Sermão de Joana d’Arc às pombas
Lá vai uma, lá vão duas, três pombas a descansar
Uma é minha, outra é tua, outra é de quem a agarrar
(José Afonso, Avenida de Angola, 1970).
Sauvez la France é um anúncio contra a abstenção nas eleições presidenciais francesas do dia 23 de Abril de 2017. Convoca o sentimento de identidade nacional. Mas, que identidade nacional? Que versão? Partilhada por que segmento da população? Existem várias interpretações da identidade nacional francesa. Não o admitir significa esquecer a história do país, atrofiar o presente e não estar preparado para o futuro. “Salvar a França”, de quê e de quem? Do voto? Do “inimigo interno”? Dos próprios franceses?
Este anúncio combate a abstenção. É empolgante. É também ideologicamente implicado (engagé). Reconheço-me na imagem da França veiculada pelo anúncio. Mas não ignoro que uma parte muito expressiva dos cidadãos franceses não se revê em algumas das frases compiladas. Duvido, cada vez mais, que alguém ganhe em se apoderar de uma identidade nacional. Quando pensa que ganha, já está a perder. As últimas frases vêm na crista da onda do texto; são cativantes, mas falsas. Se existe tanta gente empenhada em jardinar as identidades nacionais, é porque a horta rende.
Anunciante: Collectif Sauvez la France. Título: Sauvez la France. França, Abril 2017.
José Afonso. Avenida de Angola. Traz outro amigo também. 1970.
À Portuguesa
O anúncio canadiano (http://tendimag.com/2013/12/28/a-canadiana/) e, em particular, o anúncio irlandês (http://tendimag.com/2013/12/27/a-irlandesa/) tocam num tema que me é caro: como é retratada a identidade nacional na publicidade portuguesa? Proliferam as marcas e os produtos: energia, cerveja, queijo, massa, vinho, azeite, operadores de telemóveis, superfícies comerciais… Sobressaem, de imediato, os anúncios do azeite Gallo (um mafarrico queirosiano segreda-me: o “Tou xim, é pra mim”, da Telecel”: vídeo 1).
Telecel. Tou xim, é pra mim, 1995
Os anúncios do azeite Gallo distinguem-se quer pela focagem na identidade nacional, quer pela longevidade do padrão (vídeo 2 a 6). Ressalvando o anúncio mais antigo (1989), todos os outros convocam o fiel amigo, o bacalhau, epíteto, por sinal, dos portugueses em França. “O que é nacional é bom”. E se for bacalhau regado com azeite?… Este é um dos nossos pares emblemáticos: bacalhau com azeite! A especialista da casa em identidade nacional não quer comentar? Algum destes anúncios do azeite Gallo conjuga tradição e modernidade? E o “Tou xim, é pra mim”? Valem caricaturas? Os primeiros anúncios da Gallo inspiram-se nas incontornáveis construções da figura do português desenhadas pelos “descobridores do povo” na segunda metade do século XIX, construções que viriam a ser estilizadas, divulgadas e inculcadas pelo Estado Novo. A identidade nacional como um baú onde mal cabem tantas e tamanhas vitalidades arcaicas. Este baú tinha as suas raízes no campo. O anúncio mais recente desta série, de 2006, rompe com esta ancoragem tradicional. As personagens principais são citadinas, tal como os respectivos estilos de vida. Alguns motivos mantêm-se populares, a postura e os gostos nem por isso. Terá este anúncio conseguido o tal cruzamento, íntimo e natural, entre tradição e modernidade? Talvez sim. Representa uma tentativa de conjugar tradição e modernidade, mas continua refém dos conteúdos, pouco ou nada avança em termos de forma. Talvez não… Uma identidade nacional não é um baú a abarrotar de particularismos mais ou menos arcaicos, nem tão pouco um desfile de símbolos mais ou menos notórios, a modos como uma montra descomunal pejada de postais ilustrados. A suposta identidade nacional é uma arte de (con)viver com o próximo e com o outro, uma forma, uma forma relativa de ser, de estar e de sentir, de preferência, em conjunto.
Azeite Gallo, 1989
Azeite Gallo, 1991
Azeite Gallo, 1993
Azeite Gallo, 1995
Azeite Gallo, 2006.