva. Ao contrário do que estipula a Constituição, não têm sido, cada vez menos acessíveis e mais onerosas, “tendencialmente gratuitas”. O universalismo e a igualdade resumem-se a uma promessa sempre adiada. Quando iniciei a atividade profissional na Universidade, as propinas eram praticamente inexistentes. Hoje, estão bem longe de ser simbólicas. Uma família que dependa de um salário mínimo, mal se consegue restaurar, quanto mais financiar a frequência de um filho, provavelmente deslocado, num curso que cobra milhares de euros por ano. Também não é menos verdade que o direito à escolha do ato médico permanece uma quimera para a maioria dos portugueses.
À semelhança da saúde e da educação, o sistema de transportes, apesar da insuficiente e desequilibrada cobertura, não parece representar um obstáculo decisivo em termos de custos de contexto. A aposta exagerada na rede rodoviária compensa a fragilidade da rede ferroviária. Não obstante, o modelo português comporta alguns custos no futuro. Inscreve-se a contracorrente das opções da União Europeia (ver Livro Branco: Roteiro do espaço único europeu dos transportes, Comissão Europeia, 2011) e dificulta os compromissos de sustentabilidade ecológica entretanto assumidos. Em suma, não é amigo do ambiente. Por enquanto, este handicap não comporta custos de contexto para as empresas.
Se os sistemas de saúde, educação e transportes não se destacam pelos custos de contexto, o mesmo não se pode afiançar do sistema de justiça. Moroso e imprevisível, representa um desafio e uma ameaça para a vida, o funcionamento e a sobrevivência das famílias e, sobretudo, das empresas. O sistema de justiça ocasiona um dos mais graves custos de contexto do país. O recurso à justiça não é raro e pode ser crítico, especialmente em termos de custos de oportunidade. Muitas empresas contemplam serviços jurídicos. Morosa, hermética e imprevisível, a justiça é a tartaruga, o labirinto e a esfinge de Portugal. Não obstante, parece intocável. Sem questionar a dedicação e o empenho, estimo que, no que respeita à esfera pública, ganhava em ceder menos à mediatização e cuidar mais da autonomia que a Constituição lhe confere.
A burocracia é comumente invocada como um dos principais problemas da sociedade portuguesa. Embora o admita, reconheço que se distingue como um dos poucos domínios em que, nas últimas décadas, foram dados passos positivos. A informatização ajudou, bem como iniciativas tais como as lojas do cidadão e o cartão único. Alguns procedimentos simplificaram-se e a relação com o público parece ter melhorado. Mas há ainda caminho a percorrer. O acesso e a resolução dos problemas nem sempre brilham pela agilidade. Pode-se melhorar em termos de clareza das regras e dos procedimentos, acessibilidade, transparência, diminuição de informalidades, clientelas, mordomias, desvios e corrupção. Neste momento, não me parece que a burocracia seja o pior custo de contexto.

Chegou o momento de abordar a questão dos impostos e da carga fiscal. Ao contrário do que muitas vezes se sugere, a carga fiscal em Portugal, quando comparada com os países da União Europeia, não é muito elevada. De acordo com o Eurostat, a carga fiscal, constituída pela soma dos impostos e das contribuições sociais líquidas em percentagem do PIB, situou-se, em 2019, nos 36.8%, ocupando uma posição intermédia na série dos 27 países da União Europeia (ver gráfico 1), abaixo do valor do conjunto (UE27: 41.1%). A carga fiscal aumentou consideravelmente entre 1995 e 2015, passando de 31.4% para 36.8%, o quarto maior aumento nos países da UE27, apenas inferior à Grécia, à Bulgária e ao Chipre (ver Tabela 1). Honestamente, estes números não apontam para uma carga fiscal responsável, intrínseca e comparativamente, por um despropositado custo de contexto. O que merece, isso sim, uma avaliação criteriosa é o modo como a receita fiscal é repartida, distribuída e investida.

