Beatas: Luz divina e pegada tóxica
Nem tudo o que arde purifica, nem tudo o que se apaga acaba.
Mergulhar na irrealidade: a banheira e o chuveiro (revisto)

O toque de Midas dos novos media visa o mergulho experiencial noutros mundos, mais ou menos irreais, estampados eventualessmente em ecrãs. Entre as novas “varinhas mágicas” constam a realidade virtual, as exposições imersivas, como a Living Van Gogh na Alfândega do Porto (2023), e os videojogos FPS (First Person Shooter) como o Half Life (1998). Somos convidados a participar em universos audiovisuais ou multissensoriais (com alterações e estímulos olfativos, táteis, térmicos), de um modo estático (sentados face a um ecrã fixo) ou dinâmico, como nos simuladores do Pavilhão da Realidade Virtual durante a Expo 98, porventura em interação, com o crescente e cada vez mais sofisticado auxílio de interfaces, luvas digitais, óculos estereoscópicos e capacetes de imersão. Em todos os casos, aventuramo-nos a sentir, experienciar, como reais situações ou ações irreais.


O mergulho na irrealidade pode processar-se segundo dois movimentos aparentemente inversos: a projeção e o envolvimento. Por um lado, sintonizamo-nos ou identificamo-nos com elementos do universo proposto: pessoas, humanóides, animais, animações ou objetos. Quanto maior for a semelhança mais fácil a identificação? Nem sempre. O contraste pode favorecer a “simpatia”. Atente-se em figuras como o E.T., o Shrek ou o WALL-E. Por outro lado, o universo proposto interpela-nos, cativa-nos e envolve-nos. No primeiro caso, na projeção, ocorre um efeito banheira; no segundo, no envolvimento, um efeito chuveiro. Frequentemente, projeção e absorção conjugam-se num reforço mútuo (o anúncio Cowboy, da Solo Soda, ilustra este entrelaçamento).
Vem este resumo a propósito da campanha publicitária inaugurada esta semana pela empresa da Singapura Prism+. No primeiro anúncio, As close as you can get to the concert, mais próximo do “efeito chuveiro”, uma velhinha é arrebatada por uma estrela rock (releve-se o contraste entre as duas personagens); no segundo, As close as you can get to the cooking, mais próximo do “efeito banheira”, um telespetador identifica-se com um perú em vias de ser cozinhado; por último, no terceiro, As close as you can get to the drama, o mais próximo da interação, do duplo efeito de projeção e envolvimento, um casal participa como vítima numa cena de tortura. Ousadia e criatividade a desafiar os limites!
O medo dos palhaços e os dentes de lagarto

Argui, há seis meses, uma dissertação dedicada à figura do palhaço (ver https://tendimag.com/2023/02/25/esquilo-o-abutre-e-a-tartaruga/). Durante a prova não resisti a desconversar ressalvando que a figura do palhaço podia assumir significados negativos. Assim sucede quando afirmamos que determinado ato não passou de uma palhaçada ou uma dada pessoa se comportou como um palhaço.
Imagem: Pablo Picasso. Le Clown. 1962
Mas não era esta a negatividade que queria vincar. Aludia, principalmente, à associação da figura do palhaço ao medo e ao terror. Existe, inclusivamente, uma fobia aos palhaços conhecida como coulrofobia. Encontramos palhaços assustadores na literatura, no cinema, na publicidade… Recordo filmes como Palhaços Assassinos (1988) ou IT – A Coisa (2017); e deparo-me com o anúncio, estreado este mês, The Visitor, da Bell, inspiração imediata deste artigo.
Mas o exemplo mais superlativo talvez continue a ser o anúncio Carousel , da Philips, de 2009.
Enfim, parece que já não consigo inovar. Não há nada que escreva que já não tenha escrito antes. Redigi já lá vão sete anos, em 2016, o artigo O caso dos palhaços assustadores (https://tendimag.com/2016/11/06/o-caso-dos-palhacos-assustadores/). Não param de me revisitar este tipo de ecos. Nada de novo a toque de teclado! Estou obsoleto. O pouco convívio também contribui para esta calvície do intelecto. Sem a centelha dos outros, estrelinhas fulminantes num infinito de ideias geniais, sinto-me (narcisista?) como um lagarto que anda à roda, à roda, à roda, até abocanhar a própria cauda. Então, trinca, trinca, trinca, até lhe sobrarem apenas os dentes. Quem quer dentes de lagarto?
Embora o riso seja das atividades mais características e mais sociais do ser humano, surpreendo-me a rir sozinho, “com os meus botões”. Às vezes, acorda-se prazenteiro.
De cortar a respiração

