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Saúde e Pobreza – Seminário dia 28 de maio

Segue o convite, com a respetiva apresentação, para o seminário organizado pela EAPN dedicado ao tema “O binómio saúde e pobreza: uma análise de causalidade “, previsto para o próximo dia 28 de maio, no auditório Zulmira Simões da Escola de Medicina da Universidade do Minho.

Aproveito para acrescentar uma notícia do Diário Minho, do dia 17 de maio, a apresentar o recentemente criado Fórum de Cidadania pela Erradicação da Pobreza, parceiro da EAPN.

Press Release

CONGRESSO NACIONAL – DIÁLOGOS SOBRE POBREZA

Desta vez, em Braga, debate-se “O binómio saúde e pobreza”

“O binómio Saúde e pobreza: uma análise de causalidade” é o tema do terceiro seminário organizado pela EAPN Portugal, promotora do Congresso Nacional – Diálogos sobre Pobreza que já abordou “A Luta contra a pobreza em Portugal: desafios e oportunidades” e “Pobreza, Trabalho e Desigualdades”.

 Desta vez Braga é a cidade escolhida para o encontro que reúne alguns especialistas, dia 28 de maio, no auditório Zulmira Simões da Escola de Medicina da Universidade do Minho. Este congresso nacional – Diálogos sobre Pobreza – composto por 4 seminários realizados em 4 cidades (Porto, Aveiro, Braga, Lisboa) visa comemorar o 30º aniversário da EAPN Portugal, celebrado no passado mês de dezembro, cujas iniciativas se estendem ao corrente ano, contando com o Alto Patrocínio do Senhor Presidente da República.

O direito a um nível de vida adequado para assegurar a saúde e bem-estar de cada pessoa e da sua família, constitui um dos direitos fundamentais inscritos no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em 1948.

A saúde possibilita o desenvolvimento social, económico e pessoal das pessoas, sendo por isso um componente essencial para a qualidade de vida de cada indivíduo. Não obstante, as desigualdades sociais e económicas contribuem frequentemente para diminuir a acessibilidade das pessoas em situação de maior vulnerabilidade a cuidados de saúde que lhes permitam a manutenção de um nível de saúde adequado.

A saúde individual de cada pessoa é, por isso, determinada por um conjunto de fatores políticos, socioeconómicos, culturais, biológicos e comportamentais que podem tanto favorecer como prejudicá-la.

Num país fortemente marcado por desigualdades, o Sistema Nacional de Saúde (SNS) tem sido um poderoso instrumento de coesão social. A criação do SNS em 1979 veio assegurar o acesso universal, geral e tendencialmente gratuito de todos os cidadãos de Portugal a cuidados de saúde. Volvidos mais de 40 anos desde a sua criação e apesar das conquistas alcançadas pelo SNS – desde as melhorias ao nível da saúde materno-infantil à cobertura e alcance dos cuidados médicos hospitalares em todo o território -,existem ainda diversas lacunas que carecem de solução e que, à luz da atual crise despoletada pela pandemia da COVID-19, foram intensificadas.

Segundo os últimos dados do INE[1], em 2021, 50.2% da população autoavaliou o seu estado de saúde como bom ou muito bom (uma descida de 1.1 p.p. face ao ano anterior). Essa autoavaliação positiva foi mais elevada entre os homens (54.2%) por comparação às mulheres (46.6%); entre a população empregada (65.2%) por comparação à desempregada (50.5%) e entre as pessoas com ensino superior (74.1%) e ensino secundário e pós-secundário (66.2%) por comparação às que detêm apenas o ensino básico (34.1%). Em todos estes grupos verificou-se uma descida relativamente ao ano 2020.

Os dados do INE indicam ainda que se verificou em 2021 um aumento na percentagem de pessoas com 16 ou mais anos que tinham necessidade de consultas médicas não satisfeitas (5.7%), sendo a disponibilidade financeira o principal motivo apresentado para 30% das pessoas que referiram estar nessa situação. Ainda segundo este inquérito, 60% das pessoas inquiridas apontaram “outras razões” como motivo para as necessidades de consulta médica não satisfeitas, com destaque para os motivos relacionados com a crise pandémica COVID-19.

Viver em situação de pobreza tem claramente um impacto na saúde das pessoas. A autoavaliação que as pessoas que vivem numa situação de pobreza fazem da sua saúde é claramente menos positiva quando comparada com a população que não está nessa situação. Em 2021, 50.2% da população total avaliava o seu estado de saúde como muito bom ou bom. Já quando se considerava a população em risco de pobreza, este valor descia para 37,2%. No caso das avaliações do estado de saúde como razoável estas são superiores na população em situação de pobreza (41.4%) quando comparado com a população total (36.6%). O mesmo se verifica quando existem limitações na realização de atividades devido a problemas de saúde prolongados: em 2021, 44.5% da população em situação de pobreza referia ter limitações na realização de atividades devido a problemas de saúde e 14.1% apontavam limitações severas.

A saúde mental é outra dimensão central à vida das pessoas. Segundo os dados apontados pelo Inquérito Europeu da Saúde (EHIS) de 2014 do Eurostat, cerca de 31% da população admitia ter necessidades de cuidados médicos não-satisfeitas ao nível da saúde mental por motivos financeiros. Mais recentemente, o relatório da OCDE “A New Benchmark for Mental Health Systems” estimava que cerca de 64% da população em idade laboral em Portugal apresentava[2] necessidades de cuidados médicos não-satisfeitas ao nível da saúde mental por motivos de transporte, financeiros e de tempo de espera[3]. Estes dados não surpreendem e são um claro reflexo do sub-investimento que existe ao nível dos cuidados de saúde mental no SNS e que se manifestam sobretudo numa carência de recursos humanos especializados.

Se tivermos em conta o impacto da COVID-19 na saúde mental verificamos que, em 2021, 26.6% da população com 16 ou mais anos referiu o efeito negativo da pandemia na sua saúde mental. Um efeito mais gravoso para as mulheres (30.2%) do que para os homens (22.4%); com pouca diferença entre a população com idades entre os 16 e os 64 anos (26.8%) por comparação à população com 65+anos (25.9%); um impacto significativamente elevado para a população em situação de desemprego (33.7%) por comparação à empregada (25.5%).

Também nesta dimensão viver em situação de pobreza é um fator de maior vulnerabilidade: só em 2021, devido à pandemia, 29,6% da população com 16 anos ou mais em risco de pobreza referiram um impacto negativo da pandemia de COVID-19 na sua saúde mental, menos 3 p.p. quando comparado com a população total (26,6%)[4].

A acessibilidade à saúde é afetada também pelas desigualdades geográficas em termos de cobertura dos serviços. Existem um conjunto de assimetrias regionais em termos de cobertura da rede hospitalar e especialidades médicas que impactam o acesso à saúde da população, em particular a mais vulnerável.

