Com o euro na garganta

O euro anda a fugir-me dos bolsos e a atravessar-se na garganta.

Desde a adesão ao euro, a taxa de crescimento do produto interno bruto desceu, com uma ou outra oscilação, de 3,2 (em 1999) para -1,5% (em 2011). Desde o ano 2000, a taxa não atingiu uma única vez o valor de 2% (Gráfico 1). Não sendo o mais acentuado, este é o decréscimo do PIB mais persistente desde 1960.

Gráfico 1Fonte: Eurostat

Com a adesão ao euro, perdemos duas opções cruciais da política monetária: a desvalorização da moeda e a fixação das taxas de juro. Isto não significa que ficamos sem política monetária; temos uma política monetária gizada à escala da União Monetária Europeia, mais precisamente, uma política monetária condizente com a realidade dos grandes países europeus, realidade diferente da nossa. Keynesiano por formação, não descuro Milton Friedman: os instrumentos monetários são decisivos na condução da política económica. Neste sentido, a intervenção na Grécia, na Irlanda e em Portugal pode ser encarada como uma “experiência”. Está-se a lidar com crises económicas e financeiras graves sem o auxílio dos instrumentos clássicos da política monetária. Estamos perante uma política neoliberal reciclada. Incide sobre o orçamento e apoia-se na iniciativa do governo, sobretudo em termos das ditas reformas estruturais. Mantém, no entanto, a tradicional luta contra o défice e a aposta no emagrecimento do Estado. O que lembra uma espécie de harakiri do Estado numa ópera trágica interpretada por uma troupe de governantes, peritos e bufões ansiosos.

Sem política monetária própria, um país expõe-se a ser palco de incongruências demasiado perniciosas devido às ilusões induzidas.

Gráfico 2 Fonte: Eurostat.

Nos primeiros anos do euro, até 2006, a taxa de inflação em Portugal e na Irlanda fixou-se acima da média europeia, ultrapassando anos a fio as taxas de juros fixadas pelo Banco Central Europeu. Esta distância foi particularmente acentuada entre 2001 e 2005 (Gráfico 2).

Gráfico 3. Endividamento das famílias

Gráfico 3 Fonte: Banco de Portugal, Relatório de Estabilidade Financeira, Nov. 2012.

Este desvio entre a dinâmica económica e a política monetária contribui para o embaratecimento do dinheiro, sem que tal se traduza necessariamente, como alerta Milton Friedman, num incremento da produção. Este cenário favorece a eclosão de um optimismo consumista alimentado pela ilusão de um aumento duradouro do poder de compra. O embaratecimento artificial do dinheiro e o optimismo consumista concorreram para a bolha do imobiliário na Irlanda e para o ritmo acelerado de endividamento das famílias em Portugal: o endividamento das famílias com a habitação, rubrica mais sensível, passou de menos de 60% do rendimento disponível, em 2000, para mais de 90%, em 2006 (gráfico 3).

De dois em dois séculos, Portugal perde independência: em 1580, para os Filipes de Espanha; a seguir às invasões francesas, para o Wellington e para o Beresford de Inglaterra; agora, para a União Europeia. Emprestam dinheiro e, por tabela, ajudam a governar, dando ordens. Ordens, não! Fixam metas e os caminhos para as alcançar: défice público, idade da reforma, vencimentos da função pública, legislação laboral, prestações sociais… Trata-se de uma intervenção, de uma tentativa solidária. Nunca antes se lidou com um desafio como o da Grécia, da Irlanda e de Portugal: conseguir uma quebra drástica do défice público sem recurso aos instrumentos da política monetária. Resta, pelos vistos, dosear a injecção com libertação controlada de empréstimos com um emagrecimento do Estado e da população. Caso não baste ou sobrevenham efeitos perversos, volta-se a tentar, com novas doses.

A compreensão de um fenómeno passa, frequentemente, pela escolha de uma palavra para o dizer. Portugal está a viver sob o signo da poda. A União Europeia quer e o Governo manda: poda aqui, poda ali, poda acolá. O mais rente possível. Porque se acredita que os países, os estados e as pessoas são como as árvores. Quanto mais severa for a poda, mais vigorosos serão os novos rebentos. Se for preciso, corte-se até às raízes. Vivemos tempos de grande poda!

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