Dentro e fora da imagem

Surpreender figuras a entrar e a sair do ecrã, como Alice no espelho, tornou-se uma banalidade com trejeitos pós-modernos: porosidade das fronteiras, fragmentação das personagens, instabilidade do espaço-tempo… Será que este contrabando, para dentro e para fora das margens, já existia no passado, digamos, há mais de seiscentos anos? Atente-se nestas duas imagens retiradas do Livro de Salmos de Franconia (Alemanha, cerca de 1250). A moldura pintada é, em ambas, ultrapassada. Num caso, pelo pé de Cristo, no outro, pelas orelhas do burro. Este “desrespeito dos limites” era prática corrente, entre outras razões, pelo efeito logrado: um efeito de volume.

Livro de Salmos de Franconia, Alemanha, ca. 1250.

Livro de Salmos de Franconia, Alemanha, ca. 1250.

Particularmente complexa e estranha, resulta esta imagem de fundo de página do Livro de Salmos de Luttrell (Inglaterra, ca. 1320-1240). Remete para a Ceia de Cristo. No centro da mesa, a pessoa que encomendou o livro bebe o cálice. Ele é o centro das atenções. Mas o que intriga é a percepção de que a mesa e os sete comensais configuram um quadro. Não se lhes vê, por exemplo, as pernas. Tal como nas imagens anteriores, há uma parte que transborda da moldura: o cotovelo do monge. Mas o que é realmente perturbador é que tudo se passa como se as pessoas que estão no interior do quadro estejam a ser servidas por criados que estão no seu exterior. Nada que Escher não compreenda.

Livro de Salmos de Luttrell, Inglaterra, ca. 1320-1240.

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