Se as fragilidades apontadas no acesso e cobertura do SNS nas diferentes dimensões analisadas eram um facto incontornável pré-pandemia, à luz da atual crise despoletada pela paralisação do SNS causada pela pandemia da COVID-19 e a intensificação de patologias do foro mental, é de prever que estas fragilidades se acentuem e tragam efeitos na saúde dos portugueses ainda difíceis de quantificar. É, igualmente, previsível que estas fragilidades continuem a afetar de forma desproporcional as pessoas em situação de maior vulnerabilidade económica e social. É, por isso, imprescindível colocar a dimensão da saúde e da saúde mental na agenda de discussão do combate à pobreza.

O documento que servirá de ponto de partida para o debate apontará algumas recomendações para o futuro.

No sítio dedicado à iniciativa em https://congresso2022.eapn.pt encontrará o programa do evento, com todos os intervenientes e temas a abordar.

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EAPN Portugal

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[1] INE, Estado de Saúde, Rendimento e Condições de Vida 2021, 25 de fevereiro de 2022. Disponível em : https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=544264379&DESTAQUESmodo=2

[2] Os dados apresentados pela OCDE neste relatório, publicados em 2021, são relativos ao período entre 2012 e 2016, não sendo possível discriminar com precisão a que ano os mesmos se referem.

[3] OECD. A New Benchmark for Mental Health Systems. (2021). https://doi.org/https://doi.org/10.1787/4ed890f6-en

[4] INE, Estado de Saúde, Rendimento e Condições de Vida 2021, 25 de fevereiro de 2022. Disponível em : https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=544264379&DESTAQUESmodo=2

Abrenúncio

Skeleton Smoking Poster, by Microgen Images/science Photo Library

“Sucessivas subidas de impostos sem influência nos fumadores. Estado com receitas de 1,4 mil milhões. Vendas cresceram quase 20% até abril. Fotos chocantes nos maços aprovadas há seis anos. / Os portugueses estão a fumar mais este ano do que fumaram no arranque do ano passado. As sucessivas subidas do imposto sobre o tabaco (IT) não parecem dissuadir os consumidores, tendo-se registado um aumento de 19,59% de cigarros consumidos entre janeiro e abril de 2022 face a igual período de 2021. O Governo prevê que, em 2022, face ao aumento de 1%, o IT renda 1433 milhões de euros, mais 20 milhões do que em 2021. O JN falou com dois especialistas em doenças pulmonares no dia em que se cumprem seis anos desde que foram introduzidas as imagens explícitas nos maços de tabaco. Ambos consideram que o recurso às fotografias não chega, por si só, para reduzir o consumo. E, em linha com o que defende a DGS, referem que a chave é continuar a fazer subir os preços” (João de Vasconcelos e Sousa e João f. Sousa, Nem o aumento do tabaco trava o consumo: Jornal de Notícias, sexta-feira, 20.5.2022.

Anunciante: Breathe-free Foundation. Título: Suicide. Agência: Y&R Singapore. Direção: Royston Tan. Singapura, setembro 2006.

Ano após ano, aguarda-nos, ao dobrar da esquina, a mesma lamúria e a mesma panaceia. Décadas a fio, durante quase meio século, ressurge, lamentada, a surpresa: na melhor das hipóteses, o consumo de tabaco praticamente não desce, antes pelo contrário, sobe, por vezes muito, como ano transato (19,59% em Portugal). Afinal, as medidas, extraordinárias não lograram os resultados esperado. Nem nos anos oitenta, com a proibição da publicidade ao tabaco, nem nos anos noventa, com a proibição de fumar nos recintos fechados, nem agora, com as fotografias alarmantes. Uma série de medidas decisivas ao nível da ecologia do tabaco, dos seus usos sociais, mas, aparentemente, sem resultados de vulto no que respeita à evolução dos valores de consumo. Como balanço, assume-se, algo paradoxalmente, que o recurso ao aumento do preço do tabaco, graças ao aumento o imposto sobre o consumo de tabaco (IT) é o grande recurso, senão único, pelo menos indispensável. Ano após ano, não para de aumentar, “extraordinária”, a tributação sobre o consumo de tabaco. Com resultados insuficientes, como nos anos precedentes. Pelos vistos, nem influencia, nem modera.

As medidas antitabaco e o aumento da carga fiscal resultam, portanto, inócuos? Nem por isso. Proporcionam uma receita adicional gigantesca para os cofres do Estado. Aumentam, sem mais, a carga fiscal de uma categoria específica de contribuintes. Em termos de redistribuição, a consequência é a transferência excecional, mas constante, de uma parte do rendimento de uma parte dos cidadãos para outros (para o conjunto). Esta política fiscal “antitabaco” é responsável pelo empobrecimento absoluto e relativo de uma categoria social: os consumidores de tabaco. Aberração por aberração, esta sobrecarga fiscal inscreve-se como um contrassenso no âmbito de um Estado Social: configura um imposto de algum modo “regressivo” cuja incidência aumenta à medida que os rendimentos diminuem; são os mais pobres quem mais fuma.

Em suma, o efeito do aumento do imposto sobre o tabaco manifesta-se perverso: irrelevante no que respeita ao objetivo que o justifica, o consumo do tabaco, assevera-se apreciável como derivação instrumental, o aumento da receita fiscal. Alguns diriam um discurso “encapotado”, outros farisaico, sem desprimor para os fariseus. Trata-se de uma política de foro fiscal, discriminatória, iníqua e avessa ao princípio da progressividade dos impostos. ” A Constituição estabelece no n.º 1 do artigo 104.º que “O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”.

As políticas antitabaco produzem, para além do aumento discriminatório e regressivo da carga fiscal, outros efeitos, por exemplo, ao nível dos direitos e deveres dos cidadãos em domínios tais como a comunicação, a circulação, a autoestima, a privacidade, a intimidade…  Algumas são legítimas e positivas: a proibição da publicidade de uma mercadoria nociva ou a salvaguarda do direito a um espaço saudável e com qualidade de vida. Convence-me menos a publicidade antitabaco, que tende a resvalar para uma espécie de cruzada centrada na figura do próprio fumador, por vezes reduzido a um bárbaro, um poluidor, um irresponsável e um suicida sem hora marcada, que urge converter sem regatear meios. As fotografias chocantes retomam a inspiração dos espelhos da morte medievais:  o fumador vê-se confrontado com o seu provável futuro macabro. Em qualquer lugar, a qualquer hora, incluindo na vida privada e na sua intimidade. Com o panótico, os prisioneiros sentem-se sempre vigiados, com as embalagens atuais de cigarros, o fumador está condenado a não aliviar o olhar, como o protagonista do filme Laranja Mecânica. Trata-se de um excesso de ameaça e assédio, ubíquo e constante. De momento quero convencer-me de que a espontaneidade de um testemunho, franco e satisfeito, de um colega ou amigo contribui mais para a diminuição do consumo de tabaco do que resmas de embalagens de cigarros. As imagens perturbadoras com alertas sobre os riscos do tabaco surgiram pela primeira vez no Canadá, em 2001. Desde então, inúmeros países, com as mais diversas culturas, adotaram, replicando, esta iniciativa. Aplicaram-na com que criatividade, reflexividade e adaptação? Grau zero? Copy and paste?

