Os cavalos também dançam

“O cavalo, como todos sabem, é a parte mais importante do cavaleiro” (Jean Giraudoux, Ondine, 1959, Paris, Flammarion, 2016, Scène Deuxième).
Um pingo de humor cai sempre bem, até na melancolia. O anúncio The Cool Ranch, da Doritos, é uma paródia dos westerns. Assistimos a um duelo de dança em duas mãos. Primeiro, os cowboys, em seguida, os cavalos. A música de Ennio Morricone sublinha a dramaticidade heroica do momento. Quem ganha o dorito? Um cow-boy vale o que vale o seu cavalo. O primeiro cavalo, tipo Jolly Jumper, capricha; o segundo, tipo Rantanplan, faz o que lhe apetece: nada.
Vício
Segue o fruto do vício: o último artigo do Tendências do Imaginário do ano 2019.
Foi lançado, recentemente, um novo videojogo do Dragon Ball Z: Kakarot. No trailer, um jovem adulto recorda a sua relação com o Dragon Ball. Aproxima-se de um otaku, um fã obstinado. O trailer realça esse perfil. O protagonista imita os heróis e os seus gestos. Expõe-se, absorve e “reproduz”. O fenómeno é bom ou mau consoante as perspetivas. Para quem concebeu o trailer, parece desejável. Pessoalmente, não sei. Quando era pequeno, adorava os filmes, os livros e as brincadeiras de cowboys. Comprava livros usados, com ou sem quadradinhos, numa tabacaria do Largo dos Penedos, em Braga. Trocávamos livros de cowboys como quem troca cromos. A imersão não era menor do que face a um ecrã. Percorria quilómetros para ver uma série na televisão espanhola ou portuguesa: Bonanza, Jim West, Daniel Boone… Um western esgotava a geral do cinema Pelicano. Brincávamos aos cowboys, uma espécie de escondidas em que dois grupos se caçavam mutuamente e o toque era substituído pela visão: “mãos ao ar, vi-te primeiro”. No quintal, acertava com flechas feitas com varetas de guarda-chuva nas laranjas metamorfoseadas em índios. Cheguei a lutar com o travesseiro. Boa parte dos meus desenhos retratava cowboys. Tive pistolas de plástico e uma máscara de índio. Até falava com o sotaque dos atores norte-americanos. O cavalo era o meu animal de sonho. Um dia, o meu padrinho diz-me: – Vamos comprar um cavalo. Partimos para a Póvoa de Varzim. Deu as suas voltas e, a um dado momento, entrámos num edifício amplo que tinha cavalos. Falou com as pessoas do local. Regressou: – Só vendem os cavalos com as carroças. Respondi-lhe: – Assim não quero! É assim que se jardinam os sonhos das crianças. Em suma, tal como agora existe o otaku dos anime e dos mangá, eu era um otaku da coboiada. Teve efeitos? Naturalmente. A focagem é, por mais fantástica que seja, um estreitamento e um enviesamento do mundo. Se Armand Mattelard analisasse os livros, as séries e os filmes de cowboys, descobriria, como nas revistas da Walt Disney, falácias e perversidades. Existem eras, os anos cinquenta e sessenta foram a era dos cowboys; seguiu-se a era dos espiões e, um pouco mais tarde, a era dos anime e dos mangá. Há eras e eras, a dos cowboys coincidiu com a guerra fria. Ficaram-me marcas negativas? Tenho o corpo todo torto de andar a cavalo e quando aponto o dedo saem balas. Por acréscimo, fumo como os cowboys da Marlboro.
Vou festejar. Bom Ano!
A rosa do pensamento

O anúncio The Leap, da libanesa Ten Herbs, aborda um tema delicado. Assumimos o corpo, mas não todo. Persistem partes e funções que só são dizíveis graças a metáforas, sublimações e eufemismos. É o caso do aparelho digestivo. Se a alimentação se descobriu arte, a arte de comer, defecar releva de um vanguardismo deslocado, a arte de chocar. Se os anúncios da Benetton se celebrizaram por dizer o chique com choque, os anúncios, como o The Leap, dizem o choque com uma linguagem chique.
The Leap lembra os duelos finais dos filmes de Sergio Leone: Por um punhado de dólares (1964) e Era uma vez no Oeste (1969). Cada personagem espera, sem sair da sua posição, o desenlace. O alívio ou a morte.
Gosto que uma realidade me lembre outra. A propósito e a despropósito. Sem genealogia, algoritmo, função, ética ou poética. A lembrança, a associação de ideias, é um pouco como a rosa de Angelus Silesius: “A rosa é sem por quê. Floresce porque floresce”.
Anúncios do coração