Mergulhei na atividade política em 1974. Fui responsável por um partido político no meu concelho de origem. Com outro concelho, foi o único do distrito em que o partido ganhou as eleições para a Assembleia Constituinte do dia 25 de Abril de 1975. Coincidindo com a minha partida para França, afastei-me da atividade política logo após o período conhecido como “verão quente”. Desde então, nem militante, nem sequer simpatizante explícito. Mas não existem vacinas nem imunidades absolutas. Atrevo-me a um ou outro despretensioso balanço.
O sector político (Presidência da República, Assembleia da República, Governo, poder autárquico, partidos políticos) também influencia os custos de contexto. Dispenso comentar. Limito-me a um breve apontamento.
Entre as propostas da presente campanha eleitoral destacam-se aquelas que respeitam à política fiscal: redução do IRC versus aumento dos salários. Caracterizam-se por serem propostas que se podem implementar por decreto: totalmente, a redução do IRC; parcialmente, o aumento de salários, mais direto e linear no sector público do que no sector privado. Estas propostas justificam dois ou três reparos. Antes de mais, não acredito que “se consiga mudar a sociedade por decreto” (Michel Crozier, On ne change pas la société par décret, 1979). Por outro lado, estas medidas não produzem fatalmente os efeitos desejados. Podem provocar efeitos perversos. O aumento de salários pode alimentar o crescimento do consumo, da inflação, das importações e saldar-se numa quebra efetiva do salário real. Tão pouco se sabe se o bónus da descida do IRC vai estimular as virtudes ou os vícios, muitos e entranhados, do tecido empresarial português. Não sei, portanto, qual vai ser, à partida, o efeito dessas medidas. Invejo quem saiba. São, no entanto, fáceis de formular. Basta quatro palavras: “vou baixar o IRC” ou “vou aumentar os salários”. Outro género de propostas exige mais fraseado. Não basta dizer vou melhorar o ranking da educação, a sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde, agilizar a justiça ou diminuir o impacto da poluição. Tem que se completar a proposta, adiantando como. Certo é que a diminuição do IRC ou o aumento dos salários implicam, automaticamente, uma transferência ou um corte da riqueza de todos em proveito de uma parte, seja esta empresária ou assalariada. Significa, também, que esse dinheiro transferido ou preterido deixa de estar disponível para investir, digamos, na saúde, na educação, na solidariedade social ou na fatura energética.
Quase não vejo televisão. Não tenho nada contra, mas dedico-me e concentro-me em outras atividades. Só assisti a uma ou outra passagem dos debates pré-eleitorais. Nem sequer a um único segundo do debate “decisivo” entre António Costa e Rui Rio. Entretido, passou-me a hora. Não me entusiasma a voz dos políticos; ainda menos a dos comentadores. Mesmo assim, acabo por reter algumas impressões.
Pelos vistos, as velhas dicotomias da economia política e da política económica, tais como investimento/consumo, rendimento/inflação, público/privado continuam no vento. Quando frequentei na Sorbonne, no início dos anos oitenta, um curso de mestrado em Política Económica, as aulas convenceram-me que essas oposições se tinham esbatido e que keynesianos e friedmanianos tinham aprendido alguma coisa com a experiência e uns com os outros. Tudo indica que não.
Enfim, o pouco que observei foi o suficiente para entranhar uma impressão deveras estranha. Parece que os poderosos e abastados deste país têm inveja dos pobres e dos excluídos! Precise-se, de passagem, que os traficantes não costumam ser pobres; antes, endinheirados.
Em jeito de conclusão, três dúvidas formuladas sob a forma de perguntas:
– Serão as empresas portuguesas, por si mesmas, não competitivas? Noutros termos: colocadas em condições semelhantes às congéneres dos países parceiros da União Europeia, permaneceriam não competitivas?
– Serão os assalariados portugueses menos produtivos? Noutros termos: colocados em condições semelhantes, como os nossos emigrantes, aos congéneres dos países parceiros da União Europeia, permaneceriam pouco produtivos?
– Será Portugal um país, no seu conjunto, não competitivo?
Excetuando um breve período na década de 1960, há séculos que Portugal não é um país competitivo.
