Aula imaterial 3. Carta a um estudante com dúvidas

“Quando se lê demasiado rápido ou demasiado suavemente não se percebe nada” (Blaise Pascal, Pensamentos, 1670).
Mais uma pedrada no lago do ensino à distância. Os alunos do mestrado em Sociologia querem saber o que é pedido para o trabalho de Práticas de Investigação Social.
Foi acordado um projeto de investigação ou de intervenção, à escolha e responsabilidade de cada aluno.
Como deve ser o projeto? Furto-me a dizê-lo. Cada caso é um caso, com formas e conteúdos próprios. A burocracia do formato único não tem cabimento nesta disciplina.
Um projeto de investigação ou intervenção suscita, mesmo assim, alguns apontamentos.
Vou investigar o quê?
O que quero saber ao certo? Importa definir e delimitar o que se vai estudar.
De que ponto de vista? Com que perspetivas e suporte teórico? Como me vou servir da teoria?
Sabe-se o suficiente acerca do universo para avançar? O projecto é viável? Convém explorar documentos, observar, promover entrevistas. A quem? Especialistas? Testemunhos privilegiados? Pessoas da população? A investigação empírica pode iniciar ainda a problemática não floresceu.
Como vou escolher, definir e, eventualmente, operacionalizar os conceitos e as hipóteses, ferramentas básicas da investigação? Como vou construir a problemática? Justifica-se desenhar um modelo de análise?
Com que interesse?
Qual o contributo estimado para a disciplina, para a sociedade e para o investigador? A motivação é decisiva, destaca-se como a principal alavanca da investigação. Muitas investigações tropeçam mais na falta de motivação do que nas insuficiências da problemática.
Vou investigar a quem?
Numa investigação empírica, importa saber quem se vai, em concreto, observar. Como delimitar o universo de pesquisa? Que tipos de amostragem são exequíveis? Como vai ser a comunicação e o contato? Como garantir a viabilização do projeto? Que condições e desafios urge resolver e prever?
Vou investigar como?
Que métodos e técnicas pretendo mobilizar? Com que fundamento e objetivo? Vou combinar várias técnicas? Com que articulação? Como vou programar o método, o caminho a percorrer? Em sociologia, as técnicas de investigação não são prefabricadas mas construídas: plano de amostragem, questionário, guião de entrevista, escala de atitudes…
Pressupõe-se que um sociólogo domina as ferramentas da sua profissão. Um pressuposto, por vezes, errado. Escolha e construa as técnicas em vez de ser construído e escolhido por elas. Quem às poucas técnicas que conhece não escolhe. Qualitativas ou quantitativas, antropológicas ou sociológicas, nomotéticas ou ideográficas… Dualismos como estes são o “pecado infantil da sociologia”. Recorra às técnicas que o projeto requer. Caso não domine alguma, é uma boa altura para começar a aprender. O caminho ainda vai a meio.
Vou investigar quando?
Qual vai ser a duração do estudo? Quando começa e termina? Como calendarizar as atividades? Se se proporcionar, preveja um cronograma.
Como vou analisar os dados recolhidos?
Que ficheiros, pacotes estatísticos, processamentos e análises de conteúdo? Se a investigação for bem conduzida, a análise de dados aproxima-se de um prolongamento.
Vou investigar para quê?
O investimento e o esforço despendidos na investigação valem a pena? Quais são os resultados esperados? A quem podem servir? Promovem o conhecimento da realidade estudada? Contribuem para o desenvolvimento da teoria? Comportam inovação e experiência ao nível da metodologia? Vislumbra-se alguma utilidade para a sociedade. E, a título pessoal, que enriquecimento é esperado? Repeti. Não faz mal!
Que bibliografia?
Para qualquer tema, a bibliografia disponível é imensa. Não se deixem ofuscar pelos faróis de excelência. Iluminam o que se sabe e ocultam o que ignoramos e pode ser preciso. Uma bibliografia monopolizada por um autor, ou vários do mesmo clube, pode significar uma ausência efetiva de pesquisa bibliográfica. Um investigador não é um recurso despiciendo. As publicações e os fóruns académicos compõem um imenso oceano cheio de plástico. As pretensas “revisões da literatura” e os “estados da arte” tendem a extravasar as necessidades operativas dos projetos e das pesquisas. Convém limitar a “exploração” bibliográficas àquilo que é, de facto, útil e relevante.
Anexos
Anexos só os indispensáveis ao esclarecimento do projeto. Podem consistir em cronogramas, ferramentas de pesquisa, informações sobre o universo visado…
A investigação não tem que ser linear. A circularidade e a sinuosidade também existem. Espelham a realidade e alcançam resultados. Pierre Boudieu ressalva que os três momentos do conhecimento científico (conquista, construção, constatação) implicam uma ordem lógica mas não cronológica. Os passos da investigação são versáteis.
A escrita.
Diz Pascal que é quando se termina uma obra que se sabe como começar. Isto vale para o título do projeto. Pode esperar por momentos de maior preparação. O título é determinante. Pelo título se faz a primeira apreciação de uma obra. Deve apostar-se num título emblemático, atraente, original e conciso.
A escrita é pensamento. Com a escrita se pensa, com a escrita se faz pensar. A qualidade da escrita é um analisador da qualidade do pensamento.
Projetar para investigar
O vosso projeto deve concretizar-se numa investigação. “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo” (Karl Marx, Teses sobre Feuerbach). Não façam como o paciente de Freud que passava todo o tempo a limpar os óculos sem nunca os colocar. O vosso projeto é para fazer investigação com sucesso.
Orientação
A orientação também faz parte do vosso projeto e da vossa investigação. Enquanto for possível, não abdiquem da escolha do orientador. Empenhem-se numa boa escolha. Serão parceiros. É um passo demasiado importante para que sejam outros a decidir.
Haveria muito a acrescentar, mas esta conversa já ultrapassou a encomenda.
Certeiro, como o costume.
Gratidão!