Dar vida à morte

Giotto. Ressurreição de Lázaro. 1320s
Pois é impreterível que este corpo que perece se revista de incorruptibilidade, e o que é mortal, se revista de imortalidade. No momento em que este corpo perecível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal, for revestido de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: “Devorada, pois, foi a morte pela vitória!” “Onde está, ó Morte, a tua vitória? Onde está, ó Morte, o teu aguilhão?” (Coríntios 15).
O Ocidente teve sempre dificuldade em lidar com a morte. A crença na ressurreição e na fonte da juventude é um sintoma. O regresso e o adiamento. Os anúncios de Marcel Burgos, da Acciona e da PlayStation 3, convocam esta fé angustiada.
O anúncio Re alude ao renascimento e à ressurreição. Um Big Bang à escala humana. Menos Frankenstein, costurado com pedaços alheios, e mais Osíris, assassinado por Seth. Ísis, a esposa, recolhe o corpo despedaçado e devolve a vida a Osíris.
O anúncio Victor lembra o Oskar, o menino que recusa crescer, do filme O Tambor (1979), uma adaptação do livro homónimo de Gunter Grass (1959). Lembra, também, as pinturas da fonte da juventude, como a de Lucas Cranach O Velho (ver https://tendimag.com/2013/10/10/a-fonte-da-juventude/). Forçando um pouco, no Retrato de Dorian Gray (1891), de Oscar Wilde, o envelhecimento é suspenso ou, melhor, deslocado.
Para aceder aos anúncios, carregar nas imagens seguintes.
Marca: Acciona. Título: Re. Agência: McCann Milan. Direcção: Marcel Burgos. Itália, 2009.
Marca: PlayStation 3. Título: Viktor. Agência: Del Campo Nazca Saatchi & Saatchi (Buenos Aires). Direcção: Marcel Burgos. Argentina, 2011.
A vara do noivo

Casamento da Virgem Maria. Livro de Horas de Giangaleazzo Visconti, c. 1380. Por Giovanni de’Grassi.
Mal me sentei à secretária, uma voz interpela-me: – Está na hora de dedicares um artigo ao casamento.
A minha pesquisa de imagens tem três velocidades: rápida, lenta e ultralenta. A maioria quase nem as enquadro. Outras deixam-me, porém, congelado, pasmado, absorto em configurações e pormenores. Foi o caso desta iluminura do Casamento da Virgem Maria, incluída no magnífico Livro de Horas de Giangaleazzo Visconti (c. 1380).
José e Maria casam-se à moda medieval. A cerimónia culmina no momento em que os noivos se dão a mão direita. Os homens, à direita, estão separados das mulheres, à esquerda. Esta segregação por género nos ofícios religiosos ainda era prática corrente na minha infância. O que me intriga é que cada homem segure uma vara, e que alguns se empenhem em a partir. A vara de José tem uma pomba.
Como entender este protagonismo das varas? Esta iluminura é um caso isolado? Corresponde a um ritual ou a uma crença? Nada como procurar, navegando entre textos e imagens.
As varas aparecem em várias pinturas, todas alusivas ao casamento da Virgem.
No Políptico de San Pancrazio (Uffizi, 1335-40) e na Igreja de Notre Dame des Fontaines (França, fim do séc. XV) os homens, pouco atentos à cerimónia, canalizam ostensivamente o descontentamento para as varas. No quadro de Rafael (1504), o ambiente é mais sereno. As varas estão, agora, bem alinhadas. Apenas um homem parte, compenetrado, a sua vara.
Foi fácil encontrar imagens, respeitantes ao casamento da Virgem, com homens munidos com varas. A iluminura do Livro de Horas de Visconti não é, portanto, um caso isolado. Captar o significado do conteúdo dessas imagens foi mais difícil. Nos rituais matrimoniais da Idade Média, nem um suspiro de indício. Estive para desistir. Como a raposa das uvas, perguntava-me: que te interessam as varas do casamento da Virgem? Mas lá acabei por atracar em porto abençoado: uma página da internet do Centre de Recherche sur la Canne et le Bâton.
Em artigo intitulado A Vara anuncia casamento de José e Maria, Laurent Bastard escreve (minha tradução):
“Até ao Concílio de Trento, no século XVI, circulavam na Cristandade os Evangelhos apócrifos, ou seja, não oficiais, para além dos de Mateus, Lucas, Marco e João. Os artistas da Idade Média foram aí buscar muitos dos detalhes reproduzidos na pedra. Naquele que é conhecido por “Proto-evangelho de Tiago” (porque relata acontecimentos anteriores aos dos quatro evangelhos), datado do século II, descobre-se um rito associado às varas e à intervenção divina.
Eis o texto em que é questão encontrar um esposo para Maria: “O padre vestiu o hábito com doze pequenas campainhas, penetrou no Santo dos Santos e pôs-se a rezar. Eis que um anjo do Senhor apareceu dizendo: “Zacarias, Zacarias, sai e convoca os viúvos do povo. Que cada um traga uma vara. E aquele a quem o Senhor mostrar um sinal a tomará como esposa.” (…) José pousou o seu machado e foi juntar-se ao grupo. Aproximaram-se, em conjunto, com as respectivas varas, do padre. O padre pegou nas varas, entrou no templo e rezou. Acabada a oração, retomou as varas, saiu e devolveu-as. Nenhuma apresentava qualquer sinal. Ora, José recebeu a sua em último lugar. E eis que uma pomba levanta voo da sua vara e pousa na sua cabeça. Então o padre: “José, José, disse, tu és o eleito, és tu quem tomará conta da virgem do Senhor” (http://www.crcb.org/la-baguette-annonce-le-mariage-de-joseph-et-marie/.html).
Dois quadros de Giotto ilustram perfeitamente esta passagem do evangelho apócrifo de Tiago. No primeiro, um grupo de homens, cada um com sua vara, entra no templo. No segundo, José e Maria casam-se. Os homens preteridos não escondem a desilusão. Na vara de José, a pomba está prestes a levantar voo. Missão cumprida.