A parábola da garrafa de plástico

O que uma pessoa não faz por uma garrafa de plástico! Só um prodígio consegue resgatá-la do fundo de uma lixeira.
“Qual é a mulher que, possuindo dez dracmas e, perdendo uma delas, não acende uma candeia, varre a casa e procura atentamente, até encontrá-la? E quando a encontra, reúne suas amigas e vizinhas e diz: ‘Alegrem-se comigo, pois encontrei minha moeda perdida’” (Lucas, 15).
Talvez seja uma boa ocasião para investir em garrafas de plástico, porque em breve vão ser peças de museu leiloadas na Sotheby’s. Atente-se: “by 2025, Sodastream will eliminate 67 billion single-use bottles on this planet. So we won’t have to go looking for a new one”. Afigura-se mais fácil ver-se livre das garrafas de plástico do que dos “endemoninhados gadarenos”:
Quando ele chegou ao outro lado, à região dos gadarenos, foram ao seu encontro dois endemoninhados, que vinham dos sepulcros. Eles eram tão violentos que ninguém podia passar por aquele caminho.
Então eles gritaram: “Que queres conosco, Filho de Deus? Vieste aqui para nos atormentar antes do devido tempo?”
A certa distância deles estava pastando uma grande manada de porcos.
Os demônios imploravam a Jesus: “Se nos expulsas, manda-nos entrar naquela manada de porcos”.
Ele lhes disse: “Vão!” Eles saíram e entraram nos porcos, e toda a manada atirou-se precipício abaixo, em direção ao mar, e morreu afogada.
Os que cuidavam dos porcos fugiram, foram à cidade e contaram tudo, inclusive o que acontecera aos endemoninhados.
Toda a cidade saiu ao encontro de Jesus, e, quando o viram, suplicaram-lhe que saísse do território deles” (Mateus 8: 28-34).
Amanhã, dia 2 de Fevereiro, será o Super Bowl, o delírio da publicidade.
As virtudes do funil

01. Unknown, Inuentio sanctae Crucis, Illumination from the Passionary of Weissenau (Weißenauer Passionale) (1170-1200), Codex Bodmer 127, fol. 53v.
Com menos anos do que dedos nas mãos, pasmava na feira a ver o vendedor de banha da cobra. Numas bancas, alguns recipientes de vidro com uma espécie de massa longa (mafaldine) a que chamava “bicha solitária”. O seu vozeirão dava exemplos dos pavores que estes parasitas provocavam nos intestinos. Para alimentar o monstro, as vítimas sentiam fome e definhavam a olhos vistos. Para grandes males, pequenos remédios. Bastam dois frascos com uma poção milagrosa para matar o bicho e a fome. Duas pessoas apressam-se a comprar, secundadas por parte da assistência. Naquele tempo, eram mais as pessoas com fome do que com fastio. Talvez fosse da bicha solitária. Este é um dos esquemas básicos da publicidade. Criar necessidades, pelo imaginário mas com fio de terra. Como diria Karl Marx, a oferta produz a procura. Não digo que os anúncios actuais são herdeiros dos charlatões das feiras, mas também não desdigo.
Marca: SodaScream. Título: It’s time for a change. Estados Unidos, Novembro 2018.
Afirmam que existe uma nova ilha composta por lixo. Os oceanos e os rios estão atafulhados de lixo, os lugares onde as pessoas residem, também. Como combater a catástrofe? O anúncio It’s time for a change, da SodaStream, sugere deixar de beber água engarrafada em embalagens de plástico e passar a beber soda. Com mais de 6 milhões de visualizações no site da marca, o anúncio está a alcançar um enorme sucesso.
Como vamos beber a soda? Com palhinhas ou copos de plástico? São o problema. Com copos de madeira ou de papel? São desflorestadores. Com copos de vidro? São de reciclagem rápida, mas requerem detergentes. Tecnologicamente avançada, a nossa sociedade tem a poção mágica para quase tudo. Se existe, digitaliza-se! Por que não beber soda em copos virtuais! A digitalização é amiga do ambiente, apenas polui os neurónios.

03. David Teniers the Younger.The Temptation of Saint Anthony (detail) (c 1650).
Restam duas soluções. A primeira consiste em beber soda diretamente da fonte. Sem copo, nem palhinha. Na aldeia, para beber às escondidas, sorvia-se o vinho da torneira da pipa. Outra solução: não beber nem água engarrafada nem soda. Beber água da chuva, graças a um funil. Aos primeiros pingos, funil à boca e ergue-se a face. Regressado o sol, o funil, assente na cabeça, serve, agora, de chapéu. Esta solução já foi patenteada há, pelo menos, oito séculos (Figura 01).
Os funis de Hieronymus Bosch
Arcanjos e anjos da guarda
Arcanjos, anjos da guarda, anjos caídos e anjos papudos… Não gosto de nenhuns, especialmente dos arcanjos e dos anjos da guarda, tão empenhados em nos salvar. Na publicidade, os arcanjos estão em voga: fundações e institutos públicos zelam por nós.
Neste prenúncio de um suposto novo Apocalipse, à Peste, à Guerra, à Fome e à Morte, acrescentam-se a soda, o álcool, o tabaco, o sexo, a circulação rodoviária e a obesidade. Os arcanjos e os anjos da guarda reforçam-se com a multiplicação de estudos e campanhas. Pretendem salvar-nos de nós próprios (expressão funesta na história da humanidade). Mas a batalha é incerta e as vitórias, frouxas.Não faltam, porém, recursos e argumentos:
– hinos e cânticos
– Imagens chocantes;
– intrusão na intimidade alheia;
– discriminação, estigmatização e culpabilização;
– exibição de monstruosidades;
– banalização da censura;
– suporte da lei e da ordem;
– profecia (vai ter uma morte lenta e dolorosa);
– ciência, medicina e estatísticas;
– pragas e ameaças (se continuar, vai ter várias mortes).
Em suma, a arte da lixívia na qualidade de vida e na limpeza civilizacional.
Anunciante: Center for Science in The Public Interest TV. Título: Change de Tune. Agência: Lumenati. USA, Junho 2015.
O anúncio Change the Tune, do CSPI TV (Center for Science in the Public Interest TV) foi publicado a semana passada. No que respeita às bebidas com soda, parece ter chegado a hora de mudar o disco. Este anúncio assemelha-se ao anúncio Unsweetened Truth, da American Legacy Foundation / Truth, de 2011. Ambos os anúncios são muito bons, no género, e recorrem a testemunhos presenciais de vítimas, demarcando-se de anúncios de sensibilização que optam pela alegoria ou pela animação (eg, as campanhas de prevenção da sida). A espetacularização das vítimas (desfile, coro), corre o risco de transformar pessoas reais em bonecos imaginados. Georg Simmel e György Lukacs chamam reificação a este fenómeno. Numa sociedade de espectáculo global, também se podia chamar, com alguma irreverência, muppetsation.
Anunciante: America Legacy Foundation/Truth. Título: Unsweetened Truth, Agência: Arnold, Boston. Direcção: Baker Smith. USA, Março 2011.