Pandemónio. Vulnerabilidade auditiva

Segundo Georg Simmel, a relação com o mundo e com os outros tende a mudar consoante os sentidos mobilizados.
“Do ponto de vista sociológico, a orelha distingue-se do olho também pela ausência desta reciprocidade que institui o olhar face a face. Por natureza, o olho, não consegue abranger sem receber ao mesmo tempo, enquanto que a orelha é o órgão egoísta por natureza que recebe e não dá; a sua forma exterior parece quase um símbolo disso, porque ela dá a impressão de um apêndice passivo da figura humana, o menos móvel de todos os órgãos da cabeça. Paga este egoísmo com a sua incapacidade de se desviar ou fechar, à semelhança do olho; como pode apenas recolher está condenada a receber tudo o que se passa ao seu alcance” (Simmel, Georg, 1ª ed. 1908, Sociologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1999, pp. 634-635).
O ouvido é, portanto, mais vulnerável do que o olho. Ao mesmo tempo, mais exposto à intrusão e mais perturbador só o olfato, mas num espaço mais restrito, circunscrito à “esfera da intimidade”. A maior vulnerabilidade, e correspondente intrusão, do ouvido face ao olho justifica que, ao nível do audiovisual, se recorra mais frequentemente ao som do que à imagem para significar o mal-estar e a agressão ambiental. É o caso do anúncio sul-africano Let’s Go, da Volkswagen, em que a protagonista é assediada por todo o tipo de ruídos.
Infância
Uma pausa na publicidade e na escrita, para intercalar a escuta. Duas canções de Patti Smith: a primeira, Mother Rose, dedicada à maternidade, para massajar os sentidos e o cérebro; a segunda, dedicada a Tarkovsky, com imagens da sua casa de infância, para perturbar o cérebro pelos sentidos.
Os sentidos na interação social
Na Digressão sobre a sociologia dos sentidos (1927), Georg Simmel aborda o modo como os sentidos participam na interacção humana. É um texto notável, a ler e reler sem vontade de bocejar. Um desequilíbrio nos sentidos pode afectar a normalidade social. No anúncio Overheard, da Eargo, o excesso de audição do pai perturba a família, que se descobre exposta a uma intrusão descontrolada.
O voo dos sentidos
Edward T. Hall escreve em 1966 que, na nossa civilização, as pessoas estão a perder faculdades sensitivas, nomeadamente, ao nível do tacto e do olfacto: algo como uma anestesia ou um entorpecimento sensorial (A Dimensão Oculta, Lisboa, Relógio d’Água, 1986). Desodorizamo-nos e desodorizamos o mundo; almofadamos e alisamos as superfícies; um bom automóvel amortece o piso… Edward T. Hall estava, porém, longe de imaginar que uma companhia aérea, a Turkish Airlines, resgataria os cinco sentidos.
Marca: Turkish Airlines. Título: 5 senses With Dr. Oz. Direcção: Martin Aamund. Internacional, Fevereiro 2018.
Como a conversa foi curta, acrescento a canção Thinking of you de Elias, um sueco a seguir. Entretanto, lembrei-me do Antony.
Elias. Thinking of you. 2017.
Antony and The Johnsons. Fistful of love. I am a bird now. 2005.
A Bengala Branca
Fazer um anúncio é criá-lo. Não há outro modo. No Reconsider, da Ireland/Davenport, a atenção oscila entre os sítios e o visitante. De sensação em sensação, tece-se uma trama de prenúncios. A bengala branca é a chave final: o visitante é cego. Há tanto prazer para além do ver! Curiosamente, no anúncio, o som resume-se à música e à voz. Uns não vêem, outros não ouvem. “Avózinha, para que é esse silêncio tão grande? É para te ver melhor”. Naturalmente.
Anunciante: South African Tourism. Título: Reconsider. Agência: Ireland/Davenport, Johannesburg. Direcção: Dean Blumberg. República da África do Sul, Maio 2014.
Tenho bastante admiração pela agência Ireland/Davenport, da República da África do Sul. Produziu, em tempos, um dos mais belos anúncios da história da publicidade: Aesthetics. Vale a pena rever.
Anunciante: BMW. Título: Aesthetics. Agência: Ireland/Davenport, Johannesburg. Direcção: Adrian de Sa Garces. República da África do Sul, Novembro 2006.
Sentir para além dos sentidos
Este anúncio lituano é deliciosamente bucólico. Muitos anúncios de produtos alimentares optam pelo bucólico. Bucólico e bucal. Embora o pareça, creio nada ter a ver com uma fixação ou regressão oral, Este anúncio serve-nos uma gastronomia bucólica com o tempero nostálgico do regresso às origens. Neste mundo de apetites, o sabor simbólico dos alimentos é apreciado em qualquer lugar por qualquer motivo. Sentir para além dos sentidos é uma experiência, um encantamento. Leia-se, por exemplo, Marcel Proust (ver texto a seguir ao anúncio).
