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Beatas: Luz divina e pegada tóxica

Nem tudo o que arde purifica, nem tudo o que se apaga acaba.

G.F. Händel. Eternal Source Of Light Divine (Ode for the Birthday of Queen Anne, HWV 74). 1713. Interpretação: Marie-Sophie Pollak & Ensemble CONCERTO MÜNCHEN. 2023
Anunciante: Keep Britain Tidy. Título: Change starts with you. Agência: 23red. e Wavemaker UK. UK, dezembro 2022
Anunciante: Keep Britain Tidy. Título: Duck – Cigarette Butts are Rubbish / You’re Not A Litterer. Agência: VCCP, London. Direção: Andy McLeod. UK, novembro 2023

De cortar a respiração

Edvard Munch. Lovers in the waves. 1896

“Muchas veces escuchamos los latidos del corazón como metáfora de la vida (…) Pensamos que a partir de la pandemia la respiración tomó más relevancia, desde lo conceptual y desde lo simbólico. Respiro es un mensaje que toca una cuerda que resuena en la sociedad y cala profundo en nosotros (Martín Pezza: https://www.adlatina.com/publicidad/preestreno-enero-comunicacion-y-medife-toman-aire).

Respirar é mais do que inspirar e expirar. É sentir, desejar e comunicar. A associação à sexualidade e ao desejo é de tal ordem que Jean-Louis Tristani fala de um “estádio do respiro” distinto do “estádio oral “ (ver https://tendimag.com/202211/11/o-estadio-do-respiro/). Para além do erotismo, a respiração é decisiva na música, na fala, no imaginário… Simbolicamente, respira-se saúde e liberdade; a alma enche-se e o coração suspira; o diabo sopra e algumas situações sociais sufocam. Estreado esta semana, o anúncio argentino “Respiro” oferece um autêntico inventário do fenómeno a um ritmo de cortar a respiração. Recorda canções, danças, poemas, cenas de filmes, anúncios…

Para quem tiver tempo e curiosidade, acrescem dois vídeos: uma canção (em jeito de homenagem a Jane Birkin) e um anúncio (focado na poluição). Sugiro, enfim, o (en)canto “gutural” de Camille (https://tendimag.com/2022/11/11/o-estadio-do-respiro/). E pronto! Acabou-se-me o fôlego.

Marca: Medifé. Título: Respiro. Agência: Enero Comunicación. Direção: Tomás Posse. Argentina, agosto 2023

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Serge Gainsbourg & Jane Birkin. Je T’Aime, Moi Non Plus. 1969
Marca: ClientEarth. Título: Poisened Playgrounds. Agência: BMB London. UK, 2017

A beleza do mal

É possível criar obras belas a partir de realidades feias. Trata-se da estética do feio. Ainda mais criar obras belas com realidades más. Tratar-se-ia de uma estética do mal. É o caso do anúncio We Have To Take Action, da Deutsche Telekom. Belíssimo e pavoroso! Um olhar convincente sobre os riscos ecológicos. Para aceder ao vídeo, na página da agência, carregar no link https://bauhouse.de/deutsche-telekom-we-have-to-take-action/ ou na seguinte imagem.

Marca: Deutsche Telekom. Título: We Have To Take Action. Agência: bauhouse. Alemanha, 2018.

Naturalmente

Quino. Mafalda. Irresponsáveis.

À Paula Mascarenhas e ao José Neves

Empenhar-me na revisão do livro A Morte na Arte é uma prioridade, mas o Tendências do Imaginário lembra as Mouras Encantadas. Não há modo, apesar da garantia de castigo, de lhes resistir. Esta forma rápida e quase espontânea de acabar um texto mal se começa torna-se um vício. E tudo o que exige aplicação, tempo e paciência, um incómodo. São duas formas de entrega. Uma proporciona um prazer quase imediato, a outra uma vaga recompensa remota. E eu não sou nem asceta nem puritano. Com algumas saudades dos anúncios publicitários, continuo, por um tempo, a insistir na música. Costuma acompanhar-me enquanto trabalho. Volta e meia, um trecho mais atrevido cativa-me a atenção. Uma desconcentração prazerosa. Desta vez, encarei com a canção catalã Pare (1973), de Joan Manuel Serrat, nascido em Barcelona, em 1943. Um ídolo em Espanha. Trata-se de uma canção de combate, género pródigo nos anos setenta, em defesa de uma natureza natural. Segue a música e a tradução da letra em inglês.

