Ciência portuguesa e guitarra espanhola

Johannes Vermeer, Young woman playing guitar. 1672.
“Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento (…) O homem é feito visivelmente para pensar; é toda a sua dignidade e todo o seu mérito; e todo o seu dever é pensar como é preciso” (Blaise Pascal, Pensamentos, 1670. Artigo XVIII. Grandeza do homem: XI e XII).
Estou a introduzir dados pessoais numa plataforma nacional de governo da ciência. Já não o fazia há muitos anos. Quando uma instituição me desilude aspiro à ignorância mútua. Nenhum contato, nenhuma solicitação, nenhuma necessidade. Prefiro o prejuízo à vénia. Espera-me canseira para alguns dias. “Pelo coletivo”, de proximidade, que respeito. Ressonâncias do poder. Acompanho a penitência com guitarra espanhola.
E tudo o vento devolveu

Diga-o com música!
Returns to Cracow e Schindler’s List Theme, do filme A Lista de Schindler, e Lara’s Theme, do filme E tudo o vento levou (1939), interpretados por Itzhak Perlman.
À porta do inferno

Bruno Aveillan produz uma curta-metragem, Divino Inferno, dedicada à Porta do Inferno, de Auguste Rodin. Uma confluência de dois artistas do sobre-humano. Uma esteticização do sofrimento extremo e da resistência visceral. O desespero, a travessia arrepiada.
Seguem três vídeos. 1) Divino Inferno; e 2) Humans, ambos de Bruno Aveillan; e, para complemento, 3) Auguste Rodin – The Gates of Hell, um documentário do Canal Educatif à la Demande (CED).
Maternidade desportiva

Guerreiros e atletas. Espartanos. Olímpicos. Semideuses e ídolos. Desde a Antiguidade, que a proeza exalta os seres humanos. Pela obra e pela devoção. À semelhança dos pódios gregos, muitos anúncios publicitários parecem escaparates elitistas de heroínas e heróis. No anúncio The Toughest Athletes, da Nike, as mulheres atletas, mães ou grávidas, são fortes e resistentes. O segredo provém do uso de roupas desportivas Nike. No contexto atual da natalidade, este anúncio é oportuno.
“Dados do Instituto Nacional de Estatística dão conta de que, em 2020, houve menos 2,6% nascimentos e mais 10,2% óbitos do que em 2019. Em 2020, nasceram menos bebés em Portugal e o número de óbitos cresceu muito, o que fez com que o saldo natural do país (a diferença entre o número de nados-vivos e de óbitos) continuasse negativo, pelo 12.º ano consecutivo, e em valores superiores aos anteriores. Os dados, ainda preliminares, são do Instituto Nacional de Estatística (INE) e foram revelados esta terça-feira (Morremos mais e houve menos nascimentos: saldo natural em Portugal cada vez mais negativo. Público, 16 de março de 2021: https://www.publico.pt/2021/03/16/sociedade/noticia/morremos-menos-nascimentos-saldo-natural-portugal-negativo-1954621).
“Somos os que aqui estamos”