Marca: Iki. Título: Welcome Back. Agência: MILK, Vilnius, Lithuania. Direção: Nicole Volavka. Lituânia, Maio 2014.
A madalena de Proust
“Por um dia inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra os meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por quê, terminei
aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena.
Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal.
De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde aprendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada demais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim.
A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intacto à minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e volto-me para o meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar: criar. Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na sua luz.”
(Marcel Proust. Em busca do tempo perdido: No caminho de Swann. 1913).
Ser diferente
Há mundos e mundos. Os teus, os dos outros e os nossos. E aqueles que nem sequer suspeitamos. Mundos da vida. Mundos sensoriais. O que ouve um autista? Este anúncio da National Autistic Society esboça um cenário (para mais informação, consultar http://www.autism.org.uk/living-with-autism/understanding-behaviour/the-sensory-world-of-autism.aspx).
Anunciante: National Autistic Society. Título: Sensory Overload. Agência: The News. Direcção: Steve Cope. USA, Abril 2014.
O anúncio Sensory Overload lembra a ópera rock Tommy (1969), dos The Who, filmada por Ken Russell. Durante a guerra, o capitão Walker é dado como morto. Deixa a mulher grávida. Nasce Tommy. A mãe tem um amante: Frank. Passados alguns anos, o pai, inesperadamente, regressa e é assassinado por Frank. Tommy presencia a tragédia através de um espelho. A mãe e o padrasto insistem que ele nada viu, nem ouviu, logo nada contará a ninguém. Tommy torna-se, de facto, cego, surdo e mudo…
Os anos corroeram a memória dos The Who e do realizador Ken Russell, que ganhou um óscar em 1969 pelo filme Women in love. Em 1971, estreou o estranho e excessivo The Devils. Em 1980, é a vez da ficção científica com Altered States. Realizou, também, vários filmes dedicados a compositores musicais (Elgar, Liszt, Mahler, Tchaikovsky).
Sobram fórmulas para enterrar talentos. A mais vulgar é R.I.P. e a mais eufemística, “estava adiantado em relação ao seu tempo”: a obra de Ken Russel tinha traços pós-modernos, mas antes da declaração do fim das grandes narrativas, e barrocos, mas antes do neobarroco…
Segue a faixa See Me Feel Me – Listening to you, do album Tommy (1969) dos The Who.
Corpos comunicantes. A educação pelos sentidos no Mosteiro de Tibães – I
Em parceria com o Paulo Oliveira, estou a escrever um texto dedicado à educação pelos sentidos no Mosteiro de Tibães. Maior que uma crónica e sem aparato de artigo, vai ter uma primeira publicação por partes no ComUM online. Como dizem os pintores, trata-se de uma primeira mão. Em bruto, sem referências completas, nem análises finas da semiótica dos espaços, nem imagens. Para já, é um nada académico. Precisa de outra compostura e, pelos vistos, de algum marketing. Como cada um dá o que tem, esta é a minha prendinha de Natal, aquela que ninguém pediu nem necessita (carregar na imagem ou no seguinte endereço: http://www.comumonline.com/?p=978)
Sentidos, Emoção e Razão
Mencionei no último artigo a pirâmide composta pelos sentidos, pela emoção e pela razão. Estes ingredientes estão presentes em todos os anúncios. Varia, porém, o modo como se configuram, se interligam e se hierarquizam.
Seguem três anúncios, todos com pós-produção da agência alemã Sehsucht. O primeiro, The Ultimate Visual Stimulant, é uma auto-promoção. Predominam as sensações, com uma exacerbada excitação dos sentidos. A agência pretende evidenciar a sua competência no domínio multimédia.
Anunciante: Sehsucht. Título: The Ultimate Visual Stimulant. Agência: Sehsucht. Direção: Hans-Christoph Schultheiss. Alemanha, Agosto 2013.
O anúncio Sounds of Summer, da Mercedes-Benz, convoca, através das sensações, emoções. No seu despojamento, os sons e as imagens despoletam sentimentos no espectador.
Anunciante: Mercedes-Benz. Título: Sounds of Summer. Agência: Springer & Jacoby Werbeagentur. Direção: Timo Schädel, Ole Peters. Alemanha, Dezembro 2004.
O terceiro anúncio, Coop Evolution, do Swiss Bank Coop, apesar da criatividade visual ou graças a ela, mas com algum risco de distracção, apela à razão: prepara e promove uma ideia, um entendimento.
Anunciante: Swiss Bank Coop. Título: Coop Evolution. Agência: Ruf Lanz Werbeagentur AG, Zurich. Direção: Ole Peters. Suíça, Agosto 2010.