Penso Rápido

Red Cross. Band-Aids can't fix everythingComo ilustra o anúncio Band-Aids can’t fix everything, o penso rápido não é uma panaceia, na realidade, resolve poucos males. No século XVIII, acreditava-se que a sangria com sanguessugas era uma panaceia. Agora, não sei se a panaceia é o penso rápido ou a sangria (por corte ou por sanguessuga). Inclino-me a duvidar que o penso rápido e a sangria sejam uma boa medicina para as pessoas e seus países.

Anunciante: Red Cross. Título: Band-Aids can’t fix everything. Agência: Monkeystack. Direção: Troy Bellchambers. Austrália, Setembro 2013.

Neste artigo, o título é quase maior que o texto. Na freguesia da Faia, em Cabeceiras de Basto, a Festa de S. Tiago das Bichas foi, durante séculos, muito concorrida. No dia da festa, as pessoas mergulhavam as pernas no ribeiro para ser curadas pelas bichas, ou seja, pelas sanguessugas (sobre a Festa de S. Tiago das Bichas, ver Gonçalves, Albertino & Gonçalves, João, “Entre o Céu e a Terra: Festas e Romarias de Cabeceiras de Basto”, in Cabeceiras de Basto: História e Património, uma bela edição da Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto, 2013, pp. 188-203). A seguir à imagem da capa do livro, transcrevo um pequeno excerto relativo à Festa de S. Tiago.

Cabeceiras de Basto. História e Património

Livro: Cabeceiras de Basto. História e Património, Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto, 2013.

“Em que consiste a festa das bichas? A primeira pista é-nos facultada pelas memórias paroquiais de 1758: “Há ao pé desta igreja um ribeiro, em dia de São Tiago, que é o orago, concorre muita gente a tomarem bichas para sararem de várias enfermidades. E é tradição antiga que só naquele dia se achavam no dito ribeiro que se chama de S. Tiago” (CAPELA, 2003: 224). As pessoas da freguesia contam as histórias que os avós lhes contavam: antigamente, quando as pessoas tinham problemas no sangue ou outras doenças em que era necessário purificar o corpo, mergulhavam as pernas no estreito ribeiro que corre perto da igreja de S. Tiago. No dia do Santo, apareciam as sanguessugas que se agarravam às pernas dos banhistas e curavam varizes e coágulos, regenerando os corpos dos devotos.

Reza a lenda que as bichas aparecem apenas no dia de S. Tiago, muito embora a vida e a obra de S. Tiago nada tenham a ver com semelhante lenda. Pormenor que não obsta a que a memória da cura pelas sanguessugas se mantenha viva e festiva. Hoje, ninguém se aventura a mergulhar as pernas no ribeiro, mas a festa das bichas continua a realizar-se com dignidade todos os anos no último fim-de-semana de julho ou no primeiro de agosto, com missa, procissão, música e fogo-de-artifício no final.

Chama-se esta Paróquia vulgarmente Santiago das Bichas, porque em um regato, que por ela corre há muitas sanguessugas, e desde as primeiras Vésperas deste Santo até às segundas concorre a ele em romaria muita gente sã e enferma de vários males e uns mandam tirar estes bichos para os pôrem em si, outros metem as pernas na água e aferrando-se nelas lhes tiram quantidade de sangue, com que se acham melhor, e se atribui a milagre do Santo, não o pegar das sanguessugas, pois é seu natural, mas o obrarem tanto bem repentinamente” (COSTA, 1706, I: 151). Por sua vez, as Memórias Paroquias de 1758 especificam que as sanguessugas “só naquele dia se achavam no dito ribeiro que se chama de São Tiago” (CAPELA, 2009: 224). Se o Padre António Carvalho da Costa contempla na sua Corografia, de 1706, a festa de Santiago das Bichas é porque esta era importante.

O renome da festa de S. Tiago das Bichas não é de estranhar. A sangria é uma prática preventiva e terapêutica que remonta, pelo menos, ao Antigo Egipto. Hipócrates (460-370 a.C.) recomenda-a para as dores fortes do fígado e do baço, a pneumonia com febre e a apoplexia cerebral. No século XIII, é editada a obra «Regimen Sanitatis Salernitanum», ligada à escola de medicina de Salerno, da qual se extrai o seguinte poema:

“A sangria, aos olhos, dá novo lustro
Reanima a memória, esclarece o cérebro
Com doce calor, aquece as medulas
Apazigua o intestino e o ventre rebeldes
Acalma diluindo-o o estomago irritado
Concede aos sentidos refrescados, vigor e nitidez
E dá à voz uma suavidade agradável”[1]

A sangria, enquanto modo de equilibrar os humores internos, quase foi encarada como uma panaceia para todos os males. Uma das modalidades de sangria recorre a sanguessugas, animais que têm a particularidade de produzir uma substância anticoagulante chamada hirudina. A utilização de sanguessugas atinge o apogeu no decurso do século XIX. Para se ter uma noção da amplitude do fenómeno, registe-se que a França importou, no ano de 1833, onze milhões de sanguessugas. Por essa altura, a Alemanha exportava anualmente para os Estados Unidos cerca de trinta milhões de exemplares (JARDIN, 2005: 17).

Nesta perspectiva histórica, compreende-se a reputação da festa de S. Tiago das Bichas. Pela afluência e pelo motivo. No século XII, a escola de medicina de Salerno chamava a atenção para o calendário apropriado para as sangrias, aconselhando as horas, os dias e as estações mais propícias. Durante a festa de S. Tiago das Bichas ocorria uma conjunção extraordinária: um espaço, o ribeiro; um tempo, o período festivo; e um agente ocasionalmente abundante e eficaz, as sanguessugas. A cura milagrosa assenta nesta coincidência. Acontece ali, naquele momento, com aquelas bichas, por graça do Santo. Configura-se um triângulo simbólico com os seguintes vértices: generosidade divina, disponibilidade da natureza e carência humana. Os tópicos de uma visão do mundo.” (Gonçalves, Albertino & Gonçalves, João, op. cit., pp. 195-196).”


[1] Traduzido a partir de JARDIN, 2005: 11

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