A parte maldita
O Meco envia-me, de vez em quando, vídeos do outro mundo. Cáusticos e desconcertantes. Ameaçam a nossa “segurança ontológica”. A noção de estranhamento é complexa (Sigmund Freud; Wolfgang Kayser). Dizer que o estranho abala o nosso mundo familiar é pouco. Por um lado, existe familiaridade no estranho. Reconhecêmo-nos no que estranhamos. Uma parte de nós integra o monstro. Por outro lado, o estranho vive dentro de nós. É a nossa “parte maldita” (Georges Bataille). As nossas pulsões e os nossos fantasmas mobilizam-nos para o estranho. O monstro nunca está perfeito porque nós não paramos de o retocar. Estamos, assim, perante uma multiplicidade de vozes, uma polifonia, em diálogo interior e exterior, no sentido do dialogismo de Mikhail Bakhtin. A curta-metragem Cream, de David Firth, constitui um excelente exemplo: revemo-nos aqui e além, com maior ou menor incómodo, mas não desligamos.
Cream. Por David Firth. Brainfeeder films. Maio 2017.
O charme da disforia
O anúncio Birth Of A Spartan, para o Halo: Reach, da Xbox, mergulha-nos no mundo da ficção científica. Pouco agradável, provoca emoções fortes. Familiariza-nos com o estranho, com a hibridez. Familiariza-nos com nós próprios, cada vez mais híbridos, cada vez mais estranhos.
O anúncio lembra os guerreiros de terracota desenterrados na China em 1974: um exército, datado do século III aC, com 8.000 soldados, 130 carruagens com cavalos e 150 cavalos de cavalaria. O espartano do anúncio tem um corpo humano mas comporta-se como um robot. Cada um dos 8 000 soldados de Xi’an tem cara própria. Não parece, no entanto, ter vontade própria. Este anúncio é de 2010, onde nos pretendia levar Noam Murro, o realizador? Aos nossos recalcamentos? Aos nossos fantasmas?
Marca: Halo: Reach / Xbox. Título: Birth of a Spartan. Agência: TwofifteenMcann San Francisco. Direcção: Noam Murro. USA, 2010.
Indefinição e instabilidade
Máscaras estilizadas, parcas em feitio e expressão. Repetitivas e incómodas. São disfóricas. A inquietação não precisa de grandes atavios para se instalar. Um monstro, quanto menos definido, maior o efeito, perdão, pior o efeito. A propósito da “coisa” (The Thing, John Carpenter, 1982), um ser de substância improvável, Omar Calabrese escreve: “a coisa não tem uma forma autónoma, mas as suas células imitam as dos seres que lhe passam mais perto, até as engolirem e se transformarem nelas. O que faz que, quando a coisa é enquadrada, seja na realidade ora um cão, ora um membro da expedição” (A Idade Neobarroca, Lisboa, Edições 70, 1999, p. 109). O monstruoso reconhece-se, mas desconhece-se. E quanto mais se desconhece, maior a monstruosidade. Em suma, um anúncio excelente!
Marca: Zona Jobs. Título: Lottery. Agência: McCann, Buenos Aires. Direcção: Turbo Trueno. Argentina, Fevereiro 2014.
Inconveniência amigável
A publicidade insiste em perturbar o nosso recato. Deu-lhe, agora, para anúncios com trago disfórico! Mas esta maré não nos apanha desarmados. Foi precedida pelas campanhas de consciencialização: rodoviária, contra o álcool, tabaco, violência, poluição… O choque a dar a mão ao medo numa valsa do Apocalipse tornou-se espectáculo familiar. Mas estes “novos” anúncios são distintos: banham em humor. A pessoa que exibe o rosário multimédia excede-se, raiando a inconveniência e o ridículo. O amigo, enredado, também não sai bem na fotografia: pastou até à última imagem! Vale o anúncio não se pretender disfórico, mas cómico. A desgraça é bom combustível do humor. Sobra, contudo, um não sei quê disfórico. Um incómodo que se aloja no sótão da consciência. Um espelho distorcido. Podia acontecer comigo…
Marca: Orange. Título: Retrouvailles. Agência: Publicis Conseil. Direção: Xavier Giannoli. França. 2013.
Desgraça rima com humor. Que o digam os desenhos animados, a começar por Calimero, herói ternamente disfórico. A primeira aparição de Calimero foi, por sinal, num anúncio do detergente italiano AVA.
Calimero. Detergente AVA (Carosello; Mira Lanza). Autores: Nino, Toni Pagot e Ignazio Colnaghi. Itália, 1963.
A Fábrica da Vida
A Nissan Infiniti habituou-nos a anúncios, no mínimo, interessantes (por exemplo, http://tendimag.com/2011/10/12/bailado-do-carro-com-a-agua/). Este segue a tradição. Confronta-nos com um mundo a dois tempos e a dois tons: o disfórico “admirável mundo novo” e a eufórica direcção do novo automóvel. O esquema é recorrente: reduzido a objecto técnico pela técnica, o ser humano emancipa-se como sujeito técnico graças a um objecto técnico. Sujeito ou objecto, o ser humano vive ou sobrevive sob a égide da técnica. É a “fábrica da vida”. Quem não se lembra do anúncio 1984, da Apple (http://www.youtube.com/watch?v=axSnW-ygU5g)?
Marca: Nissan Infiniti. Título: Factory of Life. Agência TBWA. EUA, Agosto 2013.
Consensualizar
Este anúncio russo proporciona uma lição sobre como ultrapassar rupturas e instaurar consensos. Nada mais simples: aplanar e cimentar diferenças e vontades. Sociedades ajustadas e consensualizadas são fantasmas disfóricos que assombram a ficção científica. Costumam ser terríveis quando se tornam realidade.
Marca: OBI Russia. Título: No job is too big. Agência: BBDO Moscow. Direção: Leo Gabriadze. Rússia, Junho 2013.
As tesouras do preconceito
O anúncio da Otrivin culmina com uma surpresa. A menina apenas está constipada e nós sofremos de preconceito. Pergunto: quem não reagiu como a professora?
Este anúncio (Otrivin) e o do post anterior (Cadillac) não deixam de me intrigar. Nenhum predispõe bem o espectador. Não lhe levantam o ego nem lhe estimulam o humor. Geram apreensão e constrangimento. São disfóricos. Deixando Masoch em paz, somos tentados a admitir que o desprazer pode cativar ou, no mínimo, convencer. O medo, a frustração, a raiva, a dor também são sentimentos capazes de nos mover. Esta é, por sinal, a receita adoptada por boa parte da publicidade dita de sensibilização.
Anunciante: Novartis. Título: Scissors. Agência: Saatchi & Saatchi. Direcção: Sam Holst. Suíça, 2011.