Aflição fascinante
Nem sempre se recorre à doçura para cativar o guloso. Por vezes, o isco consiste no inverso: na acidez. É o caso dos anúncios It’s Free. But it Could Cost You/Wooing Jeff e Scary Fast. O primeiro denuncia o cúmulo, o extremo, da inconveniência associado à absorção alienante provocada pela exposição, quase hipnótica, ao canal de televisão TVZN. O segundo, uma paródia de um thriller de terror, introduz o potente e heroico todo-terreno Ford Raptor R que escapa ileso a uma série de ameaças e perigos diabólicos. Ambos aos anúncios resultam imediata e assumidamente desagradáveis. Esta opção não é novidade. Com receitas e doses apropriadas, a adversidade e a perversidade podem compensar.
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Vício
Segue o fruto do vício: o último artigo do Tendências do Imaginário do ano 2019.
Foi lançado, recentemente, um novo videojogo do Dragon Ball Z: Kakarot. No trailer, um jovem adulto recorda a sua relação com o Dragon Ball. Aproxima-se de um otaku, um fã obstinado. O trailer realça esse perfil. O protagonista imita os heróis e os seus gestos. Expõe-se, absorve e “reproduz”. O fenómeno é bom ou mau consoante as perspetivas. Para quem concebeu o trailer, parece desejável. Pessoalmente, não sei. Quando era pequeno, adorava os filmes, os livros e as brincadeiras de cowboys. Comprava livros usados, com ou sem quadradinhos, numa tabacaria do Largo dos Penedos, em Braga. Trocávamos livros de cowboys como quem troca cromos. A imersão não era menor do que face a um ecrã. Percorria quilómetros para ver uma série na televisão espanhola ou portuguesa: Bonanza, Jim West, Daniel Boone… Um western esgotava a geral do cinema Pelicano. Brincávamos aos cowboys, uma espécie de escondidas em que dois grupos se caçavam mutuamente e o toque era substituído pela visão: “mãos ao ar, vi-te primeiro”. No quintal, acertava com flechas feitas com varetas de guarda-chuva nas laranjas metamorfoseadas em índios. Cheguei a lutar com o travesseiro. Boa parte dos meus desenhos retratava cowboys. Tive pistolas de plástico e uma máscara de índio. Até falava com o sotaque dos atores norte-americanos. O cavalo era o meu animal de sonho. Um dia, o meu padrinho diz-me: – Vamos comprar um cavalo. Partimos para a Póvoa de Varzim. Deu as suas voltas e, a um dado momento, entrámos num edifício amplo que tinha cavalos. Falou com as pessoas do local. Regressou: – Só vendem os cavalos com as carroças. Respondi-lhe: – Assim não quero! É assim que se jardinam os sonhos das crianças. Em suma, tal como agora existe o otaku dos anime e dos mangá, eu era um otaku da coboiada. Teve efeitos? Naturalmente. A focagem é, por mais fantástica que seja, um estreitamento e um enviesamento do mundo. Se Armand Mattelard analisasse os livros, as séries e os filmes de cowboys, descobriria, como nas revistas da Walt Disney, falácias e perversidades. Existem eras, os anos cinquenta e sessenta foram a era dos cowboys; seguiu-se a era dos espiões e, um pouco mais tarde, a era dos anime e dos mangá. Há eras e eras, a dos cowboys coincidiu com a guerra fria. Ficaram-me marcas negativas? Tenho o corpo todo torto de andar a cavalo e quando aponto o dedo saem balas. Por acréscimo, fumo como os cowboys da Marlboro.
Vou festejar. Bom Ano!
O Pixel Nosso de Cada Dia
O sentimento está a desbotar para o azul? Pixelize-se. Quanto mais cedo, melhor. Mergulhe, da cabeça aos pés, numa caixa de cores e deixe-se absorver pelas imagens. Não se canse de “imaginar”, massaje-se, imagem a imagem, a duas, três ou quatro dimensões. Se a vida está demasiado azul, o arco-íris está à sua espera no aquário electrónico. Concentre-se visualmente. Assuma como uma imagem num televisor que não presta, o seu, é uma imagem do outro mundo num televisor mágico, o Samsung. Deve ser isto a alquimia pictórica. Curiosamente, falou-se ontem no mago, Bruno Aveillan, na sessão de abertura do Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura.
Marca: Samsung. Título: Life in every pixel. Agência: Cheil, UK. Direção: Bruno Aveillan. Reino Unido, Setembro 2013.