O anúncio The Desert Cowboys, da Skoda, é uma paródia dos westerns de Sergio Leone. É deveras gratificante ver realizadores investir em pormenores em que poucas pessoas reparam: o anúncio foi rodado no Deserto de Almeria, em Espanha, à semelhança do filme Era Uma Vez no Oeste (1968). Parafraseando Shakespeare, um pormenor, um pormenor, o meu reino por um pormenor! O anúncio aborda o isolamento e a desertificação. Uma realidade premente. Pelos vistos, a Skoda pode ajudar a encurtar distâncias. Os “anúncios do coração” estão na moda. Nem sempre foi assim. Esta irmandade da salvação é recente. Empenhado e esmerado, o anúncio cumpre o que promete.
Quem diz Sergio Leone diz Ennio Morricone, retomado na música do anúncio. Segue uma versão orquestrada da música do filme Era uma vez no Oeste, dirigida pelo próprio compositor. Goste-se ou não. O gosto está em vias de libertação: da vanguarda ou da retaguarda? Das elites ou das massas? A presumida “indústria cultural” não se consubstanciou na desqualificação da criação cultural. Antes pelo contrário, a criação cultural de qualidade parece tender, ao arrepio das hierarquias e dos nichos, a ser inclusiva. O “inacesso” aos bens culturais já não é o que era. Sem barbarização do gosto, nem democratização da cultura. Uma falácia tangível.
Absurdo ternurento
Os heróis ecologistas não têm a vida fácil, arriscam acidentes insólitos. Mas Melissa viaja segura num Kia. Os acidentes do anúncio Hero’s Journey são catástrofes absurdas, tão absurdas que se tornam risíveis. O anúncio do Kia Niro lembra os cartoons. Por exemplo, o Bip Bip (The road runner), de Chuck Jones ou A corrida mais louca do mundo (Wacky races) e Tom e Jerry, ambos criados por William Hanna e Joseph Barbera. Opto pelo absurdo ternurento de Tex Avery: Drag-a-long Droopy (1954).
Marca: Kia. Título: Hero’s Journey. Agência: David&Goliath. Direcção: Matthijs Van Heijningen. USA, Fevereiro 2017.
Tex Avery. Drag-a-long Droopy. 1954.
O homem e o touro

Sculpture, outside EU offices in Brussels, of Europa riding the bull .
Um homem montado num touro, em queda livre. Eis uma ideia preciosa. Insolitamente, o homem devora uma barra Butterfinger enquanto cai vertiginosamente. Um bom pretexto para imagens fabulosas, numa paródia do rodeo e do paraquedismo. O voo do touro e do cavaleiro lembra o rapto de Europa por Zeus que, disfarçado de touro, desliza sobre a água com Europa no dorso. Carregar na imagem para aceder ao anúncio.
Marca: Butterfinger. Título: Cowboy. Agência: Gps Advertising. Direcção: Armando Bo. USA, Fevereiro 2016.
Cowboy, da Butterfinger, integra o lote dos cinquenta anúncios do Super Bowl. Foi dirigido pelo argentino Armando Bo, figura consagrada do cinema e da publicidade. Em 2014, ganhou o Óscar do melhor argumento original, pelo filme Birdman. Costuma recorrer a paródias surpreendentes, desligadas, por vezes, dos produtos publicitados. Voltaremos, em breve, ao trabalho de Armando Bo. Comecemos por acrescentar o anúncio brasileiro Great Preparation, da Budweiser, uma paródia do western Spaghetti e das artes marciais orientais.
Marca: Budweiser. Título: Great Preparation. Agência: Africa. Direcção: Armando Bo. Brasil, 2012.