Nas últimas décadas, o despovoamento foi monstruoso. É verdade que as migrações sempre existiram. Mas não tão desequilibradas. É difícil inverter a tendência. Despovoamento gera despovoamento: problemas de escala, de mercado, de emprego, de natalidade e de envelhecimento. A meu ver, despovoamento rima com fracasso político. Nem tudo neste País tem que ir a banhos. A intervenção política não se pode confinar à ponta da língua e à disponibilização de cuidados paliativos. Convém estancar a necrópole das aldeias de Portugal. As pessoas, essas, não desistem. Resistem à inércia de partir. Para o estrangeiro, para as cidades, para onde calha, com a promessa de uma vida melhor. Existe a tendência para imaginar a vida no interior e nas margens do País como um entorpecimento ou uma hibernação. Uma espécie de presépio. É uma ilusão ótica. Face à adversidade, as pessoas abraçam a vida, multiplicam os projetos e somam iniciativas. Pode faltar investimento de Estado, sobra vontade, criatividade e esforço humano. A metade da população que partiu não é melhor do que a metade da população que ficou.
Congratulo-me com o anúncio espanhol Yo Me Quedo, da empresa Correos Market. Porque é raro um anúncio dedicado ao despovoamento e pela aposta na sobriedade estética, por exemplo, os enquadramentos são naturais, bem como as roupas dos entrevistados.
Amanhã é sempre longe demais
Estamos a destruir o planeta. “Somos a primeira geração que está a destruir o planeta e a última que o pode salvar”. Todos sabemos. Mas do saber ao decidir vai um passo, um passo que não damos. O homem é um animal capaz de se auto castigar. Se o presente foge, o “amanhã é sempre longe de mais” (Radio Macau).
Resistência. Amanhã é sempre longe demais. Ao vivo em Lisboa. Cover dos Radio Macau.
O homem é dado à descrença. Não fala a língua do poder, nem o poder fala a língua dele. Quem muito fala, fica rouco. E a mão cheia de poderes globalizados, em que cena do anúncio aparecem? A este nível, o homem comum sente-se tão impotente que poucos sonhos o mobilizam e muitos pesadelos o atormentam. Mas a propaganda e a publicidade insistem que o mundo está nas nossas mãos! Recomecemos: “Somos a primeira geração que está a destruir o planeta e a última que o pode salvar”. Quem está a destruir o planeta? A nossa geração? A nossa geração tem as costas largas. Cumpre-lhe, naturalmente, fazer o que estiver ao seu alcance. Salvar o planeta? Em 2017, a China (27,6%) e os Estados Unidos (15,2%) emitiram 42.8% do dióxido de carbono do planeta. Mas estou convencido que a nossa geração, com a tal responsabilidade que lhe cabe,vai converter os fariseus e salvar o planeta.
Consta que o anúncio Fight for your world, da WWF, é a primeira grande encomenda da agência Uncommun Creative Studio. Felicito-a! O trabalho é notável. Esmerado. E o texto, eloquente e incisivo.
Tanya Steele, chief executive of WWF UK, said: “The decisions made over the next few years will determine the future of our world and the wildlife we share it with. We have a window of opportunity to act and show we care – as citizens, as consumers and as individuals. That opportunity starts now and leads up to the end of 2020, when global decisions on biodiversity loss, climate change and sustainable development will be made. This window is rapidly closing. The time to fight for your world is now.”
Nils Leonard, co-founder of Uncommon, added: “If we could watch our planet in this second, and see our impact upon it in real time, it would scare us. It would be the understanding that every choice we make, no matter how small it might seem, has a huge impact. These little choices are how we fight the biggest battles, they are the way for all of us to make a difference. Not making a choice, is a choice: in every decision, of every day, you are either for the world or against it.” (campaign: https://www.campaignlive.co.uk/article/wwfs-bold-ad-uncommon-urges-people-fight-world/1497550).
Anunciante: WWF. Título: Fight for your world. Agência: Uncommun Creative Studio. Direcção: Daren Rabinovitch. Reino Unido, Outubro 2018.
Até que a morte nos separe? (revisto 12.08.2022)

Na Internet, a escultura contemplada reproduzida na figura 1 de Gustav Vigeland é quase sempre designada com o seguinte título: “Até que a morte nos separe” (Till Death Do Us Part). A designação original é, no entanto, A Morte Separando um Homem e uma Mulher” (Death Parting Man and Woman). A ressonância semântica é praticamente a mesma: a separação pela morte.
Apetece desconversar. Retomemos o olhar. A escultura apresenta a Morte a interpor-se entre um homem e uma mulher abraçados. Lembra as danças macabras em que a Morte entremeia os vivos não permitindo que se toquem. Mas o casal ainda não está separado nem a morte evidencia uma pose de triunfo. O casal persiste abraçado e a morte concentrada no seu propósito. Será que o Amor pode resistir à Morte?

Alude Camões àqueles “que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando. “Todos resistimos à morte, uns valerosamente, outros nem tanto”. Camões sabe que não são apenas as obras valerosas que “nos vão da lei da morte libertando”, importa não esquecer o Amor. No Triunfo da Morte, de Pieter Bruegel o Velho, ninguém escapa à devastação de Morte. Ninguém exceto um par de namorados, alheados da tragédia envolvente: concentre-se o olharver canto inferior direito do quadro (Figura 11). Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Pedro e Inês, “da lei da morte se libertaram”.