Joan Manuel Serrat. Pare. Per Al Meu Amic. 1973

Father
Father, Tell Me,
what have they done to the river, that it no longer sings?
It slips like a dead barbel
under a handspan of white foam.

Father; That the river is no longer the river.
Father, Before the summer comes,
hide everything that is alive.

Father, Tell me,
what have they done to the forest, that now there are no trees?,
In the winter we won’t have fire,
nor in summer a place for shelter.

Father; that the forest is no longer the forest.
Father; before it darkens,
fill with life the pantry.

Without limber and without fish, father,
we will have to burn the small boat,
harvest the wheat
between the ruins, father,
and close with three bolts the house,

…and you said, father…

if there are no pine trees
there will be no pine nuts, nor worms, nor birds.
Father, where there are no flowers,
the bees will not give, nor the wax, nor the honey.

Father, that the country is no longer the country.
Father, tomorrow from the sky will rain blood.
The wind sings it crying.

Father, they are here already,
monsters of meat with worms of iron.
Father, no. Do not have fear,
and say that no, that I will wait for you.

Father, That they are killing the earth,
Father. Stop crying,
That they have declared us the war.

Um mandamento novo

Ikea. Frugal. 2020.

Não poluirás! “A sorte favorece o frugal”. Anúncios como este tangem o religioso. “A sorte é a forma laica do milagre” (Paul Guth).

“A nossa visão é criar um melhor dia a dia para a maioria das pessoas: para os clientes e também para os nossos colaboradores e as pessoas que trabalham nos nossos fornecedores. “Esta visão vai muito para além da decoração para a casa. Queremos que o nosso negócio tenha um impacto positivo no mundo, desde as comunidades onde obtemos os nossos materiais à forma como os nossos produtos ajudam os nossos clientes a viver uma vida em casa mais sustentável. Ao partilhar o que fazemos e ao defendermos aquilo em que acreditamos, podemos ser uma parte da mudança positiva na sociedade” (Ikea – Visão e Conceito: https://www.ikea.com/pt/pt/this-is-ikea/about-us/visao-e-conceito-de-negocio-pub9cd02291).

Marca. IKEA. Título: Fortune favours the frugal. Agência: Mother. Direção: Tom Kuntz. Reino Unido, Dezembro 2020.

Azul

Man Ray. Le violon d’Ingres. 1924.

Acontece-me pasmar a ver anúncios da viragem do milénio. Muita criatividade e menos técnica. Esta equação deve ser uma ilusão, mas merecia um estudo. Os anúncios que seguem, ambos do Greenpeace, lembram Hieronymus Bosch e o surrealismo. Nos oceanos, há crude para todos. Naquele tempo (1990 e 2000), pouco se falava do plástico.

Hoje, fui nomeado cidadão de honra do concelho de Melgaço, minha terra natal. Ainda estou emocionado.

Anunciante: Greenpeace. Título: La Poire. Internacional, 1990.
Anunciante: Greenpeace. Título: Oil. Agência: Giovanni FCB. Brasil, 2000.

Poluição plástica

Contra a poluição, só temos palavras?

Desflorestação, extinção de espécies, maus tratos a animais, derrame de crude, desertificação, alterações climáticas, aquecimento global, degelo, poluição do ar, efeito estufa, acidentes nucleares, proliferação de plásticos nos oceanos, eis alguns dos problemas que nos apoquentam. Na esfera pública, os temas ecológicos sucedem-se ao estilo de natação mariposa. Ora emergem, ora submergem. Ora uns, ora outros. A poluição plástica dos oceanos é um tema emergente que tem inspirado anúncios notáveis. Por exemplo, os anúncios The Plastic Ocean (2018) e Pollution de Avril (2019), da associação Sea Shepherd.

Anunciante: Sea Shepherd. Título: The Plastic Ocean. Agência: Fred & Farid (New York). Estados-Unidos, Abril 2018.
Anunciante: Sea Shepherd. Título: Pollution de Avril. Agência: Azilis. Direcção: When We Were Kids. França, Abril 2019.

