A dança da mercadoria

A mesa ainda é madeira, coisa prosaica, material. Mas, logo que se revela mercadoria, transforma-se em algo ao mesmo tempo perceptível e impalpável. Além de estar com os pés no chão, firma sua posição perante as outras mercadorias e expande as idéias fixas de sua cabeça de madeira, fenômeno mais fantástico do que se dançasse por iniciativa própria (Marx, Karl (2011). O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo Editorial,121-122).
A McDonald’s retoma, na Bélgica, a comercialização do hamburger CBO. O ressurgimento de uma relíquia, que, pelos vistos, traz a população em delírio quase religioso. O hamburger CBO parece abrir as portas do céu. O cúmulo da felicidade. Dançam as mercadorias, e nós dançamos com elas.
Flor de cheiro

Há tufos de plantas aromáticas que dominam olfativamente o jardim. Existe um poder do cheiro. De quem as plantas aromáticas não gostam é das abelhas. Não têm o sentido das hierarquias. Pousam onde há pólen, independentemente do cheiro. Pousam sem vénias. Esta fidalguia do cheiro lembra algumas organizações e associações, órgãos da verdade, do sentimento, da reputação e da água benta. Críticos incriticáveis prenhes de direitos. São os anjos da modernidade. Inevitáveis, ronronam no regaço do Estado.
Passei a tarde a ouvir Jacques Brel. Admiro-o com prazer. O Tendências do Imaginário inclui sete canções de Jacques Brel. Acrescento três.
À força de falar de amor, apaixonamo-nos

Uma versão antiga da “predição criadora”, de W.I. Thomas: “À força de falar de amor, apaixonamo-nos” (Blaise Pascal, Discours sur les passions de l’amour, 1652-1653).
Sou um algoritmo básico: resumo-me a duas sub-rotinas com contador infinito: quando penso, desaguo no Blaise Pascal: no que respeita à música, no Jacques Brel. Se quero pensar, penso com eles; se quero sentir, sinto com eles. São as duas pontas de Ariana do meu labirinto identitário. O resto é variação. Dizem que os olhos são as janelas da alma. Quando ouço Jacques Brel, fecho os olhos para franquear a entrada a anjos e demónios.

Jacques Brel canta, como ninguém, a miséria humana. Tão bem que o ouvimos com prazer. Gosto de La ville s’endormait. Ne me quitte pas é universal. Coloco as versões estúdio e ao vivo, que, no caso de Jacques Brel, não se substituem. Uma voz e uma performance.
O murmúrio e o grito

As questões de identidade constituem uma fonte incansável e delicada de discursos. A publicidade não se faz rogada. A propósito, por exemplo, de brinquedos, do cancro da mama ou da assunção de género. Pode significar-se uma identidade discretamente, em modo quase confidencial. Dispensa-se gritar ou arranhar sensibilidades. Há anúncios que transpiram subtileza, outros sopram trombetas num filme mudo.
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Vozes

As músicas Flamma Flamma – The Fire Requiem (1994) e Was Hast Du Mit Meinem Herz Getan (Orrori Dell’ Amore, 1995), compostas pelo belga Nicholas Lens, surpreendem: vozes mágicas, estranhas, excessivas, do outro mundo. Acrescento o teaser da ópera, também de Nicholas Lens, Shell Shok – A Requiem of War (2014), em memória da Primeira Grande Guerra. Meus amores, meus horrores!
Esqueletos eróticos

A todas e a todos que se dedicam à mui nobre arte de emagrecer.
Os esqueletos tocam música e dançam. À semelhança dos demónios. A dança dos esqueletos inspirou inúmeras obras desde a Idade Média. A Skeleton dance, em realidade aumentada, foi exibida em Bruxelas no ano de 2013:
‘Skeleton Dance’ is a streetmapping project that was first presented at Brussels Light Festival in 2013. During the three day festival, more then 85.000 people visited Brussels Light Festival. Over the past few years the project has traveled to multiple festivals around the world.
Para além de dançar e tocar música, os esqueletos também beijam, assediam, riem, lutam e fazem pose. Nem Sigmund Freud imaginou as potências eróticas dos ossos. O voyeur deixa de ver a pele e a carne, vê os ossos voluptuosos. Bem diz o povo: nós somos tão bonitos por dentro! Com uma pequena ajuda da técnica.
Ontem, dei uma conferência no Paço dos Duques, em Guimarães, sobre a honra e a lenda de Egas Moniz. Sobreaqueceram-se-me os neurónios. No rescaldo, só penso disparates. É a minha receita para descansar. Publiquei algumas imagens do X-Ray pin-up calendar no facebook em 2010, data da sua edição. Vale a pena retomá-las.
Imagens do calendário X-Ray pin-up, da Eizo. 2010.
Fantasia