Se este atropelo à dignidade humana não surte os resultados desejados, não acerta no alvo, por que se insiste em alargá-lo e repeti-lo? Será completamente descabida a crença do senso comum de que um viciado acossado tende a ser mais difícil de converter? Será que subsistem casos em que a transgressão persuade mais do que dissuade? Por que investir em perversidades com escassos benefícios e elevados custos pessoais e sociais? Para que serve e a quem serve esta (des)orientação, este impasse já dura há meio século! Não há modo de ousar uma pausa para reconsiderar o desperdício?

Acontece interrogar-me se quem concebe e executa estas políticas e campanhas conhece os públicos alvo e os fenómenos em causa. Importa inverter esta tendência. Paul Lazarsfeld sustentava que a promoção de um político não é de natureza diversa da publicidade de um sabonete: convém conhecer o produto, os consumidores potenciais e o modo de os persuadir. Por que não se incentiva nem se aprofunda o estudo dos fumadores? Os seus perfis biopsicossociais, a sua condição, as suas experiências, trajetórias, culturas, valores e expetativas? Por que, em vez de atacar, não se ensaia compreender? Por que, em vez de enxovalhar o outro, não ajudamos o próximo? Em vez de o estigmatizar com palavras e imagens terroristas não o cativamos a fazer seu o nosso discurso? Por que não traduzir em vez de impor? Menos paranoia e mais empatia. Às vezes, invade-me um sentimento de frustração, a vertigem de uma aparatosa mensagem mobilizadora de destinatários fantasmas. A consciencialização social é um propósito demasiado complexo. Não costuma prestar-se a panaceias nem à insensibilidade.

Os fumadores e os não fumadores merecem outra criatividade, uma mudança de rumo, de leme e de espírito. Afinal, o assunto não é para menos: um em cada quatro portugueses, ou europeus, fuma! E não integra nenhum bestiário. Pelos vistos, o defeito não está no esforço convocado, remonta, talvez, à inspiração inicial.

Solar. Sensibilização e envolvimento comunitário

Com Beatriz

Acordei solar, com um brilhozinho nos olhos. Tanta imagem de Cristo acaba por me iluminar.

Existem momentos em que me sinto compensado pela atenção que devoto à publicidade, independentemente do país, da fonte, do conteúdo e do propósito. A campanha indiana, Divine Voice, para promoção da vacinação contra a Covid-19, é notável, audaz, inspiradora e eficiente. Um caso digno de reflexão. O anúncio sabe combinar expressividade e sobriedade. Com ou sem gostos, partilhar este vídeo é um privilégio.

“A Concern India Foundation, uma organização sem fins lucrativos, lançou recentemente uma campanha única em zonas de Bangalore caracterizadas por uma elevada resistência à vacinação. Com o apoio de líderes comunitários, adotaram uma iniciativa, com recurso à comunicação oral, chamada Voz Divina.

Os templos e as mesquitas na Índia têm alto-falantes, que transmitem orações e mensagens sagradas. A Concern India introduziu mensagens favoráveis à vacinação nessas orações, que foram, assim, transmitidas e partilhadas ao vivo pelos próprios religiosos e leaders locais. Foram escolhidas passagens das escrituras sagradas como o Bhagwad Gita ou o Alcorão que ensinam a superação do medo, a bondade humana e a salvação de vidas. Assentar a promoção da vacinação numa base cultural tão relevante despoletou um enorme impacto nas pessoas. Ousando ir além da razão, apelou diretamente à identidade e ao coração. A campanha tem-se revelado um sucesso. Os dados recentes sobre a mobilização em Hajee Sir Ismail Sait Masjid em Frazer Town e no Templo Sri Gayathri Devi comprovam-no: “antes, apenas cerca de 30 pessoas compareciam para vacinação. Após a campanha, mais de 200 pessoas foram vacinadas por dia” (Concern India Foundation).

A campanha Voz Divina é um excelente exemplo de publicidade de sensibilização e envolvimento comunitário.

Anunciante: Concern India Foundation. Agência: Ogilvy India. Índia, março 2022.

Uma criança no balde do lixo

Às vezes, uma simples ideia vale, por si só, quase tudo. Com o risco, aliás, de ofuscar o resto. A figura de uma criança entrincheirada num balde do lixo para defender a reciclagem dos resíduos é quase um ovo de Colombo em termos de sensibilização publicitária. Por um tempo, quando pensar em reciclagem, acudirá esta imagem que, inspirada, dispensa grande elaboração.

Marca: Hindustan Unilever. Título: Bin Boy. Agência: Ogilvy (Mumbai). Índia, março de 2022.

Portugal: Competitividade e custos de contexto das empresas, do trabalho e do país.

Rafael Bordalo Pinheiro. Entre a Cruz e a Caldeirinha. O Mosquito, Rio de Janeiro, N. 356, 8 de abril de 1876.

«Um grande sacrifício é fácil, difíceis são os pequenos sacrifícios contínuos…» (Johann Wolfgang Goethe, adaptado de «As afinidades electivas»)

Em Portugal, o que interessa não é interessante. Prefere-se a poeira à clareza (AG).

O meu rapaz mais jovem, o Fernando, acaba de publicar um novo artigo numa revista com referee e com fator de impacto: “A Recursive Algorithm for the Forward Kinematic Analysis of Robotic Systems Using Euler Angle”, (Robotics 2022, 11(1), 15; https://doi.org/10.3390/robotics11010015 (registering DOI). O mesmo acontece com o meu rapaz menos jovem, o João que publicou o artigo “Common sense or censorship: How algorithmic moderators and message type influence perceptions of online content deletion” (New Media & Society, July 28, 2021: https://doi.org/10.1177/14614448211032310), igualmente numa revista com referee e fator de impacto. O Fernando é doutorando em Engenharia Mecânica e o João, doutor em Ciências da Comunicação, ambos pela Universidade do Minho, com bolsa da FCT. O João emigrou; é professor na Universidade Erasmus de Roterdão, na Holanda. O Fernando para lá caminha: atraído pelo Oriente, está a aprender japonês, o que, para mim, não é bom augúrio. Não se resignam à sorte que Portugal lhes destina nem receiam competir com os indígenas dos países de destino. O panorama nacional está longe de ser cativante. É o fado lusitano.

Repete-se que as empresas e os trabalhadores portugueses carecem de produtividade e competitividade. Não sei! Não disponho de informação suficiente, sobre umas e outros, para consolidar uma ponderação válida. Quero acreditar que se esforçam, que fazem por isso, que se empenham. É do seu interesse. Possuem virtudes e vícios, desconheço se maiores, melhores ou piores do que nos países estrangeiros. O que se me afigura é que se confrontam com custos de contexto incomparáveis e incomportáveis. Só por ser produzido em Portugal, um bem pode suportar custos comparativamente mais elevados. O que configura, na prática, uma espécie de “concorrência desleal” face aos adversários congéneres de outros países, por exemplo, da União Europeia. Um rosário de desgraças! Perdoem a imagem, mas lembra uma corrida em que uns calçam tamancos e outros, sapatilhas de desporto.