As virtudes do funil

01. Unknown, Inuentio sanctae Crucis, Illumination from the Passionary of Weissenau (Weißenauer Passionale) (1170-1200), Codex Bodmer 127, fol. 53v

01. Unknown, Inuentio sanctae Crucis, Illumination from the Passionary of Weissenau (Weißenauer Passionale) (1170-1200), Codex Bodmer 127, fol. 53v.

Com menos anos do que dedos nas mãos, pasmava na feira a ver o vendedor de banha da cobra. Numas bancas, alguns recipientes de vidro com uma espécie de massa longa (mafaldine) a que chamava “bicha solitária”. O seu vozeirão dava exemplos dos pavores que estes parasitas provocavam nos intestinos. Para alimentar o monstro, as vítimas sentiam fome e definhavam a olhos vistos. Para grandes males, pequenos remédios. Bastam dois frascos com uma poção milagrosa para matar o bicho e a fome. Duas pessoas apressam-se a comprar, secundadas por parte da assistência. Naquele tempo, eram mais as pessoas com fome do que com fastio. Talvez fosse da bicha solitária. Este é um dos esquemas básicos da publicidade. Criar necessidades, pelo imaginário mas com fio de terra. Como diria Karl Marx, a oferta produz a procura. Não digo que os anúncios actuais são herdeiros dos charlatões das feiras, mas também não desdigo.

Marca: SodaScream. Título: It’s time for a change. Estados Unidos, Novembro 2018.

Afirmam que existe uma nova ilha composta por lixo. Os oceanos e os rios estão atafulhados de lixo, os lugares onde as pessoas residem, também. Como combater a catástrofe? O anúncio It’s time for a change, da SodaStream, sugere deixar de beber água engarrafada em embalagens de plástico e passar a beber soda. Com mais de 6 milhões de visualizações no site da marca, o anúncio está a alcançar um enorme sucesso.

02. Las tentaciones de San Antonio. obra de Joos Van Craesbeeck, fue realizada en el año 1650

02. Las tentaciones de San Antonio. Obra de Joos Van Craesbeeck, fue realizada en el año 1650.

Como vamos beber a soda? Com palhinhas ou copos de plástico? São o problema. Com copos de madeira ou de papel? São desflorestadores. Com copos de vidro? São de reciclagem rápida, mas requerem detergentes. Tecnologicamente avançada, a nossa sociedade tem a poção mágica para quase tudo. Se existe, digitaliza-se! Por que não beber soda em copos virtuais! A digitalização é amiga do ambiente, apenas polui os neurónios.

03. David Teniers the Younger.The Temptation of Saint Anthony (detail) (c 1650)

03. David Teniers the Younger.The Temptation of Saint Anthony (detail) (c 1650).

Restam duas soluções. A primeira consiste em beber soda diretamente da fonte. Sem copo, nem palhinha. Na aldeia, para beber às escondidas, sorvia-se o vinho da torneira da pipa. Outra solução: não beber nem água engarrafada nem soda. Beber água da chuva, graças a um funil. Aos primeiros pingos, funil à boca e ergue-se a face. Regressado o sol, o funil, assente na cabeça, serve, agora, de chapéu. Esta solução já foi patenteada há, pelo menos, oito séculos (Figura 01).

Os funis de Hieronymus Bosch

 

 

Amanhã é sempre longe demais

Fonte - WWF

Mapa global da pegada ecológica do consumo. Fonte – WWF

Estamos a destruir o planeta. “Somos a primeira geração que está a destruir o planeta e a última que o pode salvar”. Todos sabemos. Mas do saber ao decidir vai um passo, um passo que não damos. O homem é um animal capaz de se auto castigar. Se o presente foge, o “amanhã é sempre longe de mais” (Radio Macau).

Resistência. Amanhã é sempre longe demais. Ao vivo em Lisboa. Cover dos Radio Macau.