Don Quixote de la Mancha, depois da refrega com os gigantes transformados em moinhos de vento, virou-lhes as costas e entregou-se à leitura de um romance de cavalaria. Mas o Moinho da fotografia é de Bruges e não das bandas de Teboso. Aquele ponto negro não é o Don Quixote, mas o meu rapaz mais novo a comunicar com as estrelas. Adora fantasia, que lê e escreve com afinco. Dedico-lhe este artigo.
A cerveja Bud Light apostou no Super Bowl. Estes dois anúncios passaram na fase final do campeonato de futebol americano. Assinados pela agência Wieden+Kennedy, são excelentes. Ressalte-se que um único anúncio, o primeiro, promove duas marcas: a Bud Light e o Game of Thrones. Tudo indica que é um expediente que vai vingar.
Cavaleiros, torneios, castelos e dragões são tópicos, eventualmente com ancoragem medieval, repletos de encantos. Não é de estranhar a opção pela música Arthur, de Rick Wakeman. Costuma associar-se o barroco e o faustoso. No caso de Rick Wakeman, o faustoso torna-se, algumas vezes, fastidioso.
Maldade por maldade

A maldade e a estupidez existem? Insistem” (inspirado em Marcel Camus).
Pergunta retórica: pode uma pessoa boa ser má? Desde que se convença que está a fazer uma bondade. As maldades por bondade são as mais temíveis. Maldade por maldade, prefiro uma maldade que não tenha que louvar.

O pintor brasileiro Tomás Santa Rosa (1909-1956) não tem qualquer culpa neste relambório. Entendi, simplesmente, colocar dois quadros seus. Apetece-me também colocar, sem razão, um minuto da conversa de Jacques Brel sobre a estupidez, a maior alavanca da maldade. Vale a pena ouvir um dos melhores cantores do século XX. Pode aceder à canção L’Air De La Bêtise no seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=zR52xwAC7jM.
Extrait : Jacques Brel, interviewé par Henry Lemaire, printemps 1971
Réalisation : Marc Lobet – Via YouTube.
Pedestais
Na Bélgica, pátria do Astérix, do Tintim, do Achille Talon e do Gastão da Bronca, resolveram colocar pessoas em pedestais para criar “monumentos humanos”. A Lusitânia também é a pátria do Zé Povinho, do menino Tonecas, do Chico Fininho e da Maria Papoila. De país para país, variam o sentido de humor e a relação com as alturas. Na Bélgica, colocam pessoas em pedestais. Parece que Bruxelas, a corte da Comunidade Europeia, tem falta de pessoas em pedestais. Na Lusitânia, semi-periférica, faltam pedestais para tantos candidatos. O problema não é tanto colocar pessoas em pedestais mas apear quem teima em se perpetuar. Os nossos pedestais, tão elevados, são invejáveis: o marquês de Pombal, em Lisboa, o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, no Porto, a estátua de Santos da Cunha, em Braga. Três pedestais, três rotundas. Afigura-se-me que o pedestal está para Portugal, com o bacalhau está para o português. O anúncio Human Monument é da Thalys, uma empresa de transporte ferroviário a alta velocidade.
Para aceder ao anúncio, carregar na seguinte imagem.
Marca: Thalys. Título: Human monuments. Agência: Rosepark. Direcção: Julian Nodolwsky. Bélgica, Abril 2018.
A nobreza da arte
“Nunca confunda movimento com acção” (Ernest Hemingway).
No dia 21 e 22 de Abril ocorreu a 5.ª edição da Escola da Primavera do Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura. Este ano, o destino foi Amarante. Estranharam alguns colegas e alunos não os ter acompanhado. Na semana anterior, a família visitou a Escócia. Também não a acompanhei. Por quê? Só a estrita obrigação me impele a viajar. Os tempos e as circunstâncias transformaram-me num eremita, que apenas se desloca de eremitério para eremitério: de Braga para Moledo e de Moledo para Braga; de Braga para Melgaço e de Melgaço para Braga. Pareço, cada vez mais, o Nero Wolfe. A cada um as suas taras e moléstias. Esta eremitagem resulta penalizadora. Para que serve a quietude nesta vertigem pirotécnica? Vale, curiosamente, a globalização: se Maomé não vai à montanha, vem a montanha a Maomé. Nenhum sábio me convence que o movimento das ideias e dos corpos coincidem. Tomados pela ultraburocracia e pela estereotipificação quotidiana, arriscamos, imprudentemente, a mais inumana das sociedades humanas. Tornamo-nos indiferentes à diferença. Numa época “empoderada” por tantos recursos, parecemos serigrafias saídas da Factory de Andy Warhol.
Em casa conhecem os meus gostos de cor e salteado. Das viagens, trazem-me originalidades que encantam. Em Edimburgo, a minha companheira e o meu rapaz mais novo tiraram estas fotografias na Galeria Nacional da Escócia. Um quadro com quadros de Willem van Haecht: Art Cabinet with Anthony van Dyck’s ‘Mystic Marriage of St Catherine’, datado de 1630. Acertaram no alvo! Desconhecia a obra e o autor, um bom auspício. Por outro lado, interessa-me a história da exposição das obras de arte, desde os templos antigos até à Internet, passando pelas colecções privadas, pelos museus, pelas galerias e pelas reprografias.