Comecemos pela energia, despesa apreciável e incontornável das empresas e das famílias:

“O custo da energia em Portugal continua a ser dos mais elevados da Europa, afetando as famílias e as empresas. Porquê? (…) Na gasolina 95 simples, a carga fiscal é de 63%, fazendo com que o país pague o sexto preço por litro mais elevado da União Europeia (EU). O preço praticado em Portugal é 0.55 euros mais caro que o preço mais baixo praticado na EU e fica a 0.17 euros do preço mais elevado. / No gasóleo, o preço por litro praticado em Portugal é o sétimo mais elevado da EU, sendo 0.38 euros superior ao preço mais baixo e fica a 0.21 euros do preço mais elevado. / Estes preços dos combustíveis são pouco competitivos à escala europeia. Panorama idêntico existe nos custos de eletricidade e do gás natural. / O Eurostat divulgou recentemente o seu boletim de preços e Portugal volta a ficar mal na fotografia. / A carga fiscal, apesar de não ser tão elevada como nos combustíveis, continua a ser acima do desejável: 40% na fatura da eletricidade e 32% na fatura do gás (faturas cobradas às famílias). / No segundo semestre de 2020, o país apresentou o quarto maior preço de eletricidade da EU, tendo por base a paridade do poder de compra das famílias (por MWH), apenas atrás da República Checa, Espanha e Alemanha (…) No que respeita ao gás natural, o país apresenta o segundo maior preço de gás da EU, tendo por base a paridade do poder de compra das famílias (por gigajoules) / Num período em que se discutiram e ainda discutem as prioridades económicas do país e se elaborou um plano de recuperação e resiliência com vista aos fundos estruturais da famosa e tardia “bazuca”, porque não se olhou ou começa a olhar para a questão dos preços da energia, que são elevados em Portugal e que afetam a competitividade das empresas e da economia em geral?” (Carlos Bastardo, Preços da energia em Portugal são elevados no contexto europeu, Jornal de Negócios: https://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/carlos-bastardo/detalhe/precos-da-energia-em-portugal-sao-elevados-no-contexto-europeu).

Algumas propriedades do mercado de trabalho português prejudicam a produtividade e a competitividade nacionais. Por falta de informação adequada, algumas das afirmações seguintes reduzem-se a meras impressões e conjeturas.

A descoincidência, o desacerto, entre a oferta e a procura de trabalho manifesta-se com um dos mais graves obstáculos ao desenvolvimento da economia nacional, da competitividade das empresas e da produtividade do trabalho. As empresas conhecem dificuldades em encontrar trabalhadores ajustados às suas necessidades e especificidades, mesmo quando o desemprego é apreciável; por seu turno, os trabalhadores têm dificuldade em encontrar empregos adequados às suas capacidades e aspirações, mesmo quando a economia se aproxima do pleno emprego. Vários fatores contribuem para este desequilíbrio. Por exemplo, as migrações descontroladas, designadamente a emigração. Mas também a desfocagem da educação, da formação e da requalificação profissional, desfasadas das necessidades efetivas, presentes e futuras, dos sectores público e, sobretudo, privado. Acresce o desencontro da distribuição geográfica. Apesar das “correções espontâneas” e do acréscimo da mobilidade, persiste alguma tendência para as empresas se concentrarem em territórios onde as bolsas de trabalho escasseiam e desertarem das áreas onde a disponibilidade de trabalhadores é maior. As disparidades regionais e as dinâmicas demográficas, principalmente entre o litoral e o interior, concorrem para esta descoincidência. Esta realidade é manifesta. Fui convidado para estudar uma zona industrial a braços com uma crise anunciada: várias empresas com centenas de colaboradores ameaçavam deslocalizar-se devido à dificuldade em recrutar trabalhadores localmente. O desenvolvimento do turismo e do comércio transfronteiriço multiplicou os estabelecimentos hoteleiros e os comércios no norte interior. A maioria dos trabalhadores provêm da área metropolitana do Porto, com o compromisso de lhes garantir alojamento. Existem empresas predadoras de salários baixos que erram de terra em terra, de trabalho esgotado em trabalho prometido.

Quer-me parecer que a imigração, em particular a brasileira, tem mitigado parte desta descoincidência do mercado de trabalho nacional. Mas o atual surto de emigração, com características únicas, agrava-a. Quando a educação e a formação logram acertar, a emigração distorce. A dificuldade no recrutamento de médicos e enfermeiros para o Serviço Nacional de Saúde constitui um exemplo. As famílias com que me relaciono, uma amostra não representativa, têm quase todas pelo menos um filho a trabalhar no estrangeiro. A geração mais qualificada de sempre, descendente da geração mais qualificada do passado, está a despedir-se do país. Portugal está a desperdiçar capital humano, ambição e energia. Grave, muito grave!

O envelhecimento demográfico acentua-se como uma variável de contexto que compromete a economia portuguesa. Em 2019, Portugal era, entre 37 países europeus, o terceiro com maior percentagem de população com 65 e mais anos de idade: 21.8%, a par da Finlândia e atrás da da Itália (22.8%) e da Grécia (22.0%). Entre 2009 e 2019, Portugal foi o sexto país em que este grupo etário mais aumentou (3,8 pontos percentuais contra 2.9 no conjunto da União Europeia – fonte: Eurostat). Este envelhecimento pesa, entre outras dimensões, na sustentabilidade da segurança social e na disponibilidade de força de trabalho. Nestas circunstâncias, importa expandir a disponibilidade laboral, reduzindo, eventualmente, a ocupação com tarefas, tais como a dedicação doméstica à primeira infância, através, por exemplo, da aposta na cobertura de creches. No caso da zona industrial acima referida, a abertura de uma creche propiciou uma maior “drenagem” de trabalhadores, sobretudo, do sexo feminino. Uma iniciativa positiva tanto para as empresas como para os trabalhadores.