O homem é dado à descrença. Não fala a língua do poder, nem o poder fala a língua dele. Quem muito fala, fica rouco. E a mão cheia de poderes globalizados, em que cena do anúncio aparecem? A este nível, o homem comum sente-se tão impotente que poucos sonhos o mobilizam e muitos pesadelos o atormentam. Mas a propaganda e a publicidade insistem que o mundo está nas nossas mãos! Recomecemos: “Somos a primeira geração que está a destruir o planeta e a última que o pode salvar”. Quem está a destruir o planeta? A nossa geração? A nossa geração tem as costas largas. Cumpre-lhe, naturalmente, fazer o que estiver ao seu alcance. Salvar o planeta? Em 2017, a China (27,6%) e os Estados Unidos (15,2%) emitiram 42.8% do dióxido de carbono do planeta. Mas estou convencido que a nossa geração, com a tal responsabilidade que lhe cabe,vai converter os fariseus e salvar o planeta.

Consta que o anúncio Fight for your world, da WWF, é a primeira grande encomenda da agência Uncommun Creative Studio. Felicito-a! O trabalho é notável. Esmerado. E o texto, eloquente e incisivo.

Tanya Steele, chief executive of WWF UK, said: “The decisions made over the next few years will determine the future of our world and the wildlife we share it with. We have a window of opportunity to act and show we care – as citizens, as consumers and as individuals. That opportunity starts now and leads up to the end of 2020, when global decisions on biodiversity loss, climate change and sustainable development will be made. This window is rapidly closing. The time to fight for your world is now.”

Nils Leonard, co-founder of Uncommon, added: “If we could watch our planet in this second, and see our impact upon it in real time, it would scare us. It would be the understanding that every choice we make, no matter how small it might seem, has a huge impact. These little choices are how we fight the biggest battles, they are the way for all of us to make a difference. Not making a choice, is a choice: in every decision, of every day, you are either for the world or against it.” (campaign: https://www.campaignlive.co.uk/article/wwfs-bold-ad-uncommon-urges-people-fight-world/1497550).

Anunciante: WWF. Título: Fight for your world. Agência: Uncommun Creative Studio. Direcção: Daren Rabinovitch. Reino Unido, Outubro 2018.

A plastificação da inteligência

Le vent l’emportera
Tout disparaîtra
Le vent nous portera
(Noir Désir, Le Vent Nous Portera. Des visages des figures. 2001)

A plastificação dos oceanos inspira a publicidade. O anúncio espanhol da CREA, Sin Contaminación, e o anúncio Ocean of the Future, da Greenpeace, são disfóricos. Traçam um retrato cinzento da nossa irresponsabilidade. Para o anúncio Sin Contaminación, não estamos apenas a intoxicar o ambiente, intoxicámo-nos a nós próprios.

Sin contaminación

Marca: CREA. Título: Sin Contaminación. Espanha, Junho 2018.

Marca: Greenpeace. Título: Ocean of the Future. Agência: Ogilvy & Mather (London). Reino Unido, Abril 2018.

A fatrasia, estilo típico da Idade Média, alinha frases sem nexo. Mistura alhos com bugalhos num discurso sem sentido aparente. Gosto da fatrasia. Prefiro a paella ao puré. Por quê acrescentar o vídeo musical Le Vent Nous Portera, dos Noir Désir? Passa-se numa praia. É disfórico e estranho, um “bouquet de nerfs”. É percorrido por um sentimento de ameaça, sem como nem quando. Se isto não é suficiente para justificar o vídeo musical, acrescento que gosto dos Noir Désir! Gostar é o melhor passaporte para qualquer lugar e qualquer viagem.

Noir Désir, Le Vent Nous Portera. Des visages des figures. 2001.

Muitos anúncios do Tendências do Imaginário são filhos da pressa e do desperdício. O anúncio Sin Contaminación, consistente e original, merecia um comentário mais circunstanciado. O mesmo vale para o vídeo Le Vent Nous Portera, um filme subtil, um bom exemplar da canção francesa, com uma letra que se emancipa da estética do belo. Ando sobreocupado a perder tempo. A minha escrita parece o inverso de uma sopa de pedra: um calhou no fundo de um pote sem sombra de acompanhamento. Sem empratamento, sem decoração que disfarce e eufemize o mundo. Surpreendo-me, às vezes, a pintar cenários insensatos: com o vento actual, preocupa-me a plastificação dos oceanos, mas não me preocupa menos a plastificação da inteligência.