Encomendação das almas. Vice e Versa
O Tendências do Imaginário está a desviar-se do pensamento para o sentimento. Importa travar. A quem interessam os acordes de um violino pessoal?


Dor em quarto minguante no clamor da madrugada. Fogo que queima as nuvens. Seara que aborrece a ceifeira. Sarabanda em eira despida. Teimosia realizadora da esperança. Encomendação do Aquém, pelos presentes. O outro lado da encomendação das almas, filmada em Penha Garcia, Idanha-a-Nova, por António Ventura, numa bela curta-metragem documental de 2017. Agradeço a partilha à Rita Ribeiro. Como contraponto, três músicas do grupo irlandês The Pogues: Dirt Old Town; Young Ned of the Hill; e Tuesday Morning.
La esperanza caminando despacito

Una soledad que no acaba
…
Uno sale de uno
– un día –
y se encuentra
Y sín saludarse se reconoce.
Entonces se ve:
– el alma encogida,
– arrugas en la sinceridad,
– un dolor por ahí,
acurrucado
(como un niño poeta frente a la muerte),
y la vida,
caminando despacito,
despacito,
encorvada…
(René Bascopé Aspiazu. Las Cuatro Estaciones. Ed. La Mariposa Mundial. La Paz, Bolívia. 2007).
Uma solidão que não acaba
…
Um sai de si próprio
– um dia –
e encontra-se
E sem saudar-se reconhece-se
Então vê-se:
– a alma encolhida
– rugas na sinceridade
– uma dor ao redor,
de cócoras
(como uma criança poeta face à morte),
e a vida,
caminhando devagarinho,
devagarinho,
encurvada…
(René Bascopé Aspiazu. Las Cuatro Estaciones. Ed. La Mariposa Mundial. La Paz, Bolívia. 2007).
Recuperação
A um primo irmão

Saio pouco de casa. Mas tento abraçar o mundo. Como posso e se propicia. O Tendências do Imaginário ajuda, como meio de comungar com o silêncio da rede.
O concerto em Dó Maior, RV 443, para flautim, de Antonio Vivaldi, consta entre as minhas músicas prediletas. Uma bênção, um sopro único de ternura alegre e esperança tranquila. Boa recuperação!
História de um melro que morreu por ser feliz

Um melro costuma fazer ninho no quintal. Atarefado, tem-se saído bem com os gatos. Pior destino teve “o melro” do Guerra Junqueiro, vítima da vingança do Velho Padre Cura, num extenso conto em verso que o meu avô recitava de cor. Segue a digitalização do poema “O Melro” a partir da segunda edição ilustrada do livro A Velhice do Padre Eterno (1ª edição: 1885). Segue o respetivo pdf,
Quem fala em melros, pode falar em rouxinóis. Porque a opressão e a maldade não têm pouso exclusivo. Ao melro raptaram-lhe os filhos; ao rouxinol da Cantilena de Francisco Fanhais cortaram quase tudo.
Com imagens pode dizer-se muito. Com poucas imagens pode, por vezes, dizer-se ainda mais. Na curta-metragem dos bauhouse, sopra-se no medo e na esperança até que explodem como tiros e bombas. Porque as nossas asas são tão frágeis como as dos pássaros.
Ainda quero acreditar

“Ouvi um sonho” / “Ainda creio ouvir sob as palmeiras a sua voz terna e sonora como uma canção de pombos” (Georges Bizet).
Segue uma versão instrumental da ária Je Crois Entendre Encore, da ópera Les pecheurs de perles (1863), de Georges Bizet. Para três versões interpretadas por Allison Moyet, Plácido Domingo e David Gilmour, ver Ouvir Mais Uma Vez (https://tendimag.com/2021/11/29/ouvir-mais-uma-vez/).
Esperança alcoólica

Com a exacerbação da Covid-19, os anúncios publicitários tendem a ser de alerta ou de promessa. O anúncio brasileiro Astronauta, da marca de Whisky Johnnie Walker, é uma celebração cósmica enrolada numa esperança hiperbólica com malte. “A vida vai se encher de possibilidades outra vez”.
Nove meses

O José Neves enviou-me o anúncio 9 meses, da Volkswagen. Interpretar é jogar o jogo. Um coro trágico recita notícias pandémicas. Um automóvel segue o seu destino. O coro silencia-se e o automóvel estaciona junto a um hospital. Sai um casal. O homem ajuda a mulher grávida. O ambiente ambarino, “o âmbar de um tempo humano e divino” (https://tendimag.com/2017/06/28/despasmar-o-prazer/), é complementado pela tranquilidade do azul celeste. Apesar das ameaças, o Volkswagen transporta, seguro e sereno, a vida. O anúncio é marcado pelo sentido de oportunidade: nove meses de gravidez, nove meses de pandemia. Recorre a dualidades clássicas: a morte e a vida: a ameaça e a proteção. Não obstante o momento trágico, o anúncio emana esperança: “apesar de todo, la luz siempre encontra el caminho”.
Esperança e resignação

Gosto do anúncio Hope is Power, do The Guardian. Uma alegoria bem lapidada. Dispersão ao mínimo e saturação ao máximo: a aflição de uma borboleta fechada dentro de casa, que não baixa as asas. E o vidro quebra-se, num instante milagroso de libertação. Um anúncio sem palavras (as borboletas não falam), excepto o laconismo das duas frases escritas no final do anúncio: Change is possible; Hope is power. Neste tipo de anúncio, a banda sonora é crucial. Revela-se uma excelente escolha a música, despojada, Nothing Changes, de Anaïs Michell, do álbum Hadestown (2010). A duração da canção (0:51) “combina” com a duração do anúncio (1:00).
O anúncio Hope is Power lembra o anúncio Release Me (2007), da Saab. Vitalista e mais turbulento, Release Me versa sobre os mesmos tópicos: o encarceramento e a vontade de libertação. Retomo-o.
Yes We Can!
O ser humano sonha a diferença, aspira imprimir a sua marca. Houve tempos em que a religião e a tragédia lhe proporcionavam uma vocação e um destino.
“Saindo, viu Jesus um homem chamado Mateus, sentado na coletoria, e disse-lhe: “Segue-me!” Ele se levantou e o seguiu” (Mateus 9:9).
Hoje, a religião e a tragédia desafiam-no a visar, para além da vocação e do destino, o improvável, senão o impossível. Obama, aos microfones, repete: “Yes We Can!” A Amnistia Internacional reforça: “You are powerfull”. Eis um apelo para os ouvidos do coração, porque “o coração tem suas razões, que a própria razão desconhece” (Blaise Pascal).
Anunciante: Amnesty International. Título: You are powerful. Agência: Mother (London). Direcção: Kim Gerhig. UK, 2009.