Para combater estes e outros custos de contexto, os decisores parecem não vislumbrar outra solução a não ser o recurso à contenção dos salários, à precariedade e à compressão, ao encolhimento, das carreiras. Para o meu entendimento, suspeito, esta é a maior praga da economia portuguesa, o maior custo de contexto. Retomando o artigo “Lamento político 1: Os salários nos sectores público e privado em Portugal e na EU” (https://tendimag.com/2022/01/11/lamento-politico-1/), no ano 2000, entre os dez países europeus considerados, Portugal é aquele que tem o salário médio mais baixo, tanto no setor público como no setor privado. O salário médio da Irlanda é três vezes superior ao português. Portugal destaca-se com o maior diferencial de salário médio entre os setores público e privado: mais 36.6%. Os baixos salários e o diferencial entre setores privado e público, pouco recomendáveis, corroem a competitividade e a produtividade das empresas, dos trabalhadores e do país. Recentemente, as estatísticas revelaram que uma proporção significativa de pessoas com emprego vive abaixo do limiar de pobreza. Não há motivo para tanta surpresa. Em Portugal, existem multidões de trabalhadores que não ganham sequer para a sua reprodução antroponómica, para falar à maneira de Daniel Bertaux (Destins personnels et structure de classe: Pour une critique de l’anthroponomie politique, Paris, Presses Universitaires de France, 1977), ou para a reprodução da sua força de trabalho, como diria Karl Marx. Esta enormidade não pode ser benéfica para a competitividade das empresas e a qualidade de vida dos cidadãos. Compostas por trabalhadores. a produtividade e a competitividade das empresas dependem da qualidade, mobilização e motivação do seu capital humano. Além de baixos, os salários comprimem-se em demasia: pouca amplitude, pouca variação e pouca dispersão. No ano 2000, o desvio-padrão da distribuição dos salários/hora no setor privado era o mais baixo do conjunto dos países da então União Europeia (1,6 contra, por exemplo, 4,1 em França). Não só se ganha menos como são menores as perspetivas de progressão. Nas últimas décadas, esta tendência para a compressão tem-se acentuado, sobretudo, no sector público. A categoria dos professores oferece-se como exemplo: os salários reais baixaram e a sua distribuição comprimiu-se; a carreira encolheu e a espera aumentou. Sobe-se menos, com mais dificuldade e mais devagar. Para cúmulo, o prestígio e a autoestima degradaram-se, fenómeno para que alguns governos contribuíram, sem que ninguém tenha lucrado. Uma das consequências está à vista: a profissão perdeu atratividade. Resulta, mais uma vez, uma descoincidência entre a procura e a oferta de emprego. Atendendo ao envelhecimento da classe e respetiva reforma, os governos vão-se debater, nos próximos anos, com sérias dificuldades em recrutar os professores exigidos pelo sistema de ensino. Aos médicos e aos enfermeiros, juntam-se os professores.

A educação e a saúde são serviços em que, comparativamente, Portugal não desmerece. O respetivo desempenho afirma-se aceitável, justificando, inclusivamente, num ou noutro aspeto, algum motivo de orgulho, por exemplo o sucesso no estrangeiro dos diplomados pelo ensino nacional. Esta avaliação vale para o presente, justifica-se, porém, alguma apreensão quanto ao futuro próximo, mormente no caso da saúde. A educação não para de se debater com um problema crónico: se é ponto assente que o país carece de reformas, a educação padece de reformismo permanente. A cada ano, quando não a cada mês, alteram-se as regras, os procedimentos, os objetivos e os projetos. A educação parece o laboratório do reformismo infantil do Estado. Poeira, que nunca assenta, com prejuízo da consolidação e da estabilidade desejadas para o sistema. Um excesso quase delirante de benchmarking, experimentalismos pedagógicos, sobreaquecimento administrativo, heteronomia e protagonismos políticos. Esta proliferação de minúsculos enxertos e inovações resulta desgastante. A educação parece a nossa folle du logis. Creio chegada a altura de proporcionar algum apaziguamento ao sistema de ensino, de dar repouso a este Sísifo pátrio. Na saúde, em particular no Sistema Nacional de Saúde, a escassez de recursos humanos, a saturação e a morosidade, objetivadas nas filas de espera, mais do que comprometer o presente, erguem-se como um presságio deveras inquietante para o nosso futuro comum.

A saúde e educação suscitam uma mesma reserva. Ao contrário do que estipula a Constituição, não têm sido, cada vez menos acessíveis e mais onerosas, “tendencialmente gratuitas”. O universalismo e a igualdade resumem-se a uma promessa sempre adiada. Quando iniciei a atividade profissional na Universidade, as propinas eram praticamente inexistentes. Hoje, estão bem longe de ser simbólicas. Uma família que dependa de um salário mínimo, mal se consegue restaurar, quanto mais financiar a frequência de um filho, provavelmente deslocado, num curso que cobra milhares de euros por ano. Também não é menos verdade que o direito à escolha do ato médico permanece uma quimera para a maioria dos portugueses.

À semelhança da saúde e da educação, o sistema de transportes, apesar da insuficiente e desequilibrada cobertura, não parece representar um obstáculo decisivo em termos de custos de contexto. A aposta exagerada na rede rodoviária compensa a fragilidade da rede ferroviária. Não obstante, o modelo português comporta alguns custos no futuro. Inscreve-se a contracorrente das opções da União Europeia (ver Livro Branco: Roteiro do espaço único europeu dos transportes, Comissão Europeia, 2011) e dificulta os compromissos de sustentabilidade ecológica entretanto assumidos. Em suma, não é amigo do ambiente. Por enquanto, este handicap não comporta custos de contexto para as empresas.

Se os sistemas de saúde, educação e transportes não se destacam pelos custos de contexto, o mesmo não se pode afiançar do sistema de justiça. Moroso e imprevisível, representa um desafio e uma ameaça para a vida, o funcionamento e a sobrevivência das famílias e, sobretudo, das empresas. O sistema de justiça ocasiona um dos mais graves custos de contexto do país. O recurso à justiça não é raro e pode ser crítico, especialmente em termos de custos de oportunidade. Muitas empresas contemplam serviços jurídicos. Morosa, hermética e imprevisível, a justiça é a tartaruga, o labirinto e a esfinge de Portugal. Não obstante, parece intocável. Sem questionar a dedicação e o empenho, estimo que, no que respeita à esfera pública, ganhava em ceder menos à mediatização e cuidar mais da autonomia que a Constituição lhe confere.

A burocracia é comumente invocada como um dos principais problemas da sociedade portuguesa. Embora o admita, reconheço que se distingue como um dos poucos domínios em que, nas últimas décadas, foram dados passos positivos. A informatização ajudou, bem como iniciativas tais como as lojas do cidadão e o cartão único. Alguns procedimentos simplificaram-se e a relação com o público parece ter melhorado. Mas há ainda caminho a percorrer. O acesso e a resolução dos problemas nem sempre brilham pela agilidade. Pode-se melhorar em termos de clareza das regras e dos procedimentos, acessibilidade, transparência, diminuição de informalidades, clientelas, mordomias, desvios e corrupção. Neste momento, não me parece que a burocracia seja o pior custo de contexto.

Chegou o momento de abordar a questão dos impostos e da carga fiscal. Ao contrário do que muitas vezes se sugere, a carga fiscal em Portugal, quando comparada com os países da União Europeia, não é muito elevada. De acordo com o Eurostat, a carga fiscal, constituída pela soma dos impostos e das contribuições sociais líquidas em percentagem do PIB, situou-se, em 2019, nos 36.8%, ocupando uma posição intermédia na série dos 27 países da União Europeia (ver gráfico 1), abaixo do valor do conjunto (UE27: 41.1%). A carga fiscal aumentou consideravelmente entre 1995 e 2015, passando de 31.4% para 36.8%, o quarto maior aumento nos países da UE27, apenas inferior à Grécia, à Bulgária e ao Chipre (ver Tabela 1). Honestamente, estes números não apontam para uma carga fiscal responsável, intrínseca e comparativamente, por um despropositado custo de contexto. O que merece, isso sim, uma avaliação criteriosa é o modo como a receita fiscal é repartida, distribuída e investida.

