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Deserdados do futuro

Polorum regina. Llibre Vermell de Monserrat. Iluminura. Séc. XIV.

Reservei a música medieval Polorum Regina para cartão de boas festas. Mas não consigo guardar nada para o futuro. Colide com a minha identidade: não deixes para amanhã o que podes fazer hoje. Sou uma aberração. Se não consigo guardar o futuro, tão pouco acerto no presente. As datas baralham-se. O meu calendário é de borracha: estica, encolhe e dobra. Polícrono (Edward T. Hall), não me dou com a agenda. Nunca usei. O que me prega partidas. Um dia, vou de Braga a Melgaço para a inauguração do Espaço Memória e Fronteira. Encontrei apenas alguns trabalhadores. A inauguração era na semana seguinte. Noutra ocasião, fui à inauguração de uma exposição na Casa Museu de Monção. À porta, apenas o funcionário: Então Senhor Professor o que o traz por cá? Era, também, na semana seguinte. Já aconteceu preparar-me para dar aula num feriado. Isto é o pão nosso de cada dia, mas continuo sem agenda e pouca memória. Não tem piada, mas é o meu lado Peter Pan, “a criança que nunca cresceu”. Acabei uns textos para o livro que, se não acelero, vai ser póstumo. Insiste em não se fazer sozinho. A publicação desses textos é uma tentação. Aposto que sairão um dia, antes da hora, nem que seja numa rotunda.

Mosteiro de Monserrat. Espanha.

A música Polorum Regina integra uma compilação de canções, o Llibre Vermell, do final do séc. XIV, guardada no Mosteiro de Monserrat, perto de Barcelona. É com respeito e admiração que imagino os peregrinos a cantar a Nossa Senhora: “Antes do parto, virgem fecundada por Deus, sempre permaneceste inviolada, estrela matutina absolve-nos”. Gente rude que não teve o privilégio de conhecer a civilização e a racionalização do Ocidente, nem a modernidade, a pós-modernidade, a hipermodernidade, a sobremodernidade, a modernidade tardia, a globalização, o pós-colonialismo, a sociedade de massas, a sociedade de consumo e a sociedade digital. Com a aceleração, depressa seremos pós-virtuais. E, no entanto, “os deserdados do futuro” mostram-se estranha e magistralmente humanos. Encaro-os com consideração e ternura. Deixo a ironia e o cinismo para os meus conterrâneos estacionados à porta do amanhã. Resquícios meus de um romantismo retrógrado.

Existem muitas interpretações da canção Polorum Regina. Algumas lembram mais um concerto do que uma canção de peregrinos. Outras são cantadas por uma única voz; atrevo-me imaginar os peregrinos a cantar em coro. Optei pela interpretação do Ensemble Obsidienne.

Obsidienne, ensemble vocal et instrumental. Polorum Regina. Livre Vermeil de Monserrat. Séc. XIV.