As obras de arte prestam-se a várias interpretações, por vezes, opostas. São polissémicas. Afinal, quem vence? O Amor ou a Morte? Depende do ponto de vista, da perspetiva. À semelhança do poema Não te amo mais, atribuído a Clarice Lispector, se o olhar desce, surpreende a morte a separar o casal; se o olhar sobe, vislumbra o casal a aguentar, a resistir à Morte. As obras de arte beneficiam em ser ambivalentes.
Não te amo mais
Não te amo mais.
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis.
Tenho certeza que
Nada foi em vão.
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada.
Não poderia dizer jamais que
Alimento um grande amor.
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
EU TE AMO!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade
É tarde demais…(Poema atribuído a Clarice Lispector)
Qual foi a intenção do escultor? Ignoro. Mas, por importante que seja, a sua opinião não é a única nem, porventura, a mais decisiva. Esta é uma questão polémica no seio da sociologia da arte. Resumir-se-á a proposta avançada a um enxerto de sentido apressado, senão atrevido? Naturalmente. Trata-se de um mero exercício de pensamento que convoca o provérbio alternativo “nem a morte nos separa”. Mas a sorte das obras de arte reside, precisamente, em incorporar as interpretações que suscita, incluindo as mais bárbaras. Esta é outra questão polémica da sociologia (da receção) da arte.

Gustave Vigeland (1869-1943) é um reputado escultor norueguês. Em 1921, a cidade de Oslo disponibilizou-lhe um estúdio em Frogner, nos arredores de Oslo. É o início de uma obra monumental que culmina no atual parque Vigeland. Projeta, desenha, o parque, ao mesmo tempo, que introduz as esculturas. Começa com o Monólito (Fig 3) e a Fonte (Fig 6 ). No conjunto, ascendem a mais de 200 esculturas da sua autoria. O Parque Frogner/Vigeland, o maior da cidade de Oslo, destaca-se como uma maravilha mundial.
Esculturas de Gustav Vigeland. Vigeland Park. Oslo. Noruega.










Passar pela Noruega, nem que seja em pensamento, e não ouvir Edward Grieg não se afigura curial. Tanto mais que a famosa Solveig’s Song culmina, a preceito, com os seguintes versos:
“If you are in heaven now waiting for me
In heaven for me
And we shall meet again love and never parted be
And never parted be!”(Edward Grieg. Solveig’s Song).
Edward Grieg. Solveig’s Song. Peer Gynt. Intérprete: Marita Solberg. Direcção de Neemi Jarvi.
Apagar o inferno
Os trailers dos videojogos situam-se na vanguarda da estética e do imaginário contemporâneos. Chamam a si os maiores recursos e os melhores profissionais e criativos. No trailer We All Lift Together, do videojogo Warframe, criaturas, mistos de máquinas e seres humanos, surgem como guerreiros do trabalho, num estaleiro amplo, composto por partes metálicas e partes líquidas.
We All Lift Together. Warframe. Videojogo. Julho 2018.
Ouve-se um coro, um hino. Lembra as canções de resistência. Escolho quatro, uma por país eurolatino do sul: França, Le Chant des Partisans (Yves Montand); Itália, Bella Ciao (Yves Montand); Portugal, Grândola Vila Morena (José Afonso); e Espanha, Si Me Quieres Escrebir (Marina Rosell, a capella).
Chant des Partisans. Intérprete: Yves Montand. França. Resistência, II Guerra Mundial.
Bella Ciao. Intérprete: Yves Montand. Itália. Resistência, II Guerra Mundial.
Grândola Vila Morena. Intérprete: José Afonso. Portugal. Resistência ao fascismo.
Si me quieres escribir. Intérprete: Marina Rosell. Espanha. Resistência, Guerra Civil.
Parar no tempo
Parar, parar, parar… O mal de estar parado é sentir o mundo a passar. Acertar em tudo o que mexe. E repousar no cemitério do tempo, com flores secas a servir de leito. Ser uma relíquia, uma ruína, não ser nada. Sem vento nas velas.
Marca: McDonald’s. Título: Unchangers. Agência: TBWA Brussels. Direcção: Jeroen Mol of Sake. Bélgica, Janeiro 2018.
Liberdade
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa…
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…
Fernando Pessoa