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O mundo a duas cores

A tentação do Cristo pelo diabo (1ª e 2ª tentações). Detalhe do teto em madeira pintada, c. 1130.40. Zillis Grisons, Suisse, Igreja de Saint-Martin.

O maniqueísmo é uma opção frequente na publicidade que aposta em apresentar um mundo a duas cores. No caso dos anúncios filipinos Cream e Watch, da empresa alimentar Jollibee, exorciza-se, ridicularizando, a ambição desmedida, ilusão, o dispendioso e o egoísmo fatores de uma felicidade. Oposta, a marca Jollibee “endorciza” a sensatez, o acessível e a família, garantes de uma felicidade verdadeira. O creme da juventude e o relógio do futuro contra a satisfação no presente.

A pandemia pode proporcionar-se como tema oportuno para uma publicidade omnívora. O anúncio singapuriano A message from the future, também da Jollibee, coloca-nos perante dois cenários que nos tocam, dentro e fora da pandemia: um mundo cinzento, claustrofóbico, solitário e doloroso versus um mundo colorido, aberto, feliz e familiar que ultrapassa a pandemia, que a Jollibee afasta e aproxima, respetivamente.

Marca: Jollibee. Título: Cream. Agência: GIGIL Philippines. Direção: Marius Talampas. Filipinas, janeiro 2022.
Marca: Jollibee. Título: Watch. Agência: GIGIL Philippines. Direção: Marius Talampas. Filipinas, janeiro 2022.
Marca: Jollibee. Título: A Message from the Future. Agência: BBH Singapore. Direção: Law Chen. Singapura, maio 2021.

A simulação da moral

Giovanni Buonconsiglio. Aristóteles e Fílis. Circa 1500-1515.

«Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube» (Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira, 1523).

Manifestam-se cada vez mais frequentes os anúncios que aderem ao formato patente no anúncio russo Born Inclusive, da Naked Heart Foundation. Creio que se inspiram, por um lado, na sofisticação (quase) laboratorial da psicologia experimental e, por outro, na vulgaridade mediática dos “apanhados”. Não duvido que sejam eficientes e convincentes, mas comportam uma característica que me provoca algum ceticismo e renitência. Encenam situações ideais que tendem a afastar o ruído ambiente, as intromissões, eventualmente imprevisíveis, dos efeitos “parasitas”, por outras palavas, da contingência das variáveis e dos fatores que os sábios apelidam “espúrios”. Arrefecem a efervescência da vida, propendem a pintar o mundo a preto e branco: o certo e o errado, o bom e o mau… Uma simplificação sedutora. Convoco a máxima do sofista Protágoras, “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”, e o pensamento de Pascal, a medida do homem é turbulenta, incerta e infinita. Lutar por um mundo melhor não significa caricatura-lo e descolori-lo. A redução maniqueísta e monocromática não me parece uma perspetiva apropriada, não é uma promessa auspiciosa.

Demasiado cínico? Estou em crer que mais vale cínico do que estúpido. “O indivíduo estúpido é o tipo de indivíduo mais perigoso”; “o indivíduo estúpido é mais perigoso do que o bandido; ” “É estúpido aquele que desencadeia uma perda para outro indivíduo ou para um grupo de outros indivíduos, embora não tire ele mesmo nenhum benefício e eventualmente até inflija perdas a si próprio” (Carlo Cipolla, Allegro ma non tropo, 1988).

Anunciante: Naked Heart Foundation. Título: Born Inclusive. Agência: Marvelous. Direção: Maksim Kolyshev. Rússia, março 2020.

Este comentário é, de algum modo, injusto para com o anúncio de sensibilização Born Inclusive, da Naked Heart Foundation. Trata-se de um exemplar de marketing e publicidade e como tal deve ser avaliado. Pede ser encarado à luz da linguagem do marketing e da publicidade e não de outra linguagem, por exemplo, a linguagem externa da filosofia e da sociologia. Neste sentido, este comentário apresenta-se como uma crítica “bárbara”, uma violência simbólica, na aceção de Pierre Bourdieu. Cai na falácia de impor um sistema de relevâncias, estranho, a outro sistema de relevâncias, original, francamente distinto. Do ponto de vista do marketing e da publicidade, este anúncio, criativo, consistente, pedagógico e eficaz, resulta excelente. Acerta no alvo: a predisposição para a discriminação não nasce connosco, é fruto da socialização primária, da endoculturação. Um pressuposto que vai de encontro a Rousseau (“A natureza faz o homem feliz e bom, mas (…) a sociedade degenera-o e o torna-o miserável”: Dialogues, 1772-1776) e a Durkheim (“A sociedade encontra-se portanto, a cada nova geração, na presença de uma tábua quase rasa sobre a qual é necessário construir a novo custo”: Éducation et sociologie, 1922).

Hieronymus Bosch. Removing the Stone of Stupidity. Detail. 1475-1480.

Acontece que um anúncio, para além de orbitar na esfera do marketing e da publicidade, não deixa de ser um fenómeno social. É composto por raízes (contexto), caule (suportes), ramos (redes e canais), folhas (ações) e sementes (efeitos) sociais. Não se pode escusar a uma leitura filosófica e sociológica, por mais corrosiva e cínica que seja. No que me respeita, não me inibo de ler nas entrelinhas de qualquer comunicação, principalmente aquelas que se são grávidas de consequências, quando não de efeitos perversos subliminares que não passam pelo crivo da consciência e do raciocínio acertados e oportunos.

Fuga da rotina

Taco BellA primeira parte do anúncio Routine Republic, da Taco Bell, lembra o filme Equilibrium (2002). Na República, totalitária, da Rotina, a passividade dos cidadãos é garantida pelo consumo de hamburgers. Em Libria a neutralização das emoções é assegurada por uma droga, o Prozium, injectada colectivamente ao som da propaganda do regime. Em ambos os casos, destaca-se o aparato policial.

Na segunda parte, esperava outra modalidade de libertação por parte do casal. No anúncio Odyssey (2002), da Levi’s (aceder http://tendimag.com/2011/09/16/libertacao/), o casal destrói os muros com o próprio corpo. Por seu turno, o muro dos Pink Floyd acaba, apesar de tudo, por se desmoronar. Em Berlim, aconteceu o que  se sabe. No anúncio Routine Republic, a via de libertação resume-se a um pequeno buraco no muro, por onde passa uma pessoa de cada vez. No fim de contas, os dois jovens são desertores (defectors), não são libertadores. A passagem do muro é individual. O mundo permanece dual, maniqueísta. Do lado mau, o totalitarismo, a rotina, o inumano e o hamburger; do lado bom, a democracia, a festa, o humano e o Taco Bell.

Marca: Taco Bell. Título: Routine Republic. Agência: Deutsche. USA, Março 2015.