Samba digestivo
Habituamo-nos ao protagonismo do samba na publicidade, por exemplo nos anúncios ao futebol. Mas ao trânsito digestivo!…
Carajo!
O futebol presta-se a hinos. O sagrado beija os relvados. O jogo é uma actividade sacrificial; somos penitentes à espera da redenção, “uma raça guerreira” que desafia a luz e as trevas. Se o futebol não existisse, seria necessário reinventar o purgatório. O Peru não vai, desde 1982, aos santuários do pontapé global. Se o mundo é esférico, este hino é meia missa. “Arriba, Peru! O caminho para seguir em frente é para cima. Arriba Peru, carajo!” A França e a Dinamarca que se cuidem!
Ao entardecer, é um regalo ver as gaivotas em bando escangalhado. Voam bem e longe.
Anunciante: FPF – Federación Peruana de Football. Título: Querida Francia. Peru, Maio 2018.
Prolongamento
Este anúncio, de raro impacto, associa o som de um relato de futebol à imagem de uma mulher atemorizada. Os casos de violência doméstica aumentam quando a Inglaterra joga num Campeonato do Mundo. Sobretudo quando perde, mas também quando ganha. Vários estudos corroboram estas tendências.
Anunciante: National Centre for Domestic Violence. Título: England Match Final Minutes. Agência: Jwt London. UK, Junho 2014.
Police are issuing personal warnings to men and women with a record of domestic violence in the runup to England’s first World Cup game, acting on evidence that abuse against wives, girlfriends and partners spikes dramatically in the aftermath of matches – whether the team wins or loses.
The most detailed research into the links between the football World Cup and domestic abuse rates has revealed that in one force area in England and Wales, violent incidents increased by 38% when England lost – but also rose by 26% when they won.
The research, by Lancaster University criminologist Dr Stuart Kirby, a former police officer, monitored police reports of domestic violence during the last three World Cups in 2002, 2006 and 2010.
While domestic violence rose after each England game, incidents also increased in frequency at each new tournament, raising fears that the forthcoming competition in Brazil – where England’s first game is against Italy on Saturday 14 June – could see the highest ever World Cup-related rises in domestic violence across the UK.
Separate national research examining the 2010 World Cup echoed the Kirby findings – with domestic abuse reports up 27.7% when the England team won a game, and 31.5% when they lost.
(The Guardian, de 8 de Junho: http://www.theguardian.com/society/2014/jun/08/police-fear-rise-domestic-violence-world-cup).
Um furo no céu
O céu deve ter um buraco. Caem estrelas na terra. Em plena febre futebolística, continua a brilhar um anúncio do tempo do mundial da África do Sul. A criança não resiste ao sono. As jornadas são assim: à chegada, o repouso, o repouso do guerreiro. Soberbo!
Marca: Orange. Título: Being there. Agência: Marcel (Paris). Direcção: Drake Doremus. França, 2013.
A Nova Jerusalém
Deus criou o mundo em seis dias. Obra perfeita. Ao sétimo, descansou. Mas a perfeição não era perfeita. Ao oitavo dia, Deus quebra o repouso e regenera a criação, iniciada a um domingo e a um domingo ultimada.
Houve tempos em que a promessa de salvação era apanágio da Igreja. Seguiu-se a política. Entretanto, as esferas celestiais rolam nos estádios e a Nova Jerusalém adquire foros de cotação na bolsa. Mas ainda não acordamos do sonho do Apocalipse de João. Os anjos brancos e os anjos negros continuam a defrontar-se perante os nossos olhos impotentes. E os anjos negros parecem cair não no inferno mas num enorme trampolim.
O anúncio brasileiro A Grande Transformação, do Banco Itaú, é uma obra-prima de comunicação. Soberbo! Quando o poder financeiro coloca maravilhas ao peito apetece entoar glórias e hossanas. Mas a experiência ensina-nos que sempre que travestimos seres humanos em deuses, São Bartolomeu solta o diabo.
Marca: Banco Itaú. Titulo: A Grande Transformação. Agência: Africa, Brazil. Direção: Cláudio Borrelli. Brasil, Dezembro 2013.
“Vi também a cidade santa, a Nova Jerusalém (…) Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim (…) Então, veio um dos sete anjos que têm as sete taças cheias dos últimos sete flagelos e falou comigo, dizendo: Vem, mostrar-te-ei a noiva, a esposa do Cordeiro, e me transportou, em espírito, até a uma grande e elevada montanha e me mostrou a santa cidade, Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus. Tinha grande e alta muralha, doze portas, e, junto às portas, doze anjos, e, sobre elas, nomes inscritos, que são os nomes das doze tribos dos filhos de Israel. Três portas se achavam a leste, três, ao norte, três, ao sul, e três, a oeste. A muralha da cidade tinha doze fundamentos, e estavam sobre estes os doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro. Aquele que falava comigo tinha por medida uma vara de ouro para medir a cidade, as suas portas e a sua muralha. A cidade é quadrangular, de comprimento e largura iguais. E mediu a cidade com a vara até doze mil estádios. O seu comprimento, largura e altura são iguais. Mediu também a sua muralha, cento e quarenta e quatro côvados, medida de homem, isto é, de anjo (…) As suas portas nunca jamais se fecharão de dia, porque, nela, não haverá noite. E lhe trarão a glória e a honra das nações.”
(Apocalipse 21:1 – 22:5)
Bendita Bola
Este anúncio de TyC Sports, um canal de televisão argentino, selecciona passagens do discurso do Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro e compõe uma exortação à selecção de futebol da Argentina. O teor desta descontextualização revela a margem de manobra da publicidade actual. Poucas esferas de actividade, incluindo a política, gozam deste à vontade face aos limites da conveniência. Embora mudando de contexto, o discurso mantém-se na esfera da religião. Desliza, apenas, do catolicismo para o futebol. Com a atenuante de, exceptuando Cristiano Ronaldo, serem todos argentinos: o papa, a selecção, a agência de publicidade e o canal de televisão. Na Argentina, a religião e o futebol entrelaçam-se. Quem não se lembra da “mão de Deus”, decisiva na vitória na final entre a Argentina e a Inglaterra (2-1) no campeonato do mundo de 1986 no México?
Marca: TyC Sports Argentina. Título: Jogo bendito. Agência: Young & Rubicam Argentina. Argentina, Dezembro 2013.
Este esquema de anúncio, que raia o pecado (“não invocar o santo nome de Deus em vão”), não é inédito. A pretexto da campanha do Campeonato do Mundo de Futebol de 2010, na África do Sul, a Quilmes lança um anúncio semelhante em que Deus prega um sermão aos argentinos sobre as prestações da selecção azul celeste e branco nos diversos mundiais. Passe a subjectividade, embora produzidos ambos pela agência Young & Rubicam, considero o anúncio de 2010 mais bem conseguido.
Marca: Cerveceria Quilmes. Título: Dios. Agência Young & Rubicam Argentina. Direção: Pucho Mentasti. Argentina, 2010.