O menino de suas mães

“Estava invadido face à fotografia por um desejo “ontológico”. Queria a todo o preço saber o que ela “em si mesma”, através de que traço essencial se distinguia da comunidade das imagens” (Roland Barthes, La chambre claire – Note sur la photographie, 1980. Minha tradução).
Participo no projeto Quem somos os que aqui estamos, coordenado por Álvaro Domingues, focado nas freguesias do concelho de Melgaço: concluímos o estudo dos agrupamentos de Parada do Monte & Cubalhão (ver A sociedade dos guarda-chuvas: https://tendimag.com/2019/04/10/a-sociedade-dos-guarda-chuvas/); e Prado & Remoães (ver https://tendimag.com/2019/08/11/o-egomundo-e-a-pavimentacao-da-vida/). Debruçamo-nos, neste momento, sobre as freguesias de Castro Laboreiro e Lamas do Mouro (ver http://mdocfestival.pt/projetoquemsomos.php). Entre os resultados obtidos, constam quatro livros (de textos e de fotografias), exposições de fotografia documental, com os respetivos catálogos, exposições de fotografias a partir de álbuns familiares e um registo audiovisual (Fotografias faladas; ver O Baloiço: https://tendimag.com/2019/10/23/na-paz-do-senhor/).
Estes projetos, imersivos e interativos, acabam por influenciar as pessoas. As coletividades aderem e reagem. Em Prado, minha terra natal, tal como de Álvaro Domingues, despoletou-se e acentuou-se o amor pela fotografia local familiar, e o consequente entusiasmo pela revisitação e pela partilha. Dedica uma página, concorrida, no Facebook: Freguesia de Prado (https://www.facebook.com/search/top/?q=freguesia%20de%20prado). Mas estes projetos também se pautam como fonte de reflexividade. Quem estuda também se revê e reinventa. A realidade desafia-nos e sensibiliza-nos. Normalmente, como diria Marcel Mauss, quem recebe sabe dar.

Surpreenderam-me duas fotografias com parentes próximos que desconhecia, a primeira colocada por Maria Morais, no dia 24 de Novembro de 2020 (fotografia 2), a segunda por Daniel Maciel, no dia 18 de dezembro de 2020 (fotografia 3). Figuram o meu avô Amadeu, a mãe Ilda, o tio Nino, as tias Celina, Leonor e Esperança, bem com a prima Delfina (ver legenda). Todos maternos. As fotografias, mais ou menos conservadas, brilham como testemunhos, memórias, afetos e fábulas.

Ó minha mãe minha mãe
Ó minha mãe minha amada
Quem tem uma mãe tem tudo
Quem não tem mãe não tem nada.
(Zeca Afonso. Minha Mãe. Baladas e Canções. 1964/1967)
Pois eu tenho quatro mães: a minha mãe, Ilda, cuidou de mim até aos cinco anos e dos dezoito aos vinte e dois, já em Paris; emigrada, prossegui com a tia Celina até aos doze anos; por seu turno, emigrou; acolheu-me a tia Leonor até aos dezassete; antes do casamento, reparti-me entre a tia Celina, em Prado, e a tia Edite, paterna, em Braga. Três tias segundas mães. A minha mãe e a tia Leonor partiram, desacompanhadas, em plena pandemia. Na mesma semana, com diferença de dois dias. Conserva-se a tia Celina, um regaço de amor, felicidade e dissabores.
Quatro mães e oito irmãos. Recordo um episódio. Já docente na Universidade do Minho, regressava aos fins-de-semana a casa, ao conforto da tia Celina. Noite dentro, aguardava-me o cão, na paragem do autocarro, e, na cozinha, um escalope de vitela, com ovo estrelado e batatas fritas. Atentas ao ritual, as primas, gêmeas infantes, protestavam que a mãe cozinhava melhor para mim do que para as próprias filhas. Ainda agora se mostram, com humor, ciumentas! A diferença residia, obviamente, no apetite de um desaninhado. Anedotas de uma vida ávida de pequenos nadas.

Já Tininho não sou! Não se é, contudo, menino de quatro mães em vão, redobra-se a biografia e a personalidade. Dou graças ao criador por esta fragmentação fluída e entrelaçada! Diz-se que sabe escrever direito por linhas tortas.
Albertino Gonçalves, 30 de agosto de 2021.