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O Galo e a Morte

Uma mulher diz a outra que teve um situação de emergência médica: “O galo rondou esta casa, deu várias voltas, mas foi cantar a outro sítio”. Por sinal, alguém faleceu na mesma noite.

O galo é um símbolo solar. Anuncia a aurora e a luz. É também um símbolo de valentia. Na mitologia grega, o galo, consagrado a Hermes, é um psicopompo, “função tradicionalmente atribuída a Hermes no mito grego, pois ele, além de mensageiro dos deuses, era o deus que acompanhava as almas dos mortos, sendo capaz de transitar entre as polaridades (não somente a morte e a vida, mas também a noite e o dia, o céu e a terra)” (Dicionário Crítico de Análise Junguiana, Edição Eletrônica © 2003 Andrew Samuels/Rubedo, p. 88). Além desta função de transição entre as polaridades (as trevas e a luz; a morte e a vida), o galo encerra um lado lunar.

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Figura 1: Meister E. S., Temptation of lack of Faith. Circa 1450

O galo de Barcelos é o primeiro exemplo que ocorre. Cozinhado e ressuscitado, o galo é protagonista de uma lenda marcada pela morte. Segue o galo da Negação de São Pedro antes da crucificação de Cristo. A associação do galo à morte existe na crença popular. No Brasil, em Espanha e em Portugal, acredita-se que o canto do galo fora de horas (antes ou à meia-noite) é mau augúrio: alguém da casa, ou vizinho, vai morrer. O galo agrega-se, assim, aos animais anunciantes da morte: o mocho, a borboleta negra, o morcego, o cão, o gato… Um conto brasileiro inicia com um galo a matar uma criança. A mãe pede a outro filho para matar o galo e o abandonar em água corrente. O filho não segue a recomendação. Ele e três amigos matam o galo, cozinham-no e morrem antes de o provar. (http://www.recantodasletras.com.br/contosinsolitos/830891).

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Figura 2: Meister E. S., Ars moriendi. Circa 1450.

As gravuras de Mestre E. S. constam entre as muitas imagens dedicadas à Ars moriendi (Arte de morrer) nos séculos XV e XVI. Testemunham uma mudança de atitude perante a morte. Observa-se uma antecipação do julgamento final. A prova deixa de esperar pelo fim dos tempos para se concentrar no momento de morrer. Continua a envolver um combate cósmico. De um lado, as forças celestiais, do outro, as forças demoníacas. As pessoas presentes não conseguem ver estas forças. Apenas o moribundo (atente-se no alheamento do grupo de três pessoas na Figura 1).

“O moribundo está recostado, rodeado pelos seus amigos e parentes. Seguem-se os rituais bem conhecidos. Mas sucede algo que perturba a simplicidade da cerimónia e que os assistentes não vêem; um espectáculo reservado apenas ao moribundo, que, por acréscimo, o contempla com um pouco de inquietação e muita indiferença. A habitação foi invadida por seres sobrenaturais que se apinham na cabeceira do jazente. De um lado, a Trindade, a Virgem e toda a corte celestial; do outro, Satanás e o exército dos demónios monstruosos. A grande concentração que nos séculos XII e XIII tinha lugar no fim dos tempos ocorre, a partir de agora, no século XV, na habitação do enfermo” (Philippe Ariès, Historia de la Muerte en Ocidente, Barcelona, El Acantilado, 2000, p. 48).

As gravuras de Mestre E. S. condizem com a análise de Philippe Ariès. Defrontam-se as cortes celestial e demoníaca. Pela sua disposição, na figura 2, o moribundo está a superar a prova. A chave de S. Pedro está próxima e os demónios parecem conformados. Ao cimo do leito, destaca-se um galo. A sua presença é rara nas gravuras, pinturas e livros da Ars moriendi. Qual é o seu papel? Cantor de mortes? Psicopompo? “Luz da noite”, o galo situa-se, de facto, entre dois mundos: o céu e o inferno, a luz e as trevas, a vida e a morte. Não obstante, inclino-me a atribuir o galo a S. Pedro, o inseparável galo de S. Pedro. Mas este tipo de figuras costuma ser polissémico.