“Muchas veces escuchamos los latidos del corazón como metáfora de la vida (…) Pensamos que a partir de la pandemia la respiración tomó más relevancia, desde lo conceptual y desde lo simbólico. Respiro es un mensaje que toca una cuerda que resuena en la sociedad y cala profundo en nosotros (Martín Pezza: https://www.adlatina.com/publicidad/preestreno-enero-comunicacion-y-medife-toman-aire).
Respirar é mais do que inspirar e expirar. É sentir, desejar e comunicar. A associação à sexualidade e ao desejo é de tal ordem que Jean-Louis Tristani fala de um “estádio do respiro” distinto do “estádio oral “ (ver https://tendimag.com/202211/11/o-estadio-do-respiro/). Para além do erotismo, a respiração é decisiva na música, na fala, no imaginário… Simbolicamente, respira-se saúde e liberdade; a alma enche-se e o coração suspira; o diabo sopra e algumas situações sociais sufocam. Estreado esta semana, o anúncio argentino “Respiro” oferece um autêntico inventário do fenómeno a um ritmo de cortar a respiração. Recorda canções, danças, poemas, cenas de filmes, anúncios…
Para quem tiver tempo e curiosidade, acrescem dois vídeos: uma canção (em jeito de homenagem a Jane Birkin) e um anúncio (focado na poluição). Sugiro, enfim, o (en)canto “gutural” de Camille (https://tendimag.com/2022/11/11/o-estadio-do-respiro/). E pronto! Acabou-se-me o fôlego.
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O desporto e a imagem
Ao João e ao Fernando
O golfe é um jogo em que não há necessidade de se apressar. Importa deixar entrar a riqueza do desporto (Catherine Lacoste)
O desporto constitui um dos maiores bancos de imagens da atualidade. Aproxima-se frequentemente de uma coreografia mais ou menos espontânea. O anúncio The Greatest Show on Earth, do canal SKY Sports, e o trailer de lançamento, Match Day, do videojogo EA SPORTS FIFA 23, investem nessa vertente.
Relaxar a eito! A maçã e a abóbora

Tinha saudades de um anúncio como este. Lacónico e inspirado, torna o pouco bastante e o inexpressivo eloquente. Imagem, música, duração e ritmo dão primorosa e discretamente as mãos. Ao arrepio da tendência pós-Covid, não aposta na oralidade, na conversa. Opção que não compromete a mensagem. Tudo fala pelos cotovelos, até a lentidão e o tédio, aparentemente assumidos como privilégios.
Todos diferentes, todos iguais

