Beatas: Luz divina e pegada tóxica
Nem tudo o que arde purifica, nem tudo o que se apaga acaba.
Uma criança no balde do lixo
Às vezes, uma simples ideia vale, por si só, quase tudo. Com o risco, aliás, de ofuscar o resto. A figura de uma criança entrincheirada num balde do lixo para defender a reciclagem dos resíduos é quase um ovo de Colombo em termos de sensibilização publicitária. Por um tempo, quando pensar em reciclagem, acudirá esta imagem que, inspirada, dispensa grande elaboração.
A sociedade de sucesso e a flor do lixo
Sucesso, sucesso, sucesso! Estamos condenados ao sucesso. Ser mal sucedido é uma danação. Somos, provavelmente, a sociedade mais fisgada no sucesso. Pelo menos, no micromundo a que pertenço. Próximas só as sociedades de salvação, como a medieval e a moderna. A salvação pode ser encarada como uma espécie de sucesso eterno. Mas, já nesse tempo, o sucesso era decisivo: representava um indício de salvação (Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, 1905).
Nadamos, por palavras, atos e omissões, em lixo. O sucesso e o lixo não são opostos, mas complementares: quanto mais sucesso mais lixo, quanto mais lixo mais sucesso. A nossa sociedade é um monumento ao lixo. Mas não tem o monopólio. O homem medieval, e moderno, usava socos em que enfiava o calçado para o proteger da porcaria das ruas (ver Dois dedos acima da lama: https://tendimag.com/2016/09/30/dois-dedos-acima-da-lama/). O plástico é a nossa perdição e a nossa obsessão. Convive, contudo, com outras ameaças, agora, em segundo plano: os resíduos radioativos, as marés negras, as descargas tóxicas…
O anúncio Make it real, da Square Space, transforma o lixo em arte, e o Ferrão, o monstro resmungão da Rua Sésamo, em artista. Graças a uma fotografia e à Internet, o Ferrão torna-se, num ápice, uma super estrela contrafeita. Santa Senhorinha precisou de mais tempo para calar as rãs. Em suma, uma página profissional na Internet logra prodígios. É esse, precisamente, o negócio da Square Space: disponibilizar páginas de sucesso.
O tema da “arte do lixo” não é uma novidade (A Arte e o Lixo: https://tendimag.com/2013/09/15/7499/). Atente-se, por exemplo, nas esculturas com desperdícios de plástico do português, de renome internacional, Bordalo II (ver galeria). A expressão serve a gregos e a troianos. Para os detractores, denuncia a degradação a que chegou a arte. Para os adeptos, significa a autonomia da arte, contanto relativa e parcial. Quando se faz arte com lixo visa-se a forma e sublima-se o conteúdo. Por outro lado, o recurso ao lixo sublinha que a arte está para além da moral, da religião, da política, da economia e, como diria Pierre Bourdieu (La Distinction, 1979), do gosto bárbaro. A autonomia ergue-se como um baluarte da arte e do artista.
Ontem, um anúncio com o E.T., hoje, com o Ferrão. Será que o Pai Natal vai ter que rivalizar com os heróis infantis dos adultos?
O limpo e o sujo
Esta semana, na aula de sociologia da cultura, disse aos alunos que a vida quotidiana era pautada por uma enorme confiança nos outros e por um sem número de interditos. Alguns interditos desenvolvem-se e consolidam-se aos nossos olhos. Por exemplo, deitar pontas de cigarro para o chão. Brevemente, um fumador andará com um cinzeiro portátil. A tendência para a higienização tem séculos (Elias, Norbert, O processo civilizacional, 1939). Convém acrescentar a preocupação com o lixo destinado às nossas cabeças. Esta preocupação consubstancia-se em actividades como a censura ao nível da Internet e da publicidade. Trata-se de uma espécie de “ecologia do espírito”, para abusar de uma expressão de Gregory Bateson (Steps to an ecology of mind, 1972). Mas esta higiene dos neurónios comporta falhas. Não se sabe ao certo quem anda a tirar e a pôr lixo nas nossas cabeças. Os anúncios da campanha Dont be a tosser, da NSW Environment Protection Authority, mostram uma elevada intolerância ao lixo nos espaços públicos. No anúncio Report a tosser, apela-se, inclusivamente, à denúncia dos infractores. A ponta de cigarro destaca-se em três dos quatro anúncios de animação.
1) Anunciante: NSW Environment Authority. Título: Don’t be a Tosser! If it’s not in the bin, it’s on you. Produção: Paper Moose. Austrália, Outubro 2018.
2) Anunciante: NSW Environment Authority. Título: Don’t be a Tosser! If it’s not in the bin, it’s on you. Produção: Paper Moose. Austrália, Outubro 2018.
3) Anunciante: NSW Environment Authority. Título: Don’t be a Tosser! If it’s not in the bin, it’s on you. Produção: Paper Moose. Austrália, Outubro 2018.
4) Anunciante: NSW Environment Authority. Título: Don’t be a Tosser! If it’s not in the bin, it’s on you. Produção: Paper Moose. Austrália, Outubro 2018.
5) Anunciante: NSW Environment Authority. Título: Report a Tosser. Austrália, Outubro 2018.
A plastificação da inteligência
Le vent l’emportera
Tout disparaîtra
Le vent nous portera
(Noir Désir, Le Vent Nous Portera. Des visages des figures. 2001)
A plastificação dos oceanos inspira a publicidade. O anúncio espanhol da CREA, Sin Contaminación, e o anúncio Ocean of the Future, da Greenpeace, são disfóricos. Traçam um retrato cinzento da nossa irresponsabilidade. Para o anúncio Sin Contaminación, não estamos apenas a intoxicar o ambiente, intoxicámo-nos a nós próprios.
Marca: CREA. Título: Sin Contaminación. Espanha, Junho 2018.
Marca: Greenpeace. Título: Ocean of the Future. Agência: Ogilvy & Mather (London). Reino Unido, Abril 2018.
A fatrasia, estilo típico da Idade Média, alinha frases sem nexo. Mistura alhos com bugalhos num discurso sem sentido aparente. Gosto da fatrasia. Prefiro a paella ao puré. Por quê acrescentar o vídeo musical Le Vent Nous Portera, dos Noir Désir? Passa-se numa praia. É disfórico e estranho, um “bouquet de nerfs”. É percorrido por um sentimento de ameaça, sem como nem quando. Se isto não é suficiente para justificar o vídeo musical, acrescento que gosto dos Noir Désir! Gostar é o melhor passaporte para qualquer lugar e qualquer viagem.
Noir Désir, Le Vent Nous Portera. Des visages des figures. 2001.
Muitos anúncios do Tendências do Imaginário são filhos da pressa e do desperdício. O anúncio Sin Contaminación, consistente e original, merecia um comentário mais circunstanciado. O mesmo vale para o vídeo Le Vent Nous Portera, um filme subtil, um bom exemplar da canção francesa, com uma letra que se emancipa da estética do belo. Ando sobreocupado a perder tempo. A minha escrita parece o inverso de uma sopa de pedra: um calhou no fundo de um pote sem sombra de acompanhamento. Sem empratamento, sem decoração que disfarce e eufemize o mundo. Surpreendo-me, às vezes, a pintar cenários insensatos: com o vento actual, preocupa-me a plastificação dos oceanos, mas não me preocupa menos a plastificação da inteligência.
Homens do lixo
Alguém havia de se lembrar deles. Em boa hora. Com dignidade. Imagem com valor acrescentado. A diversidade humana passa pela publicidade, num mundo comunicacional cada vez mais dedicado a marretas e clones.
Marca: Mizuno. Título: Invisible Runners. Agência: F/Nazca Saatchi & Saatchi. Direcção: Fabricio Brambatti. Brasil, Janeiro 2015.
A Arte e o Lixo
Eu faço lixo, mas não me lixo; tu fazes lixo, mas não te lixas; ele faz lixo, mas não se lixa … Todos nos desfazemos em lixo. Navegamos e mergulhamos em lixo. Estamos lixados! Em 15 segundos mudos, a WWF e o Vancouver Aquarium apelam, de um modo original, a uma reciclagem mental.
A estética destes anúncios releva da arte? Vi menos e pior em exposições de arte contemporânea. Sobre o lixo e a arte, versa um capítulo fabuloso do romance Pays Sages (1977), de Rafael Pividal (tradução castelhana: Este ó Este, 1977): um artista soviético, incumbido de conhecer a arte ocidental, explica como esta faz arte com lixo. Fica por explicar como se faz lixo com arte. Prémio Goncourt, Rafael Pividal consta entre os lbons professores que tive na Sorbonne: ensinava Sociologia da Arte e Sociologia das Instituições Psiquiátricas. Pividal está agora, com outros mestres e amigos de grata memória, a saborear, nos Campos Elísios, uma tímida cerveja. Tinha esta minha idade quando foi meu professor (ver http://tendimag.com/2012/03/06/bisbilhotice-de-massas-comum-online/).
Anunciante: WWF / Vancouver Aquarium. Título: Paddle. Agência: McCann Erickson. Canadá, Setembro 2013.
Anunciante: WWF / Vancouver Aquarium. Título: Breach. Agência: McCann Erickson. Canadá, Setembro 2013.
Anunciante: WWF / Vancouver Aquarium. Título: Dive. Agência: McCann Erickson. Canadá, Setembro 2013.