Willem van Haecht: Gabinete de Arte com o Casamento Místico de Sta. Catarina de Anthony van Dyck. 1630.
Willem van Haecht (1593-1637), natural de Antuérpia, retrata, com minúcia e detalhe, a exibição de obras de arte no interior de espaços privados (kunstkamers: salas de arte). A sua obra coincide com o auge das coleções que prenunciam, de algum modo, a criação dos museus no séc. XVIII: o British Museum, em 1753; o Museu Pio-Clementino, no Vaticano, em 1771; a Galleria degli Ufizzi, em Florença, em 1779; e o Louvre, em Paris, em 1793. Não são raros os museus que têm origem em coleções privadas.
Willem van Haecht concebeu várias “naturezas mortas com obras de arte”. Mas não foi o único, nem sequer o primeiro. Jan Brueghel, o Velho, nascido em 1568 em Bruxelas e falecido em 1625 em Antuérpia (1568-1625), e Frans Francken, natural de Antuérpia (1581-1642), anteciparam-se meia dúzia de anos (ver figuras ). Não obstante, Willem van Haecht destaca-se neste género de pintura.
- Peter Paul Rubens & Jan Brueghel, o Velho. Alegoria da Visão e do Cheiro. 1618.
- Jan Brueghel (I), Hendrick van Balen e Gerard Seghers. Alegoria da Vista e do Cheiro. 1620.
- Frans Francken the Younger, Uma Colecção, 1619,
- Frans Francken, o Jovem. Gabinete de Amador. 1620-25.
Willem van Haecht nasceu numa família de pintores. O pai, Tobias Verhaecht, foi professor de Rubens. Entre 1615 e 1626, trabalhou em Paris e na Itália. Em 1928, assume a curadoria da coleção de arte de Cornelis van der Geest, mercador de especiarias, colecionador e mecenas de arte, patrono de Peter Paul Rubens.
Inspirado na colecção de Cornelis van der Geest, Willem van Haecht entrega-se à pintura de quadros de quadros, acompanhados por esculturas e “curiosidades”. filhos da imaginação, constituem alegorias intertextuais saturadas de citações, referências, alusões e segredos. As personagens são, contudo, reais, bem como os quadros.
Na Galeria de Cornelis van des Geest (1628), as personagens são identificáveis. Em baixo à esquerda, está sentada a Infanta Isabel Clara de Espanha, na companhia do Arquiduque Alberto da Áustria, do pintor Peter Paul Rubens e do Príncipe Wladyslaw Vasa da Polónia. O anfitrião, Cornelis van des Geest, aponta para um quadro. Do “catálogo”, constam obras de Ticiano, Antony van Dick, Guido Reni, Francesco Albani, Rubens, Dürer, Jan Brueghel, o Velho, Quentin Metsys ou Correggio, um sortido de artistas actualmente célebres (para uma identificação mais detalhada dos quadros expostos na Galeria de Cornelis van des Geest, consultar Deprouw-Augustin, Stéphanie, La devinette de Willem van Haecht: https://deprouw.fr/blog/la-devinette-de-willem-van-haecht/).
A Wikimedia Commons proporciona uma identificação interactiva das obras constantes no quadro Apeles pintando Campaspe (ca. 1630). Para aceder, carregar na figura acima.
Por seu turno, a página Howling Pixel (https://howlingpixel.com/wiki/Cornelis_van_der_Geest), assinala e ilustra as obras reproduzidas, e, por vezes, repetidas, no conjunto nos três quadros com “gabinetes de arte” da autoria de Willem van Haecht.
As pinturas de salas de arte configuram um misto de realidade e fantasia. O quadro O arquiduque Leopoldo Guilherme em sua galeria de pinturas em Bruxelas, de David Teniers (nascido em Antuérpia no ano de 1610) talvez represente uma excepção. Alguns destes quadros eram enviados a outras pessoas como testemunhos, senão catálogos.

