Energia e paz

Não tenho emenda. Adoro partilhar música. “Dar música”. Não sei se boa, se má. Música de que gosto. Sobejam os motivos e as ocasiões para colocar uma música. Umas vezes, acabo de a ouvir; outras, surpreende-me num filme, num anúncio, numa curta-metragem; noutros casos, é o arranjo ou a interpretação, mais do que a obra, que interessa; por último, algumas ideias quando surgem, surgem musicadas, por exemplo, associações tais como o duo “energia”/”paz” ou a trindade “jovialidade”/”elegância”/”leveza” (ver: https://tendimag.com/2022/01/02/jovialidade-elegancia-e-leveza/). Configurações como estas dão-me música. Vários autores assumem que, enquanto criam, conseguem ligar automaticamente a mão que escreve ao cérebro que pensa. Eu acrescento o ouvido, que dança com o cérebro na mão.
Energia e paz não são inconciliáveis, pois não? Parece, mas não! Pares como este, improváveis, costumam revelar-se deveras potentes na mobilização simbólica. Ao conjugar “energia” e “paz”, logo me acode o celebérrimo slogan “a força tranquila” que, criado pelo mago da publicidade Jacques Séguéla, é considerado como o responsável pela vitória de François Mitterand nas eleições presidenciais francesas de 1981 (ver https://tendimag.com/2015/02/18/criacao-e-recriacao/). A “energia” e a “paz” prestam-se também aos alegros e adágios de Karl Jenkins. Volvidas várias décadas, o slogan de Jacques Séguéla e os acordes de Karl Jenkins, “força tranquila”, “energia” e “paz, continuam a ressoar em muitas caixas cranianas.
Pergunto-me por que insisto em queimar, dia após dia, tantas “celulazinhas cinzentas” com a publicação destes pequenos artigos. Muito investimento, pouco proveito. Para comunicar ideias e sentimentos? O tamanho da audiência não o justifica, talvez a qualidade. Trata-se de uma fixação narcisista, de um vício compulsivo: o prazer de ler enquanto se escreve, com a ilusão de se rever no espelho da própria escrita. Não é uma virtude, nem uma dádiva, é uma tentação e um pecado. Por isso, mal termino um texto, o abandono à sua sorte. Cativa-me o rebento, aborrece-me a disseminação.
Reincidência. O híbrido e o ciclista

Sem descurar a pedalada belga, holandesa e chinesa, a França é, em termos míticos, o país do ciclismo. Retenha-se, por exemplo, o filme As Bicicletas de Belleville (ver anexo 2) ou o álbum Tour de France, dos Kraftwerk (anexo 3). O protagonista do anúncio Unstoppable, da Renault, é um veterano ciclista que regressa à estrada. Barroco, o argumento não é original (anexo 1). Um sucedâneo da lenda da fonte da juventude, neste caso, a prenda.. Empolgante, o anúncio é extenso, sinuoso, invertido e retorcido. Ironicamente, vejo e revejo este anúncio sentado numa cadeira de rodas.
Anexo 1: Anúncio Dream Rangers.
Anexo 2: Trailer do filme Les Triplettes de Belleville.
Tour de France, dos Kraftwerk.
Pilhas de salvação

Vi um gaio a atacar um melro, junto à cerejeira. A sete metros. A lei da vida. Há quem diga que, com a pandemia, a natureza se aproximou.
Há anúncios felizes. Revived, da Duracell, cativa a atenção durante cerca de cinco minutos. Conta a história, inspirada, sensível e bizarra, de uma criança que nasceu com um cordão nas costas, ficando dependente do único e inseparável amigo que lhe dá corda. Um dia o cordão solta-se. As pilhas Duracell são a salvação. Não há falha humana que a tecnologia não resolva.
Bateria. Jenkins.