Mocidade académica. O amor burocrático

Com tantos regimentos, regras, normas, modelos e procedimentos, criar resume-se a um jogo de colorir imagens. Um projecto é um projecto, conforme o regulamento. As referências bibliográficas, também. Nada como encurralar o pensamento em 2 000 palavras… Esta é a arte, esta é a bênção. Tudo deliberado, consignado e disponível em documento próprio, para instrução de alunos com experiência académica e percursos profissionais notáveis. Se pretende saber, saiba connosco, saiba como nós! Percorra o caminho batido.
Na escola primária, há mais de cinquenta anos, entoava-se, no início, a seguinte canção:
Vamos cantar com alegria
E começar um novo dia
Para nós o estudo só nos dá prazer
Faremos tudo, tudo para aprender.
Não há muitas opções: ou se ensina o caminho ou se aprende a caminhar (Antonio Machado). É sensato confinar os alunos numa redoma de regras e normas? Para colher réplicas? Para conseguir a quadratura do círculo? Apesar da minha costela anarquista, admito a necessidade de normas e de regras. Incomoda-me o excesso de amor e de zelo burocráticos. Regulamente-se, regulamente-se até ao cinzento final. “Pim!”

O elogio do vazio

A vida é de um estofo deveras ruim cujo bordado decide todo o preço. Apegamo-nos, muitas vezes, mais a um determinado estilo de vida do que à própria vida (Gabriel Sénac de Meilhan, Considérations sur l’esprit et les moeurs, 1787).
Pontuar é útil, mas a obra permanece obra, como a maçã de Picasso. Avaliar uma obra que se desconhece é uma fraude. Uma ilusão de “pintores da realidade”. O formulário substitui a forma e a forma substitui a vida. Nas burocracias, “a resolução “objetiva” dos assuntos pressupõe primeiramente uma resolução conforme as normas calculadas e “sem levar em conta as pessoas”” (Weber, Max, O que é a burocracia, CFA, Conselho Federal de Administração, 2017, p. 39), nem as suas obras. Como aos melões, apalpa-se a casca.
Ensaio, anúncio, imagem? Nada, começo o ano com um poema, a Promenade de Picasso (1949), de Jacques Prévert, declamado por Yves Montand. Acrescento, para compensar, uma canção de Jacques Brel: Au suivant. Segue, para concluir, a letra do poema La Promenade, em português e em francês.
Recreação de Picasso (La Promenade de Picasso)
Numa base bem redonda de porcelana real
posa uma maçã
Face a face com ela
um pintor da realidade
em vão tenta pintar
a maçã tal como ela é
mas
ela não vai deixar
a maçã
ela vai se pronunciar
e tem várias tramas no seu saco de maçãs
a maçã
e ali está ela rodando
numa base real
dissimuladamente em si mesma
docemente sem se mover
e à guisa dum Duque de Guise que num truque é guizo
para que não lhe tirem a imagem a contragosto
a maçã disfarçada desfruta seu traje de bela bruta
e é então
que o pintor da realidade
Passa a perceber
que todas as aparências da maçã são contra ele
e
como o pobre indigente
como o miserável que se vê de repente à mercê de alguma associação beneficente e caridosa e assombrosa por sua beneficência e caridade e assombrosidade
o pobre pintor da realidade
se vê então de repente como a triste presa
de uma incontável multidão de associações de idéias
E a maçã a rodar evoca a macieira
o Paraíso terrestre e Eva e depois Adão
a sidra o leitão à mesa Nova Iorque e a maçaneta
a Argentina as Hespérides a verde a vermelha e a golden
branca do amor e a maçã de neve
e o pecado original
e as origens da arte
e a Suíça com Guilherme Tell
e até mesmo Isaac Newton
várias vezes premiado na Exposição da Gravitação Universal
e o pintor atordoado perde de vista seu modelo
e adormece
É então que Picasso
enquadrando-se ali como em toda oportunidade
cada dia como em sua casa
vê a maçã e o prato e o pintor adormecido
Que idéia de pintar uma maçã
diz Picasso
e Picasso come a maçã
e a maçã lhe diz Obrigado
e Picasso quebra o prato
e sai dali sorridente
e o pintor arrancado de seus sonhos
como um dente
se encontra só novamente diante da sua tela inacabada
com os terríveis caroços da realidade
bem no meio da sua louça despedaçada.