Mergulhei na atividade política em 1974. Fui responsável por um partido político no meu concelho de origem. Com outro concelho, foi o único do distrito em que o partido ganhou as eleições para a Assembleia Constituinte do dia 25 de Abril de 1975. Coincidindo com a minha partida para França, afastei-me da atividade política logo após o período conhecido como “verão quente”. Desde então, nem militante, nem sequer simpatizante explícito. Mas não existem vacinas nem imunidades absolutas. Atrevo-me a um ou outro despretensioso balanço.

O sector político (Presidência da República, Assembleia da República, Governo, poder autárquico, partidos políticos) também influencia os custos de contexto. Dispenso comentar. Limito-me a um breve apontamento.

Entre as propostas da presente campanha eleitoral destacam-se aquelas que respeitam à política fiscal: redução do IRC versus aumento dos salários. Caracterizam-se por serem propostas que se podem implementar por decreto: totalmente, a redução do IRC; parcialmente, o aumento de salários, mais direto e linear no sector público do que no sector privado. Estas propostas justificam dois ou três reparos. Antes de mais, não acredito que “se consiga mudar a sociedade por decreto” (Michel Crozier, On ne change pas la société par décret, 1979). Por outro lado, estas medidas não produzem fatalmente os efeitos desejados. Podem provocar efeitos perversos. O aumento de salários pode alimentar o crescimento do consumo, da inflação, das importações e saldar-se numa quebra efetiva do salário real. Tão pouco se sabe se o bónus da descida do IRC vai estimular as virtudes ou os vícios, muitos e entranhados, do tecido empresarial português. Não sei, portanto, qual vai ser, à partida, o efeito dessas medidas. Invejo quem saiba. São, no entanto, fáceis de formular. Basta quatro palavras: “vou baixar o IRC” ou “vou aumentar os salários”. Outro género de propostas exige mais fraseado. Não basta dizer vou melhorar o ranking da educação, a sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde, agilizar a justiça ou diminuir o impacto da poluição. Tem que se completar a proposta, adiantando como. Certo é que a diminuição do IRC ou o aumento dos salários implicam, automaticamente, uma transferência ou um corte da riqueza de todos em proveito de uma parte, seja esta empresária ou assalariada. Significa, também, que esse dinheiro transferido ou preterido deixa de estar disponível para investir, digamos, na saúde, na educação, na solidariedade social ou na fatura energética.

Quase não vejo televisão. Não tenho nada contra, mas dedico-me e concentro-me em outras atividades. Só assisti a uma ou outra passagem dos debates pré-eleitorais. Nem sequer a um único segundo do debate “decisivo” entre António Costa e Rui Rio. Entretido, passou-me a hora. Não me entusiasma a voz dos políticos; ainda menos a dos comentadores. Mesmo assim, acabo por reter algumas impressões.

Pelos vistos, as velhas dicotomias da economia política e da política económica, tais como investimento/consumo, rendimento/inflação, público/privado continuam no vento. Quando frequentei na Sorbonne, no início dos anos oitenta, um curso de mestrado em Política Económica, as aulas convenceram-me que essas oposições se tinham esbatido e que keynesianos e friedmanianos tinham aprendido alguma coisa com a experiência e uns com os outros. Tudo indica que não.

Enfim, o pouco que observei foi o suficiente para entranhar uma impressão deveras estranha. Parece que os poderosos e abastados deste país têm inveja dos pobres e dos excluídos! Precise-se, de passagem, que os traficantes não costumam ser pobres; antes, endinheirados.

Em jeito de conclusão, três dúvidas formuladas sob a forma de perguntas:

– Serão as empresas portuguesas, por si mesmas, não competitivas? Noutros termos: colocadas em condições semelhantes às congéneres dos países parceiros da União Europeia, permaneceriam não competitivas?

– Serão os assalariados portugueses menos produtivos? Noutros termos: colocados em condições semelhantes, como os nossos emigrantes, aos congéneres dos países parceiros da União Europeia, permaneceriam pouco produtivos?

– Será Portugal um país, no seu conjunto, não competitivo?

Excetuando um breve período na década de 1960, há séculos que Portugal não é um país competitivo.

Motivação

Parece que é preciso fazer-nos sentir mal para nos conduzir a praticar o bem.

Anunciante: Rama Foundation. Título: Motivations. Agência: Audacity. Direção: Jon Chalermwong. Tailândia, Dezembro 2021.

“The above “film, directed by Audacity’s Jon Chalermwong for Thailand’s Rama Foundation, is a bit tough to watch. But that’s exactly why it works. Chalermwong tells Campaign that the film, entitled ‘Motivations’, is based on real-life stories of young people who as young kids witnessed the deaths of loved ones, and then went on to pursue careers in medicine. If you feel like it’s difficult to look into their eyes as they realise a loved one is dead, imagine how difficult it would be for them to live through those moments. And if they decide to turn their tragedy into a career helping others, don’t they deserve decent equipment on which to train? That’s the argument the film makes, and Ad Nut expects it could be an effective one.   The foundation, which supports Ramathibodi Hospital, is accepting donations at www.ramafoundation.or.th. (campaign. Deadly moments lead to lifetimes of medical servisse: https://www.campaignasia.com/video/deadly-moments-lead-to-lifetimes-of-medical-service/474808)”.

Small Smile Blue

Not selfie as Mona Lisa. Photography by Conceição Gonçalves.

Um esboço de sorriso azul! Estou quase recuperado. Quase. Seis meses após o internamento nos cuidados intensivos, debato-me com hérnias, contraturas e dores por todo o corpo. As pernas e o equilíbrio ainda não se dão ao luxo de uma dança, nem sequer um blues arrastado. Nos próximos dias, entre ecografia, análises e consultas, repartidas por cinco especialidades, acumulo sete atos médicos. Continuo a fazer fisioterapia três dias por semana. Quase não saio de casa. Não é um queixume. Sinto-me bem, muito bem! Após vários anos sempre a piorar, melhorar todos os dias representa um alívio abençoado, um incomensurável prazer. Uma regeneração! Sinto-me confiante. Trata-se apenas de um alerta, um testemunho, às pessoas medicadas com lítio: prestem a maior atenção aos respetivos efeitos, mesmo quando os resultados das análises se mantêm no intervalo dos valores terapêuticos, como foi sempre o meu caso. Contanto invulgar, a intoxicação por lítio não é um acidente meigo. O lítio não consta dos metais queimados pelos nascidos das brumas (Brandon Sanderson. O Império Final. 2006).

Daniel Castro. I’ll Play The Blues For You. No Surrender. 1999.
Jessy Martens. That’s Why I’m Crying. That’s Why I’m Crying. 2007.

O arquiteto da ternura e as bolas de cristal

William-Adolphe Bouguereau. Compassion. 1897

Francisco de Assis, o “segundo Cristo”, abençoado com as cinco chagas, santo que abraçou a divindade na figura de um leproso e foi abraçado pela divindade despregada da cruz, reformador da devoção cristão, sobressai, não só pela ênfase na Paixão, mas também como o grande arquiteto da ternura: inventou o presépio. Vivemos tempos em que é particularmente oportuno evocar o franciscanismo. Faço votos que cada um possa abraçar, desta vez, o próximo na figura do menino Jesus.

Os anúncios Vive la magie des fêtes, da Air Canada, e The Biggest Gift, da Deutsche Telekom, convocam a figura da bola de cristal, uma variante do presépio. Encenam outros encantos que nos aguardam, do tamanho do nosso olhar e à escala das nossas mãos.

Distinguem-se, porém, num aspeto: no presépio, os nossos dedos podem percorrer os caminhos de serrim, molhar-se no lago e afagar as personagens de barro; nas bolas, o cristal materializa uma fronteira que impede a tangibilidade, os dedos embatem numa porta que não se abre. O presépio é marcado pelo toque e pela aproximação, a bola de cristal, pela visão e pelo confinamento. Trata-se de uma separação involuntária que cada anúncio, a seu modo, se propõe ultrapassar. Quer-me parecer que o motivo da bola de cristal se vai multiplicar nesta quadra natalícia como uma alegoria ou uma metáfora da nossa condição atual. Existe, todavia, um mundo em que as bolas de cristais, tantas e de tantos feitios, já não cabem. O mundo é o da comunicação social, e as bolas assumem, até à saturação, outra virtude: a previsão fantástica do futuro.

Marca: Air Canada. Título: Vive la magie des fêtes. Agência: FCB Toronto. Canadá, dezembro 2021.
Marca: Deutsche Telekom. Título: The Biggest Gift. Agência: DDB Budapest. Direção: Stina Lütz. Hungria, novembro 2021.

O Cristo leproso

Cristo na cruz, dito Cristo leproso, da leprosaria de Bajasse. Basílica de St Julien, Briioude (Haute-Loire).

A lepra assombrou a vida durante a Baixa Idade Média. Os leprosos eram confinados fora das coletividades. Há imagens que insistem em regressar. Acontece com o crucifixo dito do Cristo Leproso. A braços com uma nova pandemia, afigura-se-me que o nosso tempo ainda não encontrou um ícone com o alcance simbólico à altura deste Cristo Leproso.

“Existe na basílica de Saint-Julien de Brioude (Haute-Loire) uma imagem impressionante de Cristo na cruz comumente chamada o Cristo leproso. Esta obra, realizada para a capela da antiga leprosaria de Bageasse (fundada em 1161 por Odilon de Chambon), data do fim do século XIV. De tamanho maior que o natural, o Cristo é de madeira maruflada polícroma. A sua pele apresenta inúmeras alterações que, acrescentadas às inclemências do tempo, evidenciam a solidariedade do Salvador em relação a esta figura maior da pobreza que é o leproso da Idade Média (…) Segundo uma antiga lenda, um leproso ter-se-ia deitado sobre esta cruz implorando a cura e a doença se transferiu para a imagem esculpida. Independentemente do grau de historicidade desta lenda e da vontade do artista, este Cristo tornou-se conhecido por todos como o Cristo leproso” (Arnaud Montoux. Contempler Le « Christ lépreux » de Brioude: https://www.la-croix.com/Journal/Le-Christ-lepreux-Brioude-2018-02-10-1100912646).

No livro Pandémies – Des Origines à la Covid-19 (publicado em Abril pela editora Perrin, Patrick Berche escreve:

“Para separar os leprosos da comunidade, era necessário fazer o diagnóstico para distinguir a lepra das restantes numerosas infeções cutâneas tão frequentes naquele tempo. Os doentes suspeitos tinham que ser examinados por um júri, primeiro, eclesiástico, em seguida, médico, junto com os miseráveis. No séc. XIII, atribui-se uma importância decisiva aos sintomas neurológicos iniciais (insensibilidade, paralisias…). Na realidade, o isolamento não era absoluto. Os miseráveis não eram afastados à força. Eram advertidos daquilo que lhes era proibido, a que chamavam “defenses”: obrigação de dar o sinal e proibição de entrar nas igrejas e nas casas. Podiam circular pelo país desde que evitassem os centros urbanos. Fora da leprosaria, deviam trazer os seus atributos: a capa com capuz com um pedaço de tecido vermelho no peito, as luvas, o chocalho de madeira (“flabel”) para se fazer anunciar, a tigela para as esmolas, o bastão para não tocar em nada diretamente. As regras de sequestração foram aplicadas severamente nos séculos XII e XIII, sendo aliviadas no século XIV. Existiam leprosos errantes, muitas vezes expulsos da sua localidade de origem ou de um lazareto, oficialmente por motivo de distúrbios e insubordinação. Vagabundeavam, à procura de santuários com santos curadores. Encontravam-se frequentemente nas entradas das cidades, mendigando para sobreviver. Algumas vezes, grupos invadiam as cidades e instalavam-se na praça pública, no meio da multidão, onde a mendicidade era mais lucrativa mas onde, em contrapartida, as atitudes de rejeição eram as mais vivas.
Na Idade Média tal como na Antiguidade, pensava-se que a lepra era uma punição divina que afetava a alma e o corpo na sequência de um pecado. Apesar da sua exclusão do mundo, a atitude face aos leprosos permanecia ambígua. Temia-se o leproso que provoca repulsa e que é considerado um pária, à semelhança dos hereges e dos Judeus. É impuro e deve expiar as suas faltas. Ao mesmo tempo, é, de certo modo, uma dádiva de Deus. Tinha sido “distinguido”, sobremodo porque contraiu, por vezes, a doença por ocasião de uma peregrinação ao Oriente. Não é a imagem viva do Cristo sofredor? Isto é recordado pela parábola de rico malvado e do pobre Lázaro. Representou-se, inclusivamente, Cristo na cruz como leproso, símbolo da redenção dos homens. Visível na basílica de Saint Julien de Brioude (Haute-Loire), este “Cristo leproso” é um grande crucifixo em madeira maruflada polícroma, datada de finais do século XIV e proveniente da capela da antiga leprosaria de Bajasse (Vieille-Brioude). Segundo a lenda, um leproso ter-se-ia deitado sobre a estátua implorando a cura: a doença ter-se-ia transferido para a estátua, uma espantosa metáfora do contágio da lepra” (Patrick Berche, livro Pandémies – Des Origines à la Covid-19).

Cristo Leproso. Brioude. Detalhe.

Aproveito para lembrar dois episódios da religião cristão. Cristo cura dez leprosos, mas apenas um regressa para lhe agradecer. São Francisco sente-se impelido a abraçar um leproso, que, afinal, era uma encarnação de Cristo. O Cristo leproso condiz com a postura franciscana que vigorava na Idade Média.

Sensibilidades da sensibilização

NABS.

Desde sempre conotada com a área da economia, a publicidade tornou-se refém da sua própria vitalidade neste campo. Contudo, o seu contributo no domínio das questões sociais e ambientais tem vindo a aumentar. E parece não existir, ainda, um espaço de reflexão e de legitimação. Apesar disso, a publicidade de carácter social tem-se desenvolvido na directa proporção de questões como o marketing social e a responsabilidade social das empresas, temas de crescente actualidade no espaço comunitário e mundial (Sara Teixeira Rego de Oliveira Balonas, A publicidade a favor de causas sociais. Evolução, caracterização e variantes do fenómeno em Portugal. Tese de Mestrado Ciências da Comunicação. Novembro, 2016).

01. Marca: Banco Espírito Santo. Título: BES Ronaldo – Conta Rendimento CR 3,25%, Agência: BBDO Portugal. 2009.

A publicidade de carácter social, de sensibilização, conhece um franco crescimento. Nas duas vertentes: uma primeira que envolve a “responsabilidade social” das empresas, em que a marca se associa à causa social,  e uma segunda que se cinge apenas às causas sociais propriamente ditas. Em ambas as modalidades, sobressai o recurso à fantasia (e.g. animação, ficção, objetos ou animais) ou à “idolatria” (e.g. estrelas do desporto, da comunicação social ou do espetáculo). Apostam na adesão estética, emocional e, em particular, não-lógica. Por ação não-logica, entende-se (Vilfredo Pareto, Tratado de Sociologia, 1916) a prática que consiste em recorrer a uma sumidade num dado domínio como referência noutro a que é alheio, por exemplo, um astro de futebol como conselheiro da bolsa. O princípio é simples: se uma pessoa é boa numa esfera espera-se que o seja nas demais. Na linguagem da literatura de fantasia, trata-se de uma transferência da aura do ídolo, por exemplo, do Cristiano Ronaldo, o máximo em tudo, para o produto, por exemplo, o Banco Espírito Santo (ver anúncio 1).

Os anúncios com figuras públicas comportam o risco de resultar mais notório o embaixador do que a embaixada, de a figura que dá a cara ofuscar tanto a campanha como o produto ou a entidade promotora. Atente-se na conclusão deste estudo realizado pela NOVADIR, em 2007:

“Segundo esta sondagem realizada pela Novadir, a campanha de sensibilização “O Cancro da Mama no Alvo da Moda” (promovida pela Associação Laço com o apoio da Roche e da Lanidor e envolvendo diversas figuras públicas) e a campanha “Sensibilização para Deixar de Fumar com Diogo Infante” (promovida pela Pfizer e Sociedade Portuguesa de Pneumologia), são claramente as mais recordadas, quer pela classe médica quer pela população.

A campanha “O Cancro da Mama no Alvo da Moda” é a mais recordada espontaneamente, obtendo um índice de recordação similar quer junto da população quer junto da classe médica (15%). Já a campanha “Sensibilização para Deixar de Fumar”, a 2ª campanha mais recordada, obtém um índice de recordação espontânea consideravelmente mais elevado junto da classe médica do que junto do público em geral (14% e 8%, respectivamente, recorda-se desta campanha).

A campanha “Passa a Palavra”, que visa sensibilizar a população em geral para o cancro do colo do útero (doença que vitima anualmente cerca de 15.000 mulheres na Europa e 378 mulheres em Portugal), também protagonizada por uma figura pública (Júlia Pinheiro) tem um nível de recordação espontânea de 8% junto dos médicos inquiridos, enquanto que este índice é de 4% para a população geral (…)

São várias as “figuras públicas” que no dia-a-dia “são a cara” de diversas campanhas de sensibilização social. De acordo com esta sondagem realizada junto da população, Júlia Pinheiro e Diogo Infante são as figuras públicas associadas a estas campanhas de maior notoriedade junto dos portugueses (17% e 16%, respectivamente). Já para a Classe Médica, são Diogo Infante e Rosa Mota as “figuras” mais recordadas.

Esta recordação das “figuras públicas” coexiste com uma “associação confusa” face às campanhas que protagonizam. Júlia Pinheiro, figura mais recordada pela população, obtém indices de “recordação confusa” muito elevados: 88% dos inquiridos que se recordam da participação da Júlia Pinheiro nestas campanhas associa, incorrectamente, a sua participação à campanha do “Cancro da mama no alvo da moda” e apenas 37% a associa correctamente à campanha que protagoniza – Passa a palavra (Cancro Cólo do útero).” (Marktest. O impacto das campanhas de sensibilização com figuras públicas: https://www.marktest.com/wap/a/n/id~f02.aspx).

02. Anunciante: National Advertising Benevolent Society (NABS). Título: This Job Can Break You If You Let It. Agência: Cossette. Direção: Esward Andrews. Canadá, outubro 2021.

Nas campanhas que convocam ídolos pode, portanto, ocorrer uma “confusão” entre a estrela e o estrelado, o embaixador e a embaixada. O público pode reter mais o Cristiano Ronaldo do que a marca Banco Espírito Santo; as bolachas que dançam o French Can Can do que a campanha This Job Can Break You If You Let It, da National Advertising Benevolent Society (NABS), do Canadá (anúncio 2).

03. Anunciante: Hop Hop Public Health. Título: Lil Sugar. Agència: Area 23/New York. Direção: Paulo Garcia. Estados-Unidos, outubro 2021.

Nem sempre a publicidade de carácter social envereda pela fantasia e pelo recurso a ídolos. Pode optar por se focar na realidade em causa: inundações em terra, plásticos no mar, crianças subnutridas, mulheres agredidas, náufragos no Mediterrâneo, vítimas da guerra, acidentes rodoviários, fumadores moribundos… A realidade substitui a fábula! Uma “realidade que nunca é “nua e crua”, mas sempre encenada, construída e trabalhada. Estamos perante um efeito de realidade!

04. Anunciante: Sandy Hook Promise. Título: Teenage Dream. Agência: BBDO New York. Direção: Henry-Alex Rubin. Estados-Unidos, setembro 2021.

Coloco quatro anúncios de sensibilização recentes. Nenhum vinculado à responsabilidade social das empresas. Apenas causas: os dois primeiros anúncios, de prevenção da saúde mental no trabalho (anúncio 2) e do açúcar disfarçado nos alimentos (anúncio 3), apostam no efeito fantasia; os últimos apostam no efeito de realidade alertando para as vítimas dos tiroteios nas escolas dos EUA (anúncio 4) e para a despistagem precoce do cancro da mama (anúncio 5).

05. Anunciante: Coppafeel!. Título: Know Yourself. Agência: Fold7. Direção: Jess Khol. Reino Unido, setembro 2021.