Princípios e regras. As dobras da transgressão
“Vi as democracias intervirem contra quase tudo, salvo contra os fascismos.” (André Malraux, L’Espoir, 1ª ed. 1937)
“A liberdade consiste em poder escolher as suas cadeias”. Desde a adolescência que este pensamento me persegue. Habituei-me a atribuí-lo a André Malraux, mas não garanto. Jeanne Moreau sugere uma ideia semelhante: “A liberdade consiste no poder de escolher de quem se é escravo”.
Cedo me apressei a acrescentar um complemento: “Cada cadeia que se quebra é uma nova margem de liberdade que se conquista”, propícia a novas escolhas (A. Malraux também escreveu: “A liberdade pertence àqueles que a conquistam”). Juntas, as duas frases compõem um “paradoxo” de minha particular estimação.
André Malraux
O desafio das regras sempre foi uma tentação, mas em consonância com um fundo de princípios que permaneceu bastante estável ao longo da vida. Deparo, agora, com uma encruzilhada, senão um impasse. Nos últimos, e certamente nos próximos, tempos, quem mais pretende subverter as regras ameaça também os respetivos (meus) princípios. Não resulta, portanto, claro se se está a contribuir para abrir ou para fechar. Que fazer? Refrear a tentação de transgressão para salvaguardar o essencial, mais precisamente a possibilidade da diferença e da transgressão?
Voltar a escutar Breaking The Rules, de Jack Savoretti, inspirou, hoje, este devaneio. Insisto, logo existo. Acrescento a canção India Song, de Jeanne Moreau.
A carreira no reino da parvoíce
Os actores sociais, quanto menos hipóteses de carreira têm, mais carreiristas ficam. Este paradoxo é um desafio para a sociologia. Colide com o princípio da “causalidade do provável”, da sociologia praxeológica de Pierre Bourdieu. Colide, também, com o modelo da relação entre apostas e expectativas, proposto pelo individualismo metodológico de Raymond Boudon. Para colmatar estas aberrações, Pierre Bourdieu importou da química a noção de histerese: a prossecução de uma reacção comportamental para além das condições que a justificaram. Quanto a mim, hesito entre histerese e histeria.
Mudemos de assunto que este é polémico.
Mordillo faleceu há uma semana, no dia 29 de Junho de 2019. Fonte de inspiração com humor colorido. Se tivesse que decorar o quarto de um neto, optava pelos seus desenhos. Mordillo, tal como Quino, não é um sociólogo, mas um sábio da humanidade. Prefiro a ironia gentil do Mordillo ao elogio programado da tribo.
Memória puxa memória, há muito tempo, cantarolei em coro, nas ruas tranquilas de uma praia do Norte, a canção Le Roi (des Cons), de Georges Brassens (1972). Brassens tem razão: nunca destronaremos o rei dos parvos.
O eterno e o infinito
Nem sempre se proporciona confrontar dois anúncios excelentes e recentes. A qualidade é rara e nem sempre comparável.
O anúncio da Nokia aposta no encadeamento de fragmentos. Cada fragmento, contanto breve, concentra informação que o público consegue identificar, apreciar e assimilar. Em cada fragmento, prevalece a ideia de performance, a marca do extraordinário e a sensação de vertigem. O ritmo é acelerado. Adivinham-se homologias entre os fragmentos, o que não os impede de permanecer únicos e distintos. A ponte, ilusória, é providenciada pela própria aceleração. A ligação só se concretiza no fim do anúncio: os fragmentos desencontrados convergem para as oito teclas do telemóvel.
Anunciante: Nokia. Título: The amazing everyday. Novembro 2011.
O anúncio da John Lewis é também composto por uma longa série de fragmentos. Mas a sua variação é contida pela repetição: sempre o mesmo miúdo com ansiedade expectante. Alteram-se, apenas, os cenários. O ritmo, ao sabor da música, é lento e compassado. O desfecho é discreto. Resume-se a um pequeno texto: “For gifts you can’t wait to give” e “John Lewis in store / online / mobile”. Tudo, neste anúncio, respira espera.
Anunciante: John Lewis. Título: The Long Wait. Agência: Adam & Eve. Direcção: Dougal Wilson. Novembro 2011.
Em The amazing everyday, assisti-se a uma cavalgada no piano. As notas atropelam-se numa sucessão de instantâneos que percorrem o teclado. Em The long wait, os dedos obstinam-se a percorrer as mesmas sequências, o que proporciona uma sensação de duração. A multiplicidade instantânea cede o passo à continuidade, a um ensimesmamento melódico. Este tipo de duração é, paradoxalmente, uma quase eternidade, uma eternidade que se presentifica. Em suma, a cadeia de estabelecimentos comerciais John Lewis está, aqui e agora, sempre connosco. No caso de The amazing everiday, o instante, a cavalgada de instantâneos rumo ao telemóvel, torna-se, graças às novas tecnologias, infinito, uma plataforma de possibilidades sem fim.