Por que motivo, nas cidades por onde passamos, nos empenhamos a escolher doze postais diferentes – quando são destinados a doze pessoas diferentes? (Sacha Guitry. Pensées, maximes et anedoctes, 1ª ed. 1985, Le Cherche Midi, 2007, p. 117)
Vulgarizado pela Benetton, o mote “todos diferentes, todos iguais”, conquistou a publicidade e o espaço público. Os anúncios passam a apostar na diversidade das figuras convocadas em dimensões tais como o género, a idade, a raça, a posição social ou os padrões estéticos. Cada anúncio oferece um cardápio identitário. Em vez de bens cujo consumo se deseja, imagens a cuja adesão se incentiva. Num dispositivo pós-pavloviano, a projeção e a identificação tendem a sobrepor-se à salivação. Confrontado com tantas e tão díspares figuras, em alguma o espetador se reconhecerá (e doutras se de demarcará).
“Todos diferentes, todos iguais” constitui uma equação complexa a alcançar. Tudo menos dada de antemão. Suscetível de várias formulações, a tónica pode ser colocada mais próxima de um ou do outro lado: unir mais do que separa ou separar mais do que une.
Nas últimas décadas, o polo da diferença tem adquirido atratividade. Por vezes, em demasia, reduzindo-se as posições, paradoxalmente, a mais do mesmo, a um coro monofónico, pouco aberto e nada tolerante. Nesta di-visão exacerbada do mundo, cada qual vale por si, “sem fazer parte” de uma comunidade orgânica. Esfuma-se o fundo comum, bem como a interdependência e, a fortiori, o sentimento de união e partilha. Em suma, um mosaico estilhaçado a espelhar uma realidade fragmentada à beira do caos. Alguns anúncios proporcionam este efeito. sugerem esta impressão. Os protagonistas sucedem-se sem laços nem nexo. É certo que, à falta de mais, a própria marca, envolvente, assegura a junção, mas como uma espécie de interruptor que acende uma constelação babélica de clichés e flashes.
Esta aposta na diferença parece amiga das liberdades, das autonomias e das identidades. Os processos sociais revelam-se, porém, propensos a perversidades capazes de inverter o sentido das promessas, por mais óbvio que se manifeste. As coletividades inorgânicas, babélicas, carecem de alguma entidade, porventura providencial, que as cimente e acaba por se lhes sobrepor senão impor. Exterior ou estranha, quando não avessa, às diferenças, esta totalização tende a namorar o totalitarismo, tornando-se pouco “amiga das liberdades, das autonomias e das identidades”. Não se trata de uma fatalidade a agitar como um espantalho mas de um risco a não menosprezar.

Convém admitir que boa parte dos anúncios publicitários visa conciliar diferença e igualdade. Encenam a interdependência na e pela diferença sobre um fundo de igualdade e universalismo. Os protagonistas não só se sucedem como dialogam e interagem de uma forma natural e compensadora. Assumida como mediação, a marca, mais do que mero interruptor, funciona, agora, como traço-de-união. O “pluri” e o “multi” abrem-se ao “inter” e ao “trans”. Recentes, os anúncios The Feeling of Good Times, da Heineken, e New Zealand runs on fibre, da Chorus, representam dois casos exemplares.
Sensibilidade

Quando as palavras não sonham, as notícias não prestam, a música não dança, as pessoas não se abraçam, as sombras não se escondem, os minutos não passam e o depois não chega… segue os pássaros ou bebe um anúncio bem cheio, sem gelo, do Bruno Aveillan. Perde-te em Nova Iorque ou descobre AluLa. Sente! Sente os rostos, as mãos, os objetos e o que mais se oferecer.
Suave e aveludado
Os últimos dias foram de concentração. Entreguei-me à construção de materiais audiovisuais para o próximo encontro dedicado aos antepassados do surrealismo, em particular aos maneiristas da segunda metade do séc. XVI, programado para o dia 27 de maio, sábado, às 17:00, no Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa. Consistirá mais numa ilustração do que numa oratória. Esbocei ontem uma espécie de antestreia na disciplina de Sociologia da Arte, do curso de mestrado em Comunicação, Arte e Cultura. Um excelente teste com um mês de antecedência.
Vim descontrair para a beira-mar. Apetece-me partilhar um post que propicie uma atmosfera de repouso e indolência. Acodem-me os anúncios recentes da Velveeta, uma marca, como o nome sugere, de queijo “cremoso, suave e aveludado”. Um deleite minimalista com a ressonância, a ação, o compasso e o colorido certos para cativar a atenção, aguçar o desejo e distinguir a marca. Original e feliz! A que mais poderia aspirar uma publicidade?
Os sinos da consciência
O nu desapareceu praticamente da publicidade. O grotesco resiste. Os anúncios de consciencialização e sensibilização social proliferam. Oferecem-se como uma marca distintiva da nossa era. Visam interpelar e mobilizar os cidadãos, pelo pensamento, pelo sentimento e pela imagem, para problemas, causas e movimento de uma extrema diversidade quanto às origens, modalidades e finalidades. Segue uma mistura de exemplos recentes.