Jacques Prévert, 1949
La promenade de Picasso
Sur une assiette bien ronde en porcelaine réelle
une pomme pose
Face à face avec elle
un peintre de la réalité
essaie vainement de peindre
la pomme telle qu’elle est
mais
elle ne se laisse pas faire
la pomme
elle a son mot à dire
et plusieurs tours dans son sac de pomme
la pomme
et la voilà qui tourne
dans une assiette réelle
sournoisement sur elle-même
doucement sans bouger
et comme un duc de Guise qui se déguise en bec de gaz
parce qu’on veut malgré lui lui tirer le portrait
la pomme se déguise en beau bruit déguisé
et c’est alors
que le peintre de la réalité
commence à réaliser
que toutes les apparences de la pomme sont contre lui
et
comme le malheureux indigent
comme le pauvre nécessiteux qui se trouve soudain à la merci de n’importe quelle association bienfaisante et charitable et redoutable de bienfaisance de charité et de redoutabilité
le malheureux peintre de la réalité
se trouve soudain alors être la triste proie
d’une innombrable foule d’associations d’idées
Et la pomme en tournant évoque le pommier
le Paradis terrestre et Ève et puis Adam
l’arrosoir l’espalier Parmentier l’escalier
le Canada les Hespérides la Normandie la Reinette et l’Api
le serpent du Jeu de Paume le serment du Jus de Pomme
et le péché originel
et les origines de l’art
et la Suisse avec Guillaume Tell
et même Isaac Newton
plusieurs fois primé à l’Exposition de la Gravitation Universelle
et le peintre étourdi perd de vue son modèle
et s’endort
C’est alors que Picasso
qui passait par là comme il passe partout
chaque jour comme chez lui
voit la pomme et l’assiette et le peintre endormi
Quelle idée de peindre une pomme
dit Picasso
et Picasso mange la pomme
et la pomme lui dit Merci
et Picasso casse l’assiette
et s’en va en souriant
et le peintre arraché à ses songes
comme une dent
se retrouve tout seul devant sa toile inachevée
avec au beau milieu de sa vaisselle brisée
les terrifiants pépins de la réalité.
Jacques Prévert, 1949
A medida de tudo e a relevância de nada
Não se cria um investigador por decreto, nem se mede a investigação a metro. “Vem-nos à memória uma frase batida”: a escola como “fábrica de salsichas” (Karl Marx / Pink Floyd / Neil Smith), mais custosas do que gostosas. Desde a Idade Média que as universidades nunca voaram tão baixo. E não há volta a dar-lhe? As novas elites das redes não querem, as burocracias não podem e os sábios não sabem. Resta aos políticos desfazer aquilo que fizeram. Um hino à razão pérfido e grotesco, grotesco da pior espécie, da espécie que não tem graça. Talvez Moisés de Lemos Martins esteja certo: já não há palavras para tantos números. Com boa vontade, vamos conseguir “ter a medida de tudo e a relevância de nada” (Pitirim A. Sorokin). A minha memória é extremamente vadia. Perde-se de salto em salto sem ponto onde se firmar. Acabei de me lembrar de Gregor Samsa, o protagonista da novela A Metamorfose (1915) de Franz Kafka, que acorda um triste dia transformado em insecto. Deitado de costas na cama, nem se consegue levantar. Quer-me parecer que aquilo que acontece às pessoas nos livros acontece na realidade às organizações.
Tanto a Old Spice como a Chaindrite têm apostado no grotesco. O grotesco ocidental e o grotesco oriental não são semelhantes. Nestes dois casos, qual é o mais cerebral? O mais visceral? O mais delirante? Qual perturba mais?
Marca: Old Spice. Título: Nice and Tidey. Estados Unidos, Setembro 2018.
Marca: Chaindrite. Título: Insects. Agência: MullenLowe Thailand. Direcção: Thanonchai Sornsriwichai. Tailândia, Agosto 2018.