Estou com as pilhas gastas. Acabei um artigo e comecei um prefácio. Somei quatro júris nas duas últimas semanas. Guardo, com zelo, uma trintena de trabalhos práticos para corrigir e tenho, graças ao Senhor, muito que plataformar. Não me queixo, tudo isto é deveras estimulante! Na gíria académica, são amendoins. Mas, para recarregar as baterias, preciso de alguma música que me dê energia. Por exemplo, Palladio, Concerto Grosso para Orquestra de Cordas (1996), de Karl Jenkins, com duas irmãs, pouco compenetradas, no violino. Para complementar, um ramalhete de notas infernais, o Dies Irae Requiem (2008), também de Karl Jenkins. De ficar boquiaberto. E, assim, deste jeito, um nada basta e, até, sobra.
Cavalgada de imagens
Vim a banhos, banhos de solidão.
O anúncio Actitud de Campeones, da Pony Malta, lembra um carrossel de imagens em corridinho. A explosão e a aceleração das sequências provocam palpitações no olhar e soluços no cérebro. Parece a Cavalgada das Valquírias, de Richard Wagner. Um cavalo à solta, “este corcel que não sossego à desfilada no meu peito (José Carlos Ary dos Santos). Uma “passagem para o breve, breve instante da loucura” (idem). Potência, desejo, tonificação… Aturdidos ou excitados, toma-nos a sede de vencer, a sede de beber, de beber Pony Malta, o mais milagroso dos remédios santos.
Marca: Pony Malta. Título: Actitud de Campeones. Agência: Mullen Lowe. Direcção: Juan Carlos Beltrán. Colômbia, Agosto 2018.
Richard Wagner. Cavalgada das Valquírias. A Valquíria. 1856.
Fernando Tordo / Ary dos Santos. Cavalo à Solta. 1971.
Sem igual
Como promover um produto num ambiente grotesco? Num anúncio, durante uma reunião exaltada, um copo de cerveja faz a diferença. Noutro anúncio, da mesma marca, uma mulher provoca um pandemónio doméstico enquanto bebe, compenetrada, uma cerveja. Pode o mundo entulhar de duplos, os bebedores de cerveja desta marca são únicos! E nós como eles. Parece magia! Produtos fabricados em massa têm o condão de nos fazer sentir excepcionais. À semelhança da moda: ser parecido para ser diferente. As campanhas anti tabaco são outra louça: despejam pacotes de mensagens sobre uma massa de fumadores. Ninguém é único, ninguém se identifica, ninguém se redime. Nem sequer há pessoas. Só viciados e vítimas.
Marca: Koff Crisp. Título: Meeting. Agência: Hasan & Partners. Direcção: Klaus Spendser. Finlândia, Março 2018.
Marca: Koff Crisp. Título: Good Morning. Agência: Hasan & Partners. Direcção: Klaus Spendser. Finlância, Março 2018.
Malmequer
Desfolhar anúncios publicitários como quem desfolha um malmequer.
Gosto! Anúncio com humor fantástico centrado no tema da luz. A morte que precede a lâmpada Ocedel tem tanto de catastrófico como de risonho e promissor. O anúncio progride sob o signo do amor e da esperança. A figura do homem vaga-lume é luminosa.
Marca: Ocedel. Título: Firefly Man. Agência: Nitto Tokio. Japão, Dezembro 2015.
Não gosto! Anúncio bem concebido e bem realizado, centrado na interacção trágica entre o amor e a morte. Nem sequer falta o “beijo da morte”! A morte é medonha, fatal, e a vida pecadora e frágil. Após décadas de planalto, vislumbram-se montanhas de medo. O medo propaga-se nas nossas sociedades. Porventura, mais do que a liquidez, as condutas de risco e o tribalismo. Não aprecio a educação pelo medo. Já há medo quanto baste! Livrai-nos de sociedades assustadas!
Anunciante: Western Cape Government. Título: The First Kiss. Agência: Y&R Capetown. África do Sul, Março 2016.
Espinafres
A leveza não é o único valor relevante na sociedade contemporânea. A potência, associada eventualmente à energia, à velocidade e ao sexo, também é um valor apreciável. O valor da potência destaca-se na publicidade em segmentos tais como os automóveis, as sapatilhas e as bebidas energéticas. Nos anúncios da NOS e da Burn (censurado), temos duas versões dos efeitos da “poção mágica”.
Marca: NOS. Título: With This NOS I Will. Agência: Mistress UK. Direcção: Ryan Hope. UK, Maio 2015.
Marca: Burn. Título: The morning. Agência: Fullsix. Direcção: Murat Gomullu. Itália, 2007.
Desgravitar: O Gato e a Torrada
Esta “Gatorrada” surpreendeu-me, o que é raro. Deixei-a a marinar para me habituar. Assenta num paralogismo: os gatos caem sempre sobre as patas e as torradas, segundo a “lei de Murphy”, com a parte barrada para baixo; se colocarmos no dorso de um gato uma torrada com a parte barrada para fora e os deixarmos cair, estes acabam por ficar suspensos no ar, uma vez que o gato nunca cai de costas, nem a torrada cairá com a parte barrada para cima. (http://uncyclopedia.wikia.com/wiki/Murphy%27s_law_application_for_antigravitatory_cats). Esta anti-gravidade, associada ao movimento giratório perpétuo, constitui uma fonte de energia inesgotável.
A publicidade é, porventura, a mais predadora das artes. Inspira-se a torto e a direito. Pega as ideias onde estiverem. Para ilustrar a popularidade do caso do gato e da torrada, acrescento um vídeo publicado em 2006.
Marca: Flying Horse. Título: Gatorrada / Cat-toast. Agência: Ogilvy. Direção: Tomat. Brasil, Maio 2012.