Fabricados na fábrica. Edição online.

“Dez anos depois, eis o livro “Fabricados na Fábrica” em “open access””. O autor é o meu colega Esser Jorge Silva. Corresponde à sua dissertação de mestrado em Sociologia, que tive a honra de orientar. Trabalhamos juntos numa empreitada de grata memória: a avaliação de Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura. Fabricados na Fábrica está acessível para descarga no seguinte link: https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/75057/1/10-Fabricados%20na%20Fabrica.digital.pdf?fbclid=IwAR2K-zCyHhphCaLDW0zP4iiCygRszLd-BKOt86MftwBAB3KQUGE1njbsBHk.
Segue o pdf e o texto do Prefácio que tive o prazer de escrever.
PREFÁCIO
POR UM FIO: AMBIVALÊNCIA DAS REDES SOCIAIS
Revisitar o Vale do Ave é uma forma de lhe dar vida, mormente, se formos
guiados pelo olhar próximo mas lúcido de Esser Jorge Silva. Com a
Sociologia como companheira, cruzamos fábricas e campos e encontramos
trabalhadores, muitos na reforma ou desempregados. Trata-se, sublinhe-se,
de um reencontro. Com lugares, pessoas e memórias. Porque, sabemo-lo
desde a introdução, Esser Jorge foi operário na sua juventude. O seu olhar
não é o de um estranho. Também ele foi, até certo ponto, “fabricado na
fábrica”. Sabe o que é enrolar o corpo e o cérebro na cadência de um tear.
Mas também sabe o que é remendar a esperança com novelo da rotina.
Afortunadamente, o humano corre na seiva destas páginas. Quer-me
parecer que é quando o sociólogo descansa e o homem não sossega que o
livro atinge os seus momentos mais profundos. Às vezes, convém cansar
a ciência para que a realidade assuma algum protagonismo. Neste livro,
principalmente na primeira parte, Esser Jorge quase não dá repouso à
sociologia, mas concede-lhe, de vez em quando, alguma folga. É quando o
sociólogo e a sociologia se sentam a beber palavras calejadas pela vida, com
a vista a pastar pelos quintais, que o milagre do conhecimento acontece.
Atente-se nas entrevistas ao domicílio. Ganha a textura da vida e a espessura
do social. Reconhece-se o Vale do Ave.
Max Weber salientava que “não é preciso ser César para compreender
César”. Trata-se, naturalmente, de um truísmo, mas importa ressalvar que
para compreender César é preciso conhecer César, saber o que signifi ca ser
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César. Com a razão e com o coração. “Conhecemos a verdade, não somente
pela razão, mas ainda pelo coração”. O que vale para o Deus de Pascal vale
para a complexidade humana. Sentir o pulsar de uma investigação mais do
que um obstáculo epistemológico representa uma bênção cognitiva.
O Vale do Ave constitui uma realidade sui generis. Entre outros aspectos,
pelo modo de industrialização e pelo tipo de povoamento. As fábricas
dispersaram-se à procura de bolsas de trabalhadores e as populações
cresceram junto às fábricas. Formou-se, assim, uma confi guração social
que Esser Jorge compara a um lençol. Um tecido humano talhado pelo
molde fabril e alinhavado por relações de dependência pessoal. Relações
fi rmadas cara a cara, assimétricas mas recíprocas, não transitivas (se A
depende de B e B depende de C, A não depende necessariamente de C) e de
curto alcance geográfi co e social. Assim se nutrem e estreitam as relações
com os parentes, os vizinhos, os amigos, os colegas, os chefes e os patrões.
Estas relações raramente extravasam os limites da comunidade local. Este
jeito territorial de estar no mundo enraíza-se na fábrica, na casa, na família,
na vizinhança e pouco mais. As impressões digitais, os percursos de vida,
dispõem-se num padrão pautado pela proximidade. As pessoas crescem,
casam, criam os fi lhos, deslocam-se, mudam de trabalho, envelhecem neste
e para este horizonte quotidiano.
A vida tende a ser centrípeta. Tudo a todo o custo perto de casa.
Nomeadamente, o emprego e o futuro dos fi lhos. Este modelo de interacção
em rede com funda ancoragem local comporta virtudes inegáveis. Antes
de mais, a proverbial resiliência à adversidade. Durante um século, o Vale
do Ave resistiu às crises que abalaram o País. Tornou-se, aliás, um caso
digno de admiração e estudo. Nos anos oitenta, o Vale do Ave esteve na
mira da Comissão de Coordenação da Região Norte e de investigadores tais
como Álvaro Domingues, Teresa Marques ou Madalena Pires da Fonseca.
A malha, além de apertada, era consistente e fl exível. Não se tivessem
embrulhado as coordenadas do mundo e teríamos resiliência para muitos
anos. Mas a escala do mundo mudou. Liberalizou-se e globalizou-se, com
incidência local. O compasso dos dias já não se rege nem pelo toque do
sino nem pelo apito da sirene. E quanto mais uma comunidade se manifesta
especialmente adaptada a uma dada confi guração social maiores os riscos
acarretados pela sua crise.
Na órbita da fábrica, a mobilidade geográfi ca e profi ssional dos
trabalhadores do Vale do Ave era diminuta. Um gesto infi nitamente repetido
torna-se um refl exo. Quem durante uma vida se moldou a um posto e a um
lugar, de corpo e alma, abraça com muita difi culdade um novo destino. A
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rotina, com o tempo, inscreve-se nos corpos e os corpos, com o tempo, só
escrevem rotina. A situação agrava-se quando as habilitações literárias não
ajudam. Neste cenário, como conclui Jorge Esser, “o futuro torna-se mais
desconhecido, inimaginado, incerto e angustiante. Assemelha-se ao pisar
de um terreno movediço onde o equilíbrio se torna impossível até que uma
nova aprendizagem volte a alicerçar o indivíduo”.
Albertino Gonçalves