Ousar pensar

Rio Laboreiro. http://greentrekker.pt/agenda/peneda-e-castro-laboreiro/.
Dare to think! Rebell against the ordinary! The journey is the all point. A Universidade de Ghent, na Bélgica, está em 125º lugar no QS World University Ranking. O anúncio Dare to think é criativo e persuasivo. Pelos vistos, a Universidade de Ghent não perfilha as nossas confusões estratégicas: centra-se nos estudantes. O que anima e sossega. Virá um dia em que muitas universidades funcionarão sem estudantes, cingindo-se a investigadores, professores, burocratas e parceiros. Outro dia virá em que as universidades serão um formigueiro de investigadores sem descobertas científicas. A escrita é uma terapia, um ribeiro que corre contra as fragas de cascata em cascata. Umas vezes, refresca, outras, magoa.
Marca: Ghent University. Título : Dare to think. Agência : Mortierbrigade Brussels. Direcção: Tom Willems. Bélgica, Março 2018.
Repetição
“Si la publicité des journaux constitue un moyen de persuasion très efficace, c’est que peu d’esprits se trouvent assez forts pour résister au pouvoir de la répétition. Chez la plupart des hommes elle crée bientôt la certitude” (Gustave Le Bon, Les incertitudes de l’heure presente, 1923).
“Jadis l’esprit se manifestait en toute chose. A présent nous ne voyons plus qu’une répétition sans vie que nous ne comprenons pas. La signification du hiéroglyphe nous fait défaut” (Novalis (1772-1803). Semences. Trad. Francesa: Paris, Allia, 2004).
“Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade” (Joseph Goebbels).
Dizem os filósofos que o repetido é diferente do geral. A repetição requer uma singularidade, um original a copiar. Posto isto, é possível, pela repetição, fazer de um anão um gigante. Repete-se até frisar a monstruosidade. Mecânicas expeditas não faltam. Um cantor que se preze deve atingir milhões de visualizações na Internet, de preferência de um dia para o outro. É bom? Eis uma questão despropositada. O IMDb ordena os filmes segundo as receitas recolhidas. A comunidade científica pesa os investigadores em função das citações e das referências.

Quino. Plantando ideias.
Um cientista que recicla uma ideia há mais de dez anos tem, provavelmente, mais notoriedade do que um colega que desenvolve, todos os anos, ideias geniais, mas que, por qualquer motivo, as não mobiliza no circo da repetição. No circo da repetição, há círculos de repetição. Sabe-se muito destes e pouco daqueles. Acode-me, em noites sonâmbulas, que a ciência avançada assenta numa burocracia sofisticada, capaz de tudo e todos classificar, comparar e contabilizar. Presta-se, porém, a enxertos tribais de longo alcance, glocais e globais. Cerca de quatrocentos anos após a morte de Galileu, a ciência depara-se com um novo dogma: a repetição virtuosa.
Excelência
“Portugal já tem oitenta e dois centros de referência nos hospitais” (Público, 11.03.2016).
“Para já, o que se fica a saber é que, em 19 áreas clínicas, foram apresentadas 134 candidaturas e seleccionadas 74 (que na realidade correspondem a 82 instituições, se considerarmos todos os serviços, uma vez que há centros que vão funcionar em consórcio, o que é novidade em Portugal). Os que não foram escolhidos não serão prejudicados, porque continuam a fazer o que faziam. “Isto não serviu para seleccionar centros especializados, mas sim centros altamente especializados”, sublinha Alexandre Diniz, da Direcção-Geral da Saúde (DGS) e membro da comissão de peritos que escolheu as unidades” (Público, 11.03.2016).
Sobressalto de espanto e júbilo: “Portugal já tem oitenta e dois centros de referência nos hospitais”! Na ciência, também existem muitos centros de excelência. E mais que excelentes! Pontos de referência. Para quem? Lembro-me de uns rectângulos avermelhados que, molhados, eram pontos de referência para as moscas.
Os centros “que não foram escolhidos (…) continuam a fazer o que faziam”. Precise-se que “isto não serviu para seleccionar centros especializados, mas sim centros altamente especializados”. A avaliação esmera-se. Mais um caso nacional em que a avaliação se faz para avaliar e, por contágio, descriminar. Consequências? O arrasto do costume.
“O que muda para os doentes? Por enquanto, não haverá grandes alterações, porque para que um paciente seja tratado num destes centros precisa primeiro de ser encaminhado pelo seu clínico assistente” (Público, 11.03.2016).
Resta uma postura nacional com tradição excelente e, por sinal, de referência: esperar! Pela centelha da predição criadora do oráculo burocrático. Entretanto, vou deslocar-me para Lisboa, Porto ou Coimbra. Cidades onde a gente é gente, com centros de excelência e pontos de referência. Quanto ao clínico, mais do que um médico, espero que seja bom encaminhador e, caso disso, bom alavancador.

Boquiaberto. Escultura de uma máscara de teatro do período helenístico. Museu Arqueológico Nacional. Atenas.
As palavras têm altos e baixos. Ora estão na mó de cima, ora estão na mó de baixo. Excelência e referência são palavras em que as burocracias europeias apostam. Pouco importa se os ventos são atlânticos ou nórdicos, estas duas palavras incham que nem sapos com um cigarro na boca. Como nos vasos comunicantes, outras palavras esvaziam-se. Por exemplo, a palavra “elite”, penalizada pelo lastro histórico. Ressalve-se, porém, que não é por uma burocracia integrar uma sociedade democrática que ela é democrática. As burocracias não são democráticas!
“Portugal já tem oitenta e dois centros de referência nos hospitais”. Já? Nem sei o que pensar.Tanta excelência deve ser excelente!
Desta vez, não comento o anúncio. O anúncio ilustra, como contraponto de referência, o comentário.
Marca: Nike. Título: Jogger. Agência: Wieden+Kennedy Portland. Direcção: Lance Acord. USA, 2012.
Fichas e Selfies
Livrei-me da tropa fazendo-me passar por um neurótico. Eles tomaram-me por louco. Quando preenchi o formulário, na rubrica “raça”, escrevi “humana”. Na rubrica “cor”, escrevi “variável” (Marlon Brando).
Estou fichado. Andei às voltas com um projecto e acabei por preencher a ficha à pressa. Fichei-me. As fichas têm o condão de confundir o essencial e distinguir o acessório. Sem ficha, não existes! Com ficha, estás fichado. Prometido, não volto a prestar-me a burocracias do espírito.
Este anúncio da Pizza Hut é divertido. Humor e loucura de braço dado. Uma paródia que retrata e ridiculariza a mania das selfies. “Se não gosto de mim, quem gostará? Porque eu gosto de quem gosta de mim”. Deve ser isto a reflexividade social.
Marca: Pizza Hut. Título: The Danger of Self Sticks. USA, Maio 2015.
Cabeças com semáforos
Não, não sou o único
Não, sou o único a olhar o céu
Não, não sou o único
Não, sou o único a olhar o céu Pensas que eu sou um caso isolado
Não sou o único a olhar o céu
A ouvir os conselhos dos outros
E sempre a cair nos buracos
A desejar o que não tive
Agarrado ao que não tenho
Não, não sou o único
Não sou o único a olhar o céu E quando as nuvens partirem
O céu azul ficará
E quando as trevas abrirem
Vais ver, o sol brilhará
Vais ver, o sol brilhará
(Xutos e Pontapés)
Tanta gente inteligente com tanto semáforo na cabeça! Não gosto da expressão “estudar para burro”. Mas já me aconteceu mudar de opinião. Até os políticos mudam…
A Ana Barros enviou-me este artigo sobre A doença da “normalidade” na universidade . “Não sou o único”. O que reconforta. Pode aceder ao artigo carregando na imagem ou a partir do seguinte endereço: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/07/a-doenca-da-normalidade-na-universidade.html.
Paixão pela burocracia. Crónica do ComUM.
Regresso às crónicas do ComUm. Para tentar perceber a razão e o porquê deste mundo que nos oprime sem porquê e sem razão. Para aceder, carregar na imagem.