David Teniers (II). A Galeria do Arquiduque Leopoldo em Bruxelas. 1651.
“En este caso, personajes y obras convierten a esta pintura en uno de los pocos ejemplos donde se muestra una colección concreta y existente, por lo que puede definirse como un cuadro- catálogo que exhibe las riquezas pictóricas atesoradas por el archiduque en el palacio de Bruselas. En el repertorio predominan los cuadros italianos, pero los pocos flamencos tienen gran importancia conceptual y simbólica. A la izquierda, San Lucas pintando a la Virgen de Jan Gossaert (1478-1532) identifica la procedencia artística de Teniers, mientras que el Retrato de Isabel Clara Eugenia por Anton van Dyck (1599-1641), a la derecha, alude a la posición de Leopoldo como heredero del gobierno de Bruselas. No cabe en esta representación la idea de búsqueda de ennoblecimiento común a otras galerías -Leopoldo era por nacimiento un miembro de los Habsburgo, que se muestra con símbolos habituales de poder como la espada y los perros-, pero sí subyace en ella la justificación del poder principesco mediante el disfrute de una exquisita colección de pinturas, que el archiduque era capaz de apreciar por sí mismo, como evidencia su mirada hacia la Santa Margarita de Rafael.
A mediados del siglo XVII la pintura había triunfado ya sobre las demás artes y era el principal elemento de representación cortesana, por encima incluso de las armas. El poder de un príncipe no se medía exclusivamente por el valor militar, sino también por su gusto y su afición pictórica. Teniers realizó para Leopoldo varias obras similares que fueron enviadas a distintas cortes para impresionar por sus virtudes como aficionado artístico y por la magnificencia de sus tesoros pictóricos. En ese sentido, al remitir a Felipe IV esta obra al poco de ser realizada, el archiduque parece que quiso homenajear a su tío como aficionado a la pintura italiana,imitando las colecciones del Alcázar de Madrid; pero quizá también retarle, al mostrar cómo las guardadas en el palacio de Bruselas podían competir con ellas (Texto extractado de Pérez Preciado, J. J. en: El arte del poder. La Real Armería y el retrato de corte, Museo Nacional del Prado, 2010, p. 126).” (Museo del Prado: https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/el-archiduque-leopoldo-guillermo-en-su-galeria-de/461e64f1-71a3-46fb-961b-3958286a12c5).
Este artigo começou com uma fotografia tirada na Galeria Nacional da Escócia e derivou para Antuérpia. Manhas do destino. Um destes dias vou a Antuérpia, não para ver a casa de Rubens, mas para visitar o meu rapaz mais velho. A deslocação parada é uma conquista do século séc. XX, mas ainda tem algumas falhas.