Melancolia aveludada

Gosto de escutar música. No trabalho e no lazer. Sou um melómano omnívoro. Aberto a quase todos os géneros e tendências, mas de cada apenas uma parte diminuta. A minha “discoteca” assemelha-se a um albergue espanhol com portas e janelas estreitas e filtradas. A maioria das músicas publicadas no Tendências do Imaginário tenho-as em casa. Escolho-as enquanto as escuto ou aleatoriamente enquanto percorro gavetas e prateleiras atolhadas com Cds e LPs. Tenho espírito de colecionador. Acumulo selos, moedas, pedras e minerais, picos paleolíticos, filmes, anúncios, vídeos musicais, imagens, ingratos e outras preciosidades que não vêm a propósito. Algumas relíquias e bastante desperdício.
Desta vez, o ponteiro da roleta deteve-se em Perry Blake, um cantor e compositor irlandês de culto. Uma voz e uma orquestração singulares, suaves, compassadas, melódicas e melancólicas. Seleciono quatro canções.
Sou viciado em música desde criança. Atrevo-me a resgatar mais um episódio de vida. Nos anos setenta, muitos jovens do Alto Minho e de Trás-os-Montes prosseguiram os seus estudos deslocando-se para Braga. O alojamento dispersava-se pela cidade, destacando-se, para os rapazes, o colégio D. Diogo de Sousa e, para as raparigas, o colégio, bem como o lar, Teresiano. Estava em voga a prática da boleia, um misto de poupança, aventura e bandeira ideológica. Por exemplo, nos regressos pendulares de fim-de-semana rumo às famílias do interior. Corríamos o risco de não chegar ao destino. Entre Braga e Melgaço, beneficiávamos de um último recurso: um autocarro, da Empresa Salvador Transportes, que circulava ao fim da tarde. Mas com a nossa gestão da mesada, faltava, amiúde, o dinheiro para o bilhete. O itinerário desdobrava-se por etapas (Vila Verde, Portela do Vade, Ponte da Barca, Arcos de Valdevez e Monção), comportava sítios de espera e possuía regras, por exemplo, o primeiro a chegar era o primeiro a embarcar.
Cruzo-me frequentemente, em Moledo do Minho, com colegas e amigos de águas passadas. Acordam episódios de vida. Zé Dias, meu conterrâneo, destila memórias:
“Um domingo à tarde, eu e o Abílio, íamos à boleia de Melgaço para Braga. Chegados a Ponte da Barca, caminhámos até ao melhor local para erguer o polegar. De longe, ficamos apreensivos porque já lá estava alguém. Mas logo nos alegrámos. Escarrapachado na erva, à sombra das videiras, com a tua inseparável grafonola [um aparelho portátil com gira-discos, leitor de cassetes e rádio, oferecido por um primo, proprietário de um comercio de eletrodomésticos]. Solitário, despreocupado, prazeroso, a ouvir música e a deixar passar os carros. Só podia ser o Tino, só podias ser tu!”
Quase nunca me recordo destas anedotas que me convocam. Desconfio: falácias da imaginação ou realidade partilhada? Não obstante, admito que podia ser eu, já naquele tempo, um devoto de Santa Cecília e um caso à parte, um cromo desaparafusado.