O sorriso dos alimentos

O Tendências do Imaginário está a atravessar um período de abstinência em matéria de anúncios publicitários. Quebra de qualidade ou saturação? Encontrar um bom anúncio está-se a tornar mais difícil do que quebrar o ovo de Colombo. Já não sei procurar? Entrei, há muito tempo, em piloto automático. O fenómeno é estranho. Certo é que, bonitos ou feios, só coloco anúncios de que gosto.
O anúncio checo No Smile Land, da Rohlik.cz, revelou-se difícil de desencantar e transportar. Nas histórias vulgares, as pessoas perdem o riso; nesta, não perdem o que não têm. Mas encontram-no! Sem palhaço nem fada madrinha. Graças à comida! Para quem é leitor do François Rabelais, a ligação entre a comida e o riso é familiar. Por sinal, as partes do corpo mais associadas à comida, a pança e a bunda, são também as mais risíveis.
Existem anúncios que sobressaem pelas atmosferas que criam. O No Smile Land recorda os contos de E.T.A. Hoffmann.
Alimentação e diálogo cultural
“Qual é a importância de todas essas imagens do banquete?
Já explicamos que elas estão indissoluvelmente ligadas às festas, aos atos cómicos, à imagem grotesca do corpo; além disso, e da forma mais essencial, elas estão ligadas à palavra, à conversação sábia, à verdade alegre. Já notamos enfim a sua tendência inerente à abundância e à universalidade (…). Na absorção de alimentos, as fronteiras entre o corpo e o mundo são ultrapassadas num sentido favorável ao corpo, que triunfa sobre o mundo (…) Essa fase do triunfo vitorioso é obrigatoriamente inerente a todas as imagens de banquete. Uma refeição não poderia ser triste. Tristeza e comida são incompatíveis (enquanto que a comida e a morte são perfeitamente compatíveis) (…) O triunfo do banquete é universal, é o triunfo da vida sobre a morte. Nesse aspecto, é o equivalente da concepção e do nascimento” (Bakhtin, Mikhail, 1987, A cultura popular na idade média e no renascimento, São Paulo, Hucitec, pp. 245 e 247).
E não digo mais! Apenas o seguinte: o banquete é um dos principais lugares de comunhão. Comunhão com o outro, comunhão com o mundo e comunhão com a transcendência. No banquete, serve-se e come-se o pão e o vinho. O vocabulário do banquete, do comer, é, porventura, o mais rico independentemente da língua. O anúncio Zomer, da Plus Supermarkets, foi particularmente feliz ao eleger a troca alimentar como charneira do diálogo cultural.
Marca: Plus Supermarkets. Título: Zomer. Agência: JWT Amsterdam. Direcção: Ismael ten Heuvel. Holanda, Agosto 2018.
O Perfume Filosofal
A pedra filosofal liquefaz-se e desfaz-se no ar. Descobriu-se uma fragrância que “transforma um rapaz em homem, as raparigas em namoradas, e as mães em criaturas aflitas”. O nome do prodígio é Old Spice, o perfume do delírio. As criaturas do anúncio são tão estranhas que lembram os infernos do Alto Renascimento. A continuar deste jeito, a Old Spice tornar-se-á numa espécie de Hieronymus Bosch da publicidade.
Marca: Old Spice. Título: Mom Song: 60. USA, Janeiro 2014.
Invocar os infernos e Hieronymus Bosch é um exagero. Certo é que muitos anúncios de perfumes exalam tentação e pecado. Por outro lado, se há infernos dantescos, também há, segundo outros testemunhos, infernos aprazíveis. Se Deus recompensa os justos, por que haveria Lúcifer de castigar os pecadores? Atente-se nesta episódio do livro Pantagruel, de François Rabelais (1532).
Na refrega contra os gigantes, Epistémão, amigo de Pantagruel, foi decapitado. Panurgo consegue, porém, “chamá-lo à vida”:
“De repente, Epistémão começou a respirar, depois a abrir os olhos, depois a bocejar, depois a espirrar, e por fim deu um grande peido da sua reserva (…) Desatou então a falar e contou que tinha visto os diabos, falara sem cerimónias com Lúcifer, fora muito bem tratado no inferno e nos Campos Elísios, a todos garantindo que os diabos fazem boa companhia. Quanto às almas danadas, explicou que muito aborrecido se sentia por Panurgo ter sido tão rápido a chamá-lo à vida.
– Porque olhá-las (disse ele) é um singular entretenimento.
– Então porquê? – quis Pantagruel saber.
– Não as tratam tão mal como pensais (disse Epistémão), embora o seu estado se altere de estranha forma. Sim, porque vi Alexandre o Grande remendar calças velhas para ganhar a sua pobre vida.
Xerxes apregoar mostarda
Rómulo era vendedor de sal
Numa fazia pregos…”
(François Rabelais, Pantagruel, Lisboa, Frenesi, 2006, p. 168-170).
Segue-se uma centena de nomes de figuras históricas (François Rabelais é um caso extremo da vertigem das listas de que se ocupa Umberto Eco). Em suma, o inferno trata bem os condenados, “embora lhes altere o seu estado de estranha forma”. Opera uma inversão social: Quem era poderoso na terra, é humilde no inferno. Assim o ilustra a gravura de Gustave Doré.