Tag Archive | Manuel Freire

Instintos

Volvidos 50 anos, continuo convencido que nem a democracia é instintiva nem as ditaduras contranatura. Os cravos, frágeis, querem-se cuidados, como a rosa do Principezinho. Recoloco 4 canções, antigas, sem ilusões: Cantilena, de Francisco Fanhais (1969); Os Eunucos, de José Afonso (1970); Que Força É Essa?, de Sérgio Godinho (1972); e Pequenos Deuses Caseiros, de Manuel Freire (1973).

Celeste Martins Caeiro a distribuir cravos

Francisco Fanhais – Cantilena. EP, 1969
José Afonso – Os eunucos. Traz Outro Amigo Também. 1970
Sérgio Godinho – Que força é essa?. Os Sobreviventes. 1972. Ao vivo: espetáculo “Três cantos”, com José Mário Branco e Fausto, Lisboa e Porto, 2009
Manuel Freire – Pequenos deuses caseiros. EP. 1973

Pedra d’água

Se no artigo anterior, a liberdade e o amor surgem como rivais, hoje apetece-me corrigir a mão. A liberdade ama-se e o amor salva do pior dos tiranos: nós mesmos. Uma canção que me faz sentir a liberdade é a Pedra Filosofal, poema de António Gedeão, interpretada por Manuel Freire. Dir-me-ão que não incide sobre a liberdade mas sobre o sonho. Pois, sem sonho não há liberdade, fica-se prisioneiro, não do amor, mas da realidade.

Junto com a Pedra Filosofal, vem a magnífica Menina dos olhos d’água, interpretada por Pedro Barroso.

António Gedeão

Manuel Freire – Pedra filosofal / Pedro Barroso – Menina dos olhos d´água

Esta (des)conversa inspira-se em Ernst Bloch, autor erudito e complexo, ídolo dos movimentos estudantis dos anos sessenta. As obras mais reputadas são Espírito da Utopia (1918) e O Princípio Esperança (3 vols., 1954-1959). Os meus textos inspiram-se sempre em algo ou alguém. Poucas novidade acrescentam. Neste caso, andei na adolescência às voltas com um livro menos conhecido de Ernst Bloch: Thomas Münzer, Teólogo da Revolução (1921).

Em 1978, fiz um trabalho dedicado precisamente ao Thomas Münzer (1490-1525), com o título Thomas Munzer, a sutana e o martelo. Münzer foi um teólogo “revolucionário” do século XVI. Crítico de Lutero, acabou por liderar a “guerra dos camponeses” na “Alemanha” (1524-1525). Pregava as os seus textos nas portas das igrejas e assinava: “Thomas Münzer à martelada”. Almejava criar o Reino de Deus na Terra. Foi decapitado em 1525. Friedrich Engels dedica-lhe um pequeno livro: As guerras camponesas na Alemanha (1850).

O trabalho, de uma trintena de páginas, possuía uma introdução extensa sobre a abordagem das ideologias. Graças a ele desemboquei em obras interessantes, tais como O messianismo no Brasil e no Mundo (1965), da socióloga brasileira Maria Isaura Pereira de Queiroz, ou Ideologias: inventário crítico dum conceito (1978), do José Madureira Pinto. Emprestei o trabalho a uma doutoranda grega e nunca mais lhe pus a mão.

Junto a tradução em português do livro Thomas Münzer, Teólogo da Revolução, de Ernst Bloch(Editora Tempo Brasileiro, 1973).

Música sobre a emigração

Fotografia rasgada. Metade ficava em Portugal, a outra regressaria mais tarde

Fotografia rasgada. Metade ficava em Portugal, a outra regressaria mais tarde.

Sem eira, nem beira
Sem Pátria onde albergar
Estrangeiro em terra alheia
Estranho no meu lugar
(Letra de uma canção sobre a emigração).

Um grupo de alunos propôs-se fazer um vídeo sobre a emigração. Felicito-os pela ideia e pela vontade. Quatro músicas sobre a emigração são incontornáveis: Tema do filme O Salto (1967), de Luís Cilia; Eles (1968), de Manuel Freire; Cantar de Emigração (1971), de Adriano Correia de Oliveira; e O Emigrante (1977), do Conjunto Maria Albertina.

Tema do filme O Salto (1967), de Luís Cilia.

Eles (1968), de Manuel Freire.

Cantar de Emigração (1971), de Adriano Correia de Oliveira.

O Emigrante (1977), do Conjunto Maria Albertina.

 

Não há machado que corte a raiz ao pensamento

Joan Miró. Sem título.

Joan Miró. Sem título.

How real is real (Paul Watzlawick)? Com a linguagem.  How to do things with words (J. L. Austin)? Com o poder.

A ciência tem poder e é uma linguagem. A ciência é polifónica. Fala com várias vozes. É dialógica e polémica. Confrontam-se vários discursos. Por enquanto, não é totalitária.

A ciência mede-se  e hierarquiza-se. Observa-se uma tendência para confundir o que é medido com a medida, o indicador, com o indicado. Em jargão académico, chama-se a esta falácia “reificação”. No meu dialecto, chama-se parvoíce e embuste. A avaliação da ciência recorre à arte rupestre de contar. Um cientista que se preze passa a vida a contar os seus próprios indicadores, bem como os indicadores dos outros. Um conto desgraçado. Trata-se de uma realidade de 3º ou 4º grau, uma nova forma de alquimia. A avaliação substantiva e a avaliação qualitativa vão ficando pelo caminho.

Speedy Gonzalez

Speedy Gonzalez

Na ciência, embora não se aceleram partículas, como no CERN, acelera-se a  investigação e a divulgação. A velocidade é uma dimensão importante do cientista moderno. É o efeito Speedy Gonzalez. À semelhança dos electrões, um cientista não deve estar parado. O cientista é a formiga do milénio. Só lhe falta ser ubíquo. Talvez com a ajuda de um sucessor da videoconferência. Por este andar, o cientista ainda se vai dedicar mais à divulgação do que à produção de resultados.

Aprecio pouco a noção de “indústria cultural” de Theodor Adorno e Max Horkheimer, mas utilizo-a e, até, a extrapolo: a ciência parece, cada vez mais, uma “indústria científica”. Se aos olhos da Escola de Frankfurt, a industria cultural é nefasta, a meus olhos, a indústria científica também não é grande maná.

Quando preencho os relatórios de actividade científica tenho propensão para o desabafo. É mais avisado ouvir música. Por exemplo, Livre, de Manuel Freire, com letra de Carlos Oliveira, ou o Coro dos Escravos Hebreus, de Giuseppe Verdi. Uma brisa de liberdade refresca o espírito.

 

Manuel Freire. Livre. 1968

Giuseppe Verdi. Coro dos escravos hebreus. Nabucco. 1841

Manuel Freire / Carlos Oliveira: Livre

(Não há machado que corte
a raíz ao pensamento) [bis]
(não há morte para o vento
não há morte) [bis]

Se ao morrer o coração
morresse a luz que lhe é querida
sem razão seria a vida
sem razão

Nada apaga a luz que vive
num amor num pensamento
porque é livre como o vento
porque é livre

A Menina Bexigosa

São raras as canções que abordam a discriminação estética. A Menina Bexigosa (1973), de Manuel Freire, consta entre as excepções. Nunca, como hoje, a fealdade foi tamanho fardo e a beleza tanto capital. Numa sociedade rendida à aparência, a beleza é a primeira e a mais eloquente carta de recomendação. No Discurso Sobre as Paixões do Amor (1652-1653), Blaise Pascal constata que “há um século para as loiras, outro para as morenas (…)  A própria moda e os países regulam aquilo que se chama beleza”.  A moda passa, mas permanece. A beleza justifica uma violência simbólica exacerbada. Os ismos e os pós ismos, tão cheios de razão, têm ignorado esta desigualdade. Não há nada a fazer? Talvez ver com outros olhos, o que não se resume aos óculos.
Para aceder ao vídeo, carregar na imagem (Quentin Massys. Matched Lovers, c. 1520-1525).

Quentin Massys. Matched Lovers, c. 1520.525
Manuel Freire. A Menina Bexigosa. 1973.

A Menina Bexigosa

A menina bexigosa viu-se ao espelho
soltou-se do vestido e viu-se nua
está agora vestida de vermelho,
inerte, no passeio da rua

Antes fora alegria e alvoroço
mas num baile ninguém a foi buscar
morreu o sonho no seu corpo moço
passou a noite a chorar

Tanto chorou que lhe chamaram louca
cada qual lhe levava o seu conselho
mas ninguém ninguém ninguém lhe beijou a boca
e a menina bexigosa viu-se ao espelho

Depois, fecharam a janela
vieram os vizinhos: ´Pobre mãe…´
vieram os amigos: ´Pobre dela…´
era tão boa e simples tão honesta,
… portava-se tão bem´
E dão-lhe beijos na testa
beijos correctos pois ninguém, ninguém
soube em vida matar a sua sede

´A menina bexigosa portava-se tão bem´
O espelho continua na parede.

Sidónio Muralha

Nascer em Portugal é um pau de dois bicos

Nascer em Portugal não é bom nem é mau. Depende. Para uns é uma sorte, para outros, um azar. Alguns fora daqui não são nada, muitos só lá fora são alguém. Nascer em Portugal é um pau de dois bicos. Quem canta bem este fado é o Manuel Freire (o José Afonso e o Adriano Correia de Oliveira ficam para amanhã).

Manuel Freire. Pequenos deuses caseiros. 1973.

Manuel Freire. Eles. Trova do Emigrante. 1971.

Crónica de um País Depenado

Depois de tanto prenúncio e tanto sofisma, Portugal acorda trágico. Não é uma mera reincidência da tragédia do fado ou da tragédia sebastiânica, trata-se de uma tragédia da acção, que nos faz e desfaz todos os dias. Não há, agora, guitarra ou nevoeiro que nos valha. Nem Castela ou Inglaterra que nos indigne. Cumpre-nos escolher sem chaves, apostar convictos numa travessia incerta. Não somos heróis, nem cretinos, transportamos apenas, à imagem do Zé Povinho, um peso que nos verga sem promessa de alívio. Mas, está escrito, a nossa alma não é pequena. Portugal é, sem dúvida, um país depenado, onde em cada esquina encontramos um Pedro Só (ver trailer e canção) dominado por “pequenos deuses caseiros”. Mesmo assim, indo além da “Cantilena” de Francisco Fanhais, conseguiremos cantar sem bico e voar sem asas, porque somos herdeiros da noite!

Trailer do filme “Pedro Só”, de Alfredo Tropa (1972); canção homónima de Manuel Freire.

Francisco Fanhais